Terry Gilliam brigando com moinhos de vento

por Eduardo Ribeiro

Um papo com o diretor americano, integrante do Monty Python, sobre “O homem que matou Dom Quixote”, clássico que levou 30 anos para concluir

Terry Gilliam é uma das mentes mais ferozes e imaginativas do cinema em todos os tempos. No início de sua ascensão no audiovisual, o artista americano radicado na Inglaterra ganhou notoriedade como o cara que fazia as animações da trupe inglesa de comédia Monty Python. Fora os projetos do coletivo, incluídos aí a codireção e cocriação, ao lado de Terry Jones, dos clássicos Monty Python e o Cálice Sagrado (1975), A Vida de Brian (1979) e Monty Python e o Sentido da Vida (1983), entre os amantes da sétima arte suas mais referidas obras são provavelmente os filmes Brazil (1985), As Aventuras do Barão Munchausen (1989), O Pescador de Ilusões (1991), Os 12 Macacos (1996), Medo e Delírio em Las Vegas (1998), e, mais recentemente, O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus (2009).

As produções de Terry estão sempre no limiar e na confusão entre a comédia do absurdo, a crítica às burocracias e a fantasia surrealista. O realismo puro, dos cortes secos e da câmera estática, não lhe interessam. O diretor imprime suas ideias fazendo o mínimo de concessões à indústria. Por algum motivo, desenvolveu a obstinação de sempre assumir o trabalho mais difícil de botar em prática.

Foi assim que ele embarcou, trinta anos atrás, na missão de reavivar as aventuras de Dom Quixote de La Mancha. Com algumas tomadas de liberdade sobre a obra-prima de Miguel de Cervantes e diversas menções ao livro, seu recém-lançado O Homem que Matou Dom Quixote de fato captura a alma dos personagens originais, Quixote e Sancho Pança. Morte e glória, triunfo e tragédia.

A história começa com os descaminhos de Toby (Adam Driver), um diretor de cinema desiludido que se vê tragado para um labirinto de situações onde fantasia e realidade se misturam quando um sapateiro espanhol, que pensa ser Dom Quixote, o confunde com Sancho Pança.

Foram exaustivas dez tentativas de realização do projeto e um número ainda maior de problemas de todas as sortes enfrentados, em uma das produções mais conturbadas da história do cinema. Nada que abalasse o primor e a qualidade do produto final. Assim como Dom Quixote, Terry Gilliam brigou com moinhos de vento, e venceu mais uma batalha.

De bom humor, reservou um tempinho na agenda para falar com a Trip por telefone.

Trip. A produção de O Homem que Matou Dom Quixote foi uma das mais conturbadas na história do cinema. O que lhe motivou, ao longo dessa jornada, a lutar durante décadas contra problemas de produção, orçamento e até mesmo elementos da natureza que destruíram o set de filmagens?

Terry Gilliam. Para mim, é difícil de entender exatamente o que me fez seguir em frente… o que acontece é que quando decido fazer algo, aquilo se torna uma obsessão e a ideia simplesmente não sai da minha cabeça enquanto não for concretizada. Eu fico me sentindo frustrado. Realizei outros filmes desde então, mas Quixote simplesmente não saia da minha cabeça. Chegou um momento em que eu já estava tão consumido pela proposta que não queria perder os primeiros 15 ou 20 anos de empenho depositado neste filme. Uma hora ou outra ele acabaria ganhando forma, independente dos percalços, pensava eu. Chegou um momento em que as pessoas à minha volta não aguentavam mais esse assunto, e me chamavam de maluco por querer insistir tanto em algo que parecia impossível de fazer acontecer. Mas eu estava determinado em jamais abandonar o filme, a não ser que morresse ao longo do processo [risos].

Conte um pouco da sua relação com o livro do Miguel de Cervantes. Era tipo um livro de cabeceira ou algo assim? Nada! Eu fui ler o livro logo depois que terminei de rodar A Fantástica Aventura do Barão Munchausen, em 1989. Até então, eu não conhecia a obra original a fundo, apenas a sinopse, mas a coisa veio na minha mente. Daí, chamei o produtor executivo Jake Eberts, que trabalhou comigo no Barão Munchausen, e disse: “Tenho uma ótima ideia para o próximo filme! Preciso de 20 milhões de dólares.” Ele me perguntou do que se tratava, e eu respondi: “Vou lhe dizer apenas dois nomes: 'Dom Quixote e Terry Gilliam'” [risos]. Ele respondeu: “Ok, você terá a verba”. Aí sim, fui atrás de ler o livro [risos].

Existem duas versões desse livro, né? A história original e uma segunda versão, bem mais comprida. Você leu as duas? Eu li os dois volumes do Cervantes, a versão mais curta e a comprida. A segunda versão, mais longa, é incrível! É a primeira grande novela moderna, em minha opinião. O que aconteceu é que o sucesso do primeiro livro foi tão grande, que começaram a surgir vários outros livros piratas com novas aventuras do Dom Quixote. E estas versões também ficaram muito famosas, as pessoas adoravam. O autor ficou muito bravo com isso, com esses outros escritores ganhando em cima de seu original. Foi aí que ele absorveu tudo o mais que havia sido lançado envolvendo Dom Quixote e escreveu a sua própria segunda versão, naquele volume enorme, para acabar com aquela coisa de tantas sub-histórias.

Para muitos, Dom Quixote de la Mancha é um livro cômico, mas, nas entrelinhas, repousa um pouco de melancolia em ver o personagem naquela situação de confusão mental, das pessoas olhando para ele com deboche… Assim como se dá numa passagem do seu filme. Como você vê esse lado? Mas é uma história muito engraçada… Eu acho que este é um excelente livro, e Quixote é um personagem incrível. Você não pode olhar para o Quixote sozinho, mas considerá-lo sempre na companhia do Sancho Pança. Porque ambos juntos mimetizam dois lados da humanidade. Acho que todos nós temos muito de Quixote e muito de Sancho Pança. A loucura é um aspecto importante da vida, sabe? Por meio dela já foram produzidas algumas das melhores obras de arte, mas, também, algumas das maiores tragédias. É uma faca de dois gumes. Mas gosto do lado criativo da loucura.

Além da remissão à aventura de Miguel Cervantes, você trouxe para a história uma crítica pŕopria a como as coisas funcionam na indústria do cinema, não é? O lance do diretor que é um gênio, porém muito excêntrico; o executivo do estúdio, que dá sinal verde para tudo, desde que o lucro seja garantido… O que eu tentei imprimir ali foi o seguinte: Toby, o protagonista, é um cara cheio de talento, mas ele trai esse talento em nome do dinheiro. E isso é o que acontece com as pessoas, especialmente no cinema. Primeiro você faz algo que evoca reações positivas no público, mas aí então aparecem os agentes, e depois os estúdios, querendo lhe forçar a criar um monte de lixo para a indústria… É nesse buraco que muitos artistas caem, e até ganham muita grana com isso… Eu mostro o Toby se desviando para esse caminho para depois puni-lo por suas escolhas, por ter se vendido nesse nível e perdido a sua essência artística. Trata-se de lidar com as tentações. O sucesso é muito perigoso.

Isso me faz lembrar daquele livro da Lilian Ross, sobre A Glória de um Covarde, do John Huston. Ele ficou muito chateado, e não chegou a assistir a versão que foi para o cinema. Os executivos mexeram tanto no filme dele com medo que não desse lucro nas bilheterias, que nem acho seja correto dizer que aquele é um filme de Huston. Sim, entendo o que você diz, é como aquele filme do Orson Welles, O Outro Lado do Vento, que começou a ser rodado em 1970 e só foi lançado no ano passado. Wells pretendia que este fosse o seu grande retorno a Hollywood, e ele se dedicou às atividades até 1976. Mesmo com os enroscos, ele continuou a trabalhar intermitentemente no projeto até os anos 80, mas se envolveu em complicações legais, financeiras e políticas que impediram sua conclusão. Agora, não sei se fizeram justiça ao trabalho de Welles no longa que saiu, se aquilo era o que ele realmente queria, porque não gostei do que assisti [risos]. Os caras provavelmente até tentaram concluir a obra seguindo o que supõem que Welles teria feito, mas ele tinha muito mais sensibilidade, bom gosto, e com certeza teria, em pessoa, jogado fora metade do filme [risos].

LEIA TAMBÉM: Laerte, Clarice Falcão, Gregório Duvivier e outros humoristas brasileiros falam da importância do grupo Monty Python para a história

Em algum momento você pensou que passaria pela vida sem conseguir concluir O Homem Que Matou Dom Quixote? Tipo o Jodorowsky, que não conseguiu concluir Duna, apesar de tanto esforço? [risos] Trabalhei com tantos produtores nesse longa, e o que acontecia era que acabava o orçamento e precisava de mais dinheiro pra continuar, então a produção ficava no gelo até conseguir outro produtor, que fosse capaz de trazer mais dinheiro, e o processo foi se dando desta forma… Para você ter ideia, nesta última versão, Paulo Branco, o produtor português, entrou na jogada, e afirmou que conseguiria levantar a grana. Daí, literalmente duas semanas antes de pagar por um trabalho que já vinha sendo feito há meses, ele simplesmente pulou fora! E, ainda por cima, saiu afirmando que os direitos do filme pertenciam a ele, e que, sendo assim, qualquer conteúdo desta última versão era de propriedade da Alfama Films, a antiga produtora, e não nosso! Esse foi um obstáculo muito difícil, pois tive que dispensar a equipe toda e tudo mais… A atitude desse cara foi muito estranha, pois além de não ter honrado com a palavra, quando ele viu que eu estava dando a volta por cima e prestes a concluir a obra, ficou em cima brigando pelos direitos. Ainda bem que a justiça ficou do nosso lado. De todas as dificuldades que passei ao longo dos 30 anos tentando realizar Dom Quixote, esse cara foi uma das pessoas mais estranhas com quem tive contato. Falávamos anteriormente de loucura nesta entrevista… bem, taí alguém que é verdadeiramente louco, no sentido negativo da palavra. Um cara totalmente sociopata, insano… Veja bem… Quixote é um personagem que enxerga o mundo por meio de um filtro de nobreza, de honra, de honestidade… Branco não, ele agiu com obsessão para fazer o filme não acontecer, e tudo por conta de seu ego, e nada além. [risos] Mas ele se fodeu! O próprio ego dele tornou a sua vida numa coisa miserável.

A crítica ao autoritarismo e à burocracia estão sempre presentes nas suas obras. Com regimes autoritários ganhando força nos últimos tempos, qual você acha que seria a melhor saída para o quadro atual? A democracia ainda parece ser a melhor das piores opções. Mas o que acontece atualmente é que o que chamam de democracia não passa de uma fraude, resultante de uma manipulação que ganhou força especialmente com a internet. Mais e mais pessoas estão cada vez mais isoladas da realidade. Elas não estão participando da política, estão apenas com a cara colada em suas telas de computadores, sendo enganadas. Observando… E tudo o que circula nas mídias sociais é tão falso e corrupto, é muito preocupante. Sabe, o pêndulo vai e volta, a história fica rondando entre a república, a democracia, a tirania e a demagogia. Acho que o pêndulo agora está indo em direção à demagogia.

Períodos assim, no passado, foram ruins para a economia e as liberdades individuais, porém, deram origem a coisas muito criativas na música e no cinema... Não sei se dessa vez será igual… Pois os aparatos de cerceamento andam mais complexos. Veja o Trump, nos Estados Unidos, ele praticamente está tornando o livre pensamento em algo impossível. Pensar diferente não é uma opção. Ele tira sarro e deprecia qualquer um que critique a sua política, sejam os movimentos ou mesmo a imprensa… A propósito, como andam as coisas por aí no Brasil e o presidente eleito?

Bolsonaro é um sujeito partidário do conservadorismo, digamos assim... Bem… o conservadorismo definitivamente não é o meu sistema favorito. Acho que o populismo que ganhou forma nos últimos tempos é uma nova versão do fascismo. Acredito que as pessoas andam assustadas, ainda não aprenderam a lidar com o fluxo de informações com que são bombardeadas, e a situação se tornou muito complexa. O fascismo e o populismo são ideias simplórias, e elas ganham as pessoas justamente por conta disso. “Ah tá, isso explica tudo”, dizem. Isso é muito perigoso.

Você acredita que a inteligência humana possa um dia ser útil para não apenas criar novas tecnologias e empreendimentos, mas para conseguir organizar as sociedades de modo que seja garantido o bem-estar coletivo? Na verdade eu acho que não somos nem um pouco inteligentes. A grande maioria das pessoas são estúpidas. Está tudo aí, toda a informação, e mesmo assim elas não conseguem ter uma interpretação coerente das coisas… Eu cheguei no limite, sabe… Fiz faculdade de ciências sociais nos Estados Unidos, e todo aquele movimento pacifista estava rolando, e eu achava que, na condição de norte-americanos bem educados, e sendo os Estados Unidos uma potência econômica em relação a outros países, deveríamos ter responsabilidade em colaborar pela transformação do mundo num lugar melhor. Naquela época eu me interessava por tudo isso, lia todos os jornais, queria saber de tudo o que acontecia politicamente no mundo… Mas nos últimos anos, há tanta confusão distribuída, que comecei a seguir na direção contrária, hoje fico tentando lidar com todas as coisas erradas acontecendo no mundo sem entrar em parafuso. Não dá para saber direito qual é a causa, ao que dar importância, então fui desenvolvendo uma aversão pela política. Porque o debate se tornou estafante.

Para encerrar, um tira-teima: por que o filme Brazil ganhou este nome? Nos anos 1950, a música “Aquarela do Brasil” era tudo o que eu conhecia a respeito do Brasil. E é uma música que tem todo aquele romantismo, e os posters com imagens do Brasil que havia por todos os lados vendiam aquela ideia de um lugar super agradável, e eu pensava: “Esse é um lugar para se conhecer!”. Mas aí, nos anos 1960, com todo o lance da Ditadura Militar na América do Sul, e os governos de extrema direita, a imagem que me chegava era cada vez pior. Então eu me via entre uma música linda e uma realidade horrível. E foi dessa reflexão que veio a ideia do filme. A música foi a mãe, o quadro político foi o pai, e o filho foi o resultado desse cruzamento [risos].

fechar