Em 1972, um avião da Força Aérea Uruguaia chocou-se contra a Cordilheira dos Andes, deixando um grupo à deriva em um dos lugares mais hostis do mundo. A Trip ouviu o relato de um sobrevivente
Esta reportagem foi publicada originalmente em 1992.
Em outubro de 1972, por causa de uma falha humana, um avião da Força Aérea Uruguaia perdeu altitude e acabou se chocando contra a Cordilheira dos Andes. Por 72 dias, os 28 sobreviventes foram obrigados a improvisar pela vida e recorrer à carne de seus companheiros mortos.
Vinte anos depois, a reportagem da Trip ouviu o relato de Antonio Vizintín, um dos passageiros do Fairchild F-227.
Trip. Qual o seu nome completo e idade?
Antonio Vizintín. Antonio Vizintín, tenho 38 anos.
Bem, vamos falar sobre o acidente que todo o mundo conhece e que você viveu. Quando aconteceu? Em outubro deste ano completam vinte anos.
Como está a memória do acidente em sua cabeça, é uma coisa viva ou já está meio apagada? Não, é uma experiência tão forte que não se esquece mais, é uma coisa que vai com você toda a sua vida.
O avião ia de onde para onde? Íamos num avião militar Fairchild F-227, de Montevidéu para Santiago. Por causa do mau tempo, fizemos uma escala em Mendoza, na Argentina. Dali tínhamos duas opções: ou cruzar para Santiago ou voltar para Montevidéu. O piloto decidiu seguir e aconteceu o acidente.
Morreram muitos na hora do choque? Sim, neste momento morreram muitas pessoas e, doze dias depois do acidente, uma avalanche pegou o avião e tirou a vida de mais alguns. Quando o avião bateu e perdeu as asas (era um tipo de avião onde a asa vai acima da cabine), escorregou montanha abaixo pela neve, que com o peso transformou-se em gelo duro. Depois continuou nevando, e em cima do gelo se concentrou uma neve bem fina, formando uma "estrada" até onde o avião parou e por onde desceu a avalanche. Tem outra coisa, nunca tínhamos visto neve, era a primeira experiência com a neve.
Quantas pessoas estavam no avião? Éramos 45 pessoas no total e logo na queda morreram 17 companheiros, restando 28. Durante nossa luta na neve, aos poucos foram morrendo outros. No final, sobraram só 16 de nós com vida.
Como era sua vida antes do acidente? Eu estava estudando advocacia. Tinha acabado de sair do colegial e me dedicava ao rugby, no colégio Stella Maris com outros alunos. Jogávamos sempre com o Chile, pois havia um intercâmbio entre uruguaios e chilenos. Ou íamos ao Chile, ou eles vinham ao Uruguai. Era uma tradição, e continua sendo mesmo agora depois de velhos. No ano passado fomos ao Chile e este ano eles irão ao Uruguai. Mais por camaradagem, para nos vermos. Por causa do acidente, somos muito amigos hoje, eles se preocuparam muito conosco e até existe uma amizade muito especial entre nossos filhos.
Havia uma equipe de rugby no avião? Sim, uma equipe com acompanhantes, além de algumas pessoas que não tinham nada a ver, que estavam lá porque a passagem era barata e queriam conhecer o Chile. Era preciso encher o avião, então oferecemos a viagem para os amigos.
Entre os 16 sobreviventes, quantos eram jogadores? Apenas cinco. Os outros eram convidados ou amigos nossos, estudantes do colégio Stella Maris.
Quando os pilotos tomaram a decisão de cruzar para Santiago, o que aconteceu depois? Bem, o acidente aconteceu porque os pilotos se perderam. Depois de determinado tempo de voo, dentro da velocidade que íamos, já tínhamos que ter chegado em nosso destino. Mas não foi o que aconteceu. Os pilotos começaram a baixar de altitude. Estavam perdidos e começaram a baixar, baixar, baixar, até encontrarem com a montanha. O avião bateu…
Houve explosão? Não, uma das asas tocou na pedra, numa ponta. Eu estava olhando pela janela e de repente vi a terra, chegando perto. Eu estava no avião e daí via pedra a poucos metros. Neste momento sentimos que o avião perdeu as asas.
E o impacto? Não houve impacto. O que aconteceu foi que a asa bateu e o avião desizou para baixo. Foi muita sorte, senão não estaríamos aqui falando sobre isso. O avião bateu uma asa, perdeu velocidade, deslizou para baixo.
E onde foi isso? Isto foi perto de Puente Negro, no Sul do Chile.
Depois do acidente, as pessoas que sobreviveram dormiam no avião? Sim. O avião ficou reduzido a uma carcaça, um charuto. Ficou um pedaço da cabine dos pilotos e outro pedaço da parte onde ficavam os passageiros.
Os pilotos sobreviveram? Não. Morreram esmagados quando o avião escorregou. A força da neve amassou parte da cabine deles. Morreram esmagados pela neve. Eram dois pilotos e um navegador que acabou se perdendo. Cinco minutos antes do choque, eu estava no fundo do avião. O navegador veio e disse para mim e para outros três amigos para mudarmos de um lado para outro. Nesse momento sacou uma bolsa com mapas e começou a fazer cálculos: foi aí que percebemos que estávamos perdidos. Na hora do acidente eu já estava no primeiro assento. Foi quando vi a parte traseira do avião completamente destruída!
Havia pessoas lá? Sim, pessoas que morreram. E eu tinha me mudado do último para o primeiro assento.
E o que aconteceu depois do acidente? Quanto tempo ficaram perdidos? Ficamos 72 dias perdidos, de 13 de outubro a 22/23 de dezembro.
O que aconteceu depois dos primeiros dias, quando começaram a entender o que estava acontecendo, que estavam por conta própria? O mais difícil foi passar pela primeira semana. As buscas normalmente duram uma semana e depois param. Escutamos por um radinho de pilha, que sobrou intacto, que as buscas haviam cessado. Era um radinho pequeno, que captara as frequências de rádios do Chile. Quando vieram nos buscar, soubemos que havíamos escutado uma rádio uruguaia, não chilena. Dependendo das condições do tempo, se escutam rádios de um ou de outro país.
O que fizeram com os mortos? Os mortos tiramos e deixamos fora. Isso porque não tinha espaço para todos no avião, e só começamos a nos mexer no dia seguinte ao acidente. Quando o avião bateu, era umas cinco, seis da tarde e o tempo estava nublado, ninguém sabia o que tinha acontecido, o tempo estava ruim e a essa hora todos estavam meio dormindo. Não sabíamos o que estava acontecendo, não víamos nada. Eu estava à frente e os assentos vieram todos para cima de mim. Depois alguns se moveram, saíram, mas veio a noite, se você se mexia para um lado, irritava um, se mexia para o outro lado, importunava outro. Nossas pernas estavam todas entrelaçadas, se você se movia para um lado, gritavam... Até de manhã não podíamos nos mover. Não sabíamos onde estávamos, tudo tinha vindo abaixo, foi uma situação muito desesperadora no primeiro dia.
Os sobreviventes estavam muito feridos? Depois do acidente, ficamos no avião com cólicas, dores, todos os tipos de coisas. No primeiro dia, tudo bem, no segundo, no terceiro a fome apertou, então se pensou em comer um pedacinho de doce, mas não havia muito. Tínhamos que dividir entre 28 pessoas.
Como era o estado físico dos sobreviventes? Os 28 estavam bem, salvo três casos. Um teve a perna amputada pela hélice, e os outros dois quebraram o fêmur. Eu, por exemplo, quebrei umas costelas, mas só fiquei sabendo três anos depois.
Esse que perdeu a perna sobreviveu? Não, morreu, pois perdeu muito sangue. Acontece que não tínhamos como tratá-lo. Não tínhamos remédios, nada. Algumas coisas podíamos fazer, mas não muito. O aparelho caiu inclinado e torcido, tivemos que transformar o teto em cômodo. Então o piso do avião virou parede, e tivemos que dormir na parte redonda, 28 pessoas, a única forma de dormir era sentado com as pernas encolhidas. Dormíamos um em frente do outro, juntos para nos aquecermos. Eu, no princípio, estava muito mal, me cortei todo e perdi muito sangue. Ainda bati a cabeça no chão e tive algo como uma convulsão cerebral. Fiquei uns 10 dias sem me mexer; me punham na cama, me tiravam para urinar e me davam o que comer. Fizeram como se fosse uma cama, por cima de tudo, com as almofadas dos assentos.
O avião estava aberto? Só atrás, onde havia batido. Fizemos uma proteção com portas, pedaços de piso e latas para tampar essa abertura.
O sofrimento foi maior com o frio ou com a fome? Tínhamos as roupas que usávamos normalmente, do tipo que usaríamos no Brasil ou no Uruguai. Colocávamos três ou quatro suéteres, quatro ou cinco pares de meias, duas calças, mas não tínhamos nenhuma roupa de neve. Outro problema é que tudo vivia molhado. Quando o sol saía, púnhamos tudo em cima do avião para secar. O frio era um problema, não o pior. O difícil da coisa é que não estávamos preparados para viver na neve.
E a morte? Depois do acidente mudou a ideia da morte para você? Não posso dizer se mudou. O que muda, com certeza, é a parte da vida, de se querer viver muito mais. As pessoas me perguntavam se eu tinha acostumado com a ideia da morte. Não é que você se acostuma com a morte. Você passa a amar tudo mais intensamente, passo a pensar que existe bastante coisa para ser feita. Temos que viver, fazer as coisas que temos que fazer, passar por elas e desfrutar o tempo que nos resta.
Nesses 72 dias, houve momentos felizes? Felizes… bem, sim. Momentos de risos, de alegria. Tínhamos que viver o dia a dia, mas não havia muito ambiente, era muito difícil, digamos, ter um ambiente alegre. O que acontecia era que, no grupo, havia pessoas que estavam bem, às vezes faziam piadas, mas outros, ao seu lado, mal. Estava meio balanceado.
Havia mulheres? As duas que sobreviveram ao acidente morreram na avalanche.
Qual era a média de idade? Era de 22, 23 anos.
Houve um líder natural no grupo? Sim. O chefe natural, a princípio, foi o capitão da equipe, que organizou o grupo. Mas quando ele morreu na avalanche, a organização morreu. Havia um grupo que se encarregava dos restos do avião e um pouco da parte estratégica. E o outro grupo se encarregava da parte expedicionária, na qual eu estava. Havia outro grupo... (pausa) pequenos centros de poder, digamos, onde cada um manejava suas coisas. Tudo ficou muito balanceado. Discutíamos sobre o que fazer e como fazer as coisas, brigávamos, mas claro, no final sempre chegávamos a uma conclusão.
Como vocês chegaram ao socorro? Depois de 72 dias, você acaba se acostumando a viver na neve. Aprendemos a caminhar, aumentando a superfície de apoio com armações nos sapatos. Fomos dominando pequenas coisas, aprendemos que em determinado temperatura, a certa hora do dia, vinha o gelo, e aí nos atrapalhava. Fomos nos acostumando. A primeira expedição foi a minha primeira experiência direta com a neve. Dormíamos sob tempestades. Era como se saíssemos agora daqui, com as roupas que estamos usando, e dormíssemos lá fora (pela janela, olhando para a base da montanha, calculamos cerca de oito metros de neve. O termômetro marcava três graus negativos).
Como foi essa avalanche? Bem, o que aconteceu foi que estávamos dormindo na posição que expliquei, no avião. Eu dormia em cima e havia outros três. A avalanche entrou. Senti uma lufada de vento entrando por trás, um flash, e, de repente, toquei minha cabeça e vi neve — filho da puta, quem está jogando neve, pensei —, olhei pra trás e tudo estava branco. Via mãos para fora da neve, umas mais altas, outras mais baixas, e nesse momento fiquei desesperado e comecei a puxar as pessoas. Claro, o que aconteceu foi que, como dormíamos um ao lado do outro, quando você puxava um, a neve cobria o outro. Tem outra coisa, quando você aperta a neve, ela forma um bloco, mas a neve fina é porosa, e se você tiver um espaço ao redor do rosto, dá para respirar. Bem, teve gente que morreu do coração, de outras coisas. Para morrer, basta estar vivo. Eram condições muito especiais, o porquê de alguns sobreviverem e outros não, está nas mãos de Deus. Alguns morreram, outros viveram, porra, são casualidades, são coisas inacreditáveis.
Quando começou a faltar comida? Bem, desde o princípio, digamos.. Mas, falando de casualidades, quando paramos em Mendoza não tínhamos hotel. Não tínhamos nada, e cada um foi para seu lado. Fomos a um hotel que não sei qual é. Três quartos, três pessoas em cada um. Desses três quartos, só uma pessoa de cada um sobreviveu. São coisas difíceis de entender. Saí com dois amigos para ver umas garotas e acabamos comendo algo num bar. Resolvemos assinar numa parede, fulano, fulano e fulano, amigos pela eternidade. Bem, os dois que foram comigo foram os dois que sobreviveram. E assim se deram mil coincidências.
Mudou sua ideia de religiosidade, sua relação com Deus? Essa é uma boa pergunta. Quando estávamos lá, ficamos muito religiosos. Depois que voltamos, fiquei um pouco menos. Digamos que quando você necessita, se agarra, e depois que não precisa mais põe um pouco de lado. Creio que todos se tornaram um pouco religiosos.
Do que você tem medo hoje? De altura. Pergunte ao meu professor de esqui. Bem, meus filhos estão de férias e eu queria levá-los ao Rio, mas não, eles queriam algo diferente do verão, queriam a neve. Eu disse ok, vamos lá, neve.
Voltando à comida… Bom, o avião não tinha muita comida. Eram 28 pessoas vivas, no princípio começamos dividindo, um pedacinho de doce para cada um, pra fazermos uma boquinha. Uma tampa de desodorante de bebida, havia rum, e era só uma tampinha, eram 28 pessoas. Não havia muito, o tempo passou — isto foi antes da avalanche. Não havia nada para comer. Tinha uns estudantes de medicina que disseram que assim não sairíamos vivos. Mas antes de se chegar a essa decisão, discutimos a parte religiosa do assunto, teorias distintas, se era possível ou não. Um dizia que sim, outro dizia que não. Cada um com seu dilema, chegamos à conclusão de que era a última solução.
Quanto tempo demoraram para tomar a decisão? Horas, dias? Veja, creio que a decisão se deu... São coisas que vão acontecendo. Um dia alguém disse como uma piada, tipo, teremos que fazer a tal coisa... Depois vai mudando, o tempo vai passando, e o outro que diz, bem, temos que fazê-lo, não tem mais remédio. Os que tinham sido contra perceberam depois que não tinha jeito, era fazê-lo ou morrer.
Não tinham mais nada para comer? Uma das melhores coisas que tínhamos era pasta de dente, que era a sobremesa. Outra coisa deliciosa era tomar pós-barba, pelo álcool. Era tudo que tínhamos. Você pode dizer que não tomaria pós-barba. Eu aposto que sim, pelo álcool do produto. Foi chegando a uma situação que, de um dia pro outro, não tínhamos mais nada pra comer.
A decisão partiu dos estudantes de medicina? Partiu deles, sim. Partiu deles e de alguns outros que foram conversando com os mais amigos sobre o tema. E depois se chegou a uma decisão conjunta.
E como fizeram isso, escolheram uma pessoa, um cadáver? Da primeira vez foi como, bem, um pequeno pedaço, como uma caixa de fósforos, alguma coisa assim. Você tem que sofrer um processo para poder chegar a isso, e depois era, bem, não era um cadáver, tampouco um amigo seu que havia morrido, era sua sobrevivência. Entre nós, depois que a coisa se estabeleceu, fizemos um acordo: se algum dos que estavam vivos morressem, os outros deveriam usá-los para sair vivos.
Quantos dias tinham se passado quando tiveram que começar a fazer isso, a comer os outros? Eu acho que depois de uns 15 dias. De 12 ou 15.
Então esta foi a razão direta da sobrevivência por 60 dias? Sim.
Era a única comida que tinham… Sim, o problema era que quantidade comer? Aí se tem também o trabalho de equipe; uns se alimentam mais, os expedicionários tinham mais privilégios por causa das caminhadas, se arriscavam mais. Os outros o que davam? Davam uma parte muito importante, se privavam de sua alimentação, de seu abrigo, de uma quantidade de coisas.
Os estudantes de medicina escolhiam as partes? Não, não foi algo tão sofisticado. Para sairmos de lá, precisaríamos de trabalho realmente de equipe, em que cada um desse uma parte de si, um esforço conjunto para todos saírem vivos. Se conseguíssemos, ótimo, se não, todos teriam tentado o máximo.
Qual a reação do corpo humano alimentando-se de carne humana? Quimicamente, somos todos animais naturais, o mesmo de qualquer outro, sem nenhuma diferença.
E a cabeça, te fazia mal a ideia? Naquela situação, a única coisa que nos preocupava era como sobreviver. No momento que não está fazendo mal, que não está tirando outra vida para que você viva, a coisa fica muito clara. Foi um meio para continuar vivendo, nada mais.
Como é o gosto da carne humana? Bem, não posso te dizer, não é uma questão de paladar, e sim de necessidade.
Como eram as expedições? Vocês saiam caminhando cada um para um lado? Não, depois de sabermos pelo radinho que eles interromperam as buscas — que é uma das piores coisas que se pode ouvir nessas circunstâncias — foi duríssimo. Bom, aí você sai e olha para a montanha, para a ponta do lago e fala, porra, onde estou. Não sabíamos onde estávamos, porque como já disse os pilotos haviam morrido, e não tínhamos nenhuma informação. Os mapas que pegamos e estudamos, pelo luar que passava, pensamos que estávamos no meio do Chile, passamos por Unicó (cidade chilena), atravessando a pré-cordilheira, e víamos picos de neve por todo o lado. Aí pensamos: estamos no meio da cordilheira.
Quantas pessoas saiam nas expedições? Na última expedição, saímos em três pessoas e quando cheguei em cima estava muito cansado. Pensei que não ia aguentar, era feia a coisa… De um lado, neve que não acabava mais, do outro lado floresta. Não dava pra ver muito. Lá longe havia um hotel, que estava fechado pelo inverno, mas estava cercado pela civilização. Os outros dois fizeram a caminhada, que durou uns dez dias, até chegarem à parte da pré-cordilheira.
Esses dois foram andando até sair da cordilheira? Sim, os dois chegaram a sair, encontraram umas pessoas e pediram socorro. Aí já sabiam onde estávamos e vieram os helicópteros para o resgate. As condições não eram nada boas.
Como se sentiu quando viu o resgate chegar? O resgate, sabíamos que viria, porque pela mesma rádio havíamos escutado que tinham encontrado dois sobreviventes e mandado o resgate. Quando ouvimos os helicópteros, já os esperávamos. Esta manhã estava chovendo e, às sete horas, escutei o locutor de uma rádio de Montevidéu, a rádio Espectador, com essa pessoa falando que nos iam resgatar, não sabiam quando, que os helicópteros estavam vindo. E os helicópteros... Foi uma situação bem feia. Eles não tinham como pousar na cordilheira, e precisaram dar voltas, e mais voltas. Estava chovendo, chovendo muito. Não tinha teto. O tempo melhorou e aí baixaram comida, três pessoas ficaram conosco e no outro dia voltaram para pegar os que ficaram.
Ficou mais uma noite, ainda? Uma noite mais. Não conseguiam subir. Vieram mais três helicópteros. Eles não esperavam encontrar tanta gente, e no momento em que o helicóptero tentou decolar, não conseguiu, não levantava, veio um enfermeiro da equipe no porta do helicóptero aí ele foi empurrado para fora! Atiraram-no para baixo! Ele teve que passar toda a noite molhado. Foi a única forma de fazer o helicóptero subir. Ficaram uns andinos conosco, com uns ferros preparando um campo de pouso improvisado.
O que fizeram em seu primeiro dia de civilização? Nos levaram para uma base na pré-cordilheira, depois fomos a San Fernando para abastecer os helicópteros, e daí para Santiago num hospital. Fiquei algumas horas, pois por incrível que pareça, estava me sentindo muito bem, apesar da aparência horrível. Os médicos olhavam, olhavam, porque parecíamos muito mal. Fomos para a cidade, e por volta do meio-dia, comi uma pizza. Fiquei agarrado a um poste vomitando, pois uma pizza depois de 72 dias... Tudo o que comia punha para fora.
Sua relação com o mundo material mudou muito depois do acidente? Mudou no começo, depois, o dia a dia passa a determinar as coisas, mas algumas coisas ficam. Por exemplo, meus filhos, em casa, não gosto que desperdicem restos de comida, isso me deixa mal, entende? Alguns me perguntam por que me preocupo tanto, e eu digo que se tivessem passado pelo que passei entenderiam! Porra, saber que estão jogando fora quando precisei tanto…
E a sua relação com os outros sobreviventes, como é? É muito boa, cada um tem sua vida, nos vemos com frequência, moramos perto uns dos outros. Agora nos vemos um pouco mais, pois estão fazendo um filme que estreia em novembro em Los Angeles (dirigido por Frank Marshall, com Steven Spielberg na produção, e coprodução dos estúdios Disney e da Paramount). Participamos como assessoria.
Existe algum livro? Existe e se chama "Alive". Foi escrito por um editor inglês em 1973 sob consulta. Tudo que está no livro, aconteceu, com base nesse livro, vinte anos depois fizeram o filme. É a história do triunfo da espécie humana, de um grupo de gente que, sob condições adversas, se uniu, deu tudo de si para seguir adiante.
Quais são seus planos para o futuro? Bem, vamos ver o que acontece com esse filme. Pode mudar alguma coisa. Mas temos que trabalhar, que cuidar de nossas famílias, viver como qualquer outra pessoa. Vendemos os direitos para o filme e o livro há uns 18 anos, e agora temos participação na renda. Um dia Frank Marshall veio a Montevidéu dizendo estar maravilhado com a história, pelo que ela significa, e que queria filmá-la. O filme foi rodado no Canadá e em estúdio.
Acha que o filme vai ser fiel à história? Vai sim. Há um acordo para ser o mais fiel possível. Tudo é importante. É muito mais importante a parte do grupo, das decisões em grupo, do que a parte da alimentação. A parte mais importante é como se chegou a essa decisão, não o que passou depois.
Durante esses 72 dias aconteceram brigas entre as pessoas? Sim, claro, aconteceram discussões. Quer dizer, imaginar que estávamos vivendo 72 dias com outras pessoas, sob aquele nível de tensão, às vezes alguém se desentendia e trocava uns tapas. Não era nada de mais, um ou outro trocavam uns tabefes, depois se desculpavam, choravam e tudo voltava ao normal. O grupo era a única chance de sobrevivência que tínhamos.
Hoje você trabalha com o quê? Trabalho numa fábrica de garrafas de PVC. Vou a São Paulo com frequência, produzimos garrafas de água, de óleo...
Você ficou com medo de avião? Não, medo de avião não. Viajo muito pelo meu trabalho, tenho que viajar. Digamos que quando tem neve dá um aperto, e quando cruzo os Andes me emociono, digo, "puta madre", tive que viver ali embaixo.
Os outros sobreviventes veem o acidente com a mesma naturalidade que você? Sim, creio que sim, não temos nenhum problema para falar sobre o tema. Não se pode tapar sua vida, não se pode negá-la. Aconteceu, foi muito importante, temos que assumir como tal.
Existem fotos destes 72 dias? Sim, eu tinha uma câmera. Fotos de como vivíamos, do lugar. As fotos estão publicadas no livro e em algumas revistas.
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