O criador do Nós do Morro fala da atuação do projeto neste momento de pandemia e da felicidade de ver um ex-aluno representar a voz da favela com possibilidades de vencer o programa
Mais um paredão do Big Brother Brasil e mais uma vez Babu Santana, 40 anos, estará entre os que podem sair da casa, agora ao lado de Manu Gavassi e Mari.
O dia 21 de abril é a nona vez dele, um recorde absoluto entre todos os participantes da história do programa.
Babu é negro, vindo da favela e ator formado dentro do projeto Nós do Morro, do qual ostenta uma tatuagem. “Adoro essa história de o Babu ser recordista de paredões e ter voltado em todos”, afirma Guti Fraga, 68, criador em 1986 do projeto dedicado ao teatro no Vidigal, de onde veio Babu e onde ele mora desde 1976, quando voltou da Argentina por conta do golpe militar que depôs Isabelita Perón.
Atualmente, aos 68 anos, Guti mantém uma rotina dividida entre o morro e Saquarema, onde mantém também outra sede de seu projeto, a Casa de Nós.
Agora, está lá, em isolamento com a mãe, de 94 anos, e familiares. E torcendo por Babu. "Eu fico emocionado de verdade de ter uma voz como a dele, uma voz da favela, lá dentro. O que iguala a sociedade é o intelecto, não o dinheiro. E o Babu é como um filho querido", diz, com a voz emocionada. "Quando eu vejo a tatuagem do Babu do projeto Nós do Morro, eu fico arrepiado. É um orgulho muito grande, agradeço aos deuses da arte.”
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O isolamento de Guti é mantido em uma rotina tranquila. "No mato", como ele diz, tem mantido até uma horta: "Estou plantando couve, é isso que estou fazendo agora", diz aos risos. Mas, como qualquer pessoa, está preocupado e, sendo atuante socialmente há 34 anos no Vidigal, fica atento também aos moradores de lá, buscando o otimismo ao destacar as iniciativas e a união das pessoas. "Neste momento, o que nós estamos fazendo é ajudando com o que a gente pode a comunidade, distribuindo muitas cestas básicas, muitos amigos ajudando.
É um momento muito difícil e a gente já estava em um momento difícil", diz o criador do Nós do Morro. "Eu tenho sentido muita união, sabe, que é muito importante no momento. As diferenças ficam de lado e todo mundo está junto em prol de um objetivo comum. A comunidade sempre foi muito unida, tem vários outros projetos além do nosso lá, do Nós do Morro, e todo mundo está chegando junto, a solidariedade está coletiva. Esse é um orgulho muito grande."
Abaixo, a conversa de Guti Fraga com a Trip, em que ele fala sobre a paixão pelo teatro, o orgulho do Nós do Morro e de Babu e uma trajetória de resistência trabalhando com cultura.
Neste momento tão complicado, como está a atuação do Nós do Morro? As pessoas que estão tomando conta do Nós do Morro, lá no Vidigal, são multiplicadores, com a Luciana e a Tatiana, que são gerencias, e o Luís Paulo também, que é diretor e fundador comigo. Neste momento, o que nós estamos fazendo é ajudando com o que a gente pode a comunidade, distribuindo muitas cestas básicas, muitos amigos ajudando. É um momento muito difícil e a gente já estava em um momento difícil, com mais de um ano sem patrocínio.
As contas não fechavam já antes da pandemia? Então, estávamos sobrevivendo durante este ano, pegou a gente em um momento catastrófico, na verdade. A gente é uma galera de resistência, são 34 anos assim, mas nunca foi tão ruim como neste último um ano e meio, com dificuldades para pagar a luz, pagar a água, essas coisas básicas. Mas também sempre tivemos uma coisa muito importante, que é o voluntarismo, os professores, assistentes sociais voluntários. Esse problema que a gente enfrenta agora é uma coisa muito louca, porque é o mundo, não é a gente apenas. Eu fico muito orgulhoso dos multiplicadores, das pessoas que começaram comigo, tão novos, e hoje estão lá seguindo a nossa questão básica, filosófica, que é o respeito, o "com licença", o "por favor", o "muito obrigado". São coisas que ficam na vida da gente para a vida toda. E é essa solidariedade que me dá um orgulho muito grande, essa entrega que as pessoas que estão dentro do Nós do Morro têm, mesmo com esse terror que a gente vive, essa loucura que está acontecendo.
Você tem acompanhado o dia a dia? Todo dia eu falo com a Luciana e com a Tatiana, que são as pessoas que estão mais envolvidas e segurando este momento. Elas começaram no projeto. Meu orgulho é formar multiplicadores, porque, como diz o Vinícius de Moraes, a gente é eterno enquanto dure. E a gente também, filosoficamente, dentro do Nós do Morro, sempre trabalhou não simplesmente como um grupo de teatro, mas um grupo de teatro com filosofia de vida. As pessoas que chegaram aderiram a essa filosofia de vida também e você tem a oportunidade de repassar oportunidades para as pessoas, são caminhos que a gente buscou e que, graças a Deus, tem dado muito certo.
Essa situação de agora escancara de fato o efeito da desigualdade. E neste momento, lembrando do Vidigal, onde vocês estão, um cara como o Babu, que também veio da mesma comunidade e do projeto Nós do Morro, está no Big Brother Brasil, chamando atenção para discussões raciais e sociais. Ele ter uma voz destacada, ainda mais em um momento como o que estamos vivendo, tem que importância? Eu acho que tem muito importância e também acho emocionante. [Silêncio e voz embargada.] Desculpe, eu fiquei um pouco emocionado. Eu acho que é importante, sim, ter uma voz da favela, poder falar realmente. O que iguala a sociedade é o intelecto, não é o financeiro. E o Babu é um filho querido. Eu acho importante ter essa voz. Ele é um garoto muito inteligente, desde muito novo faz teatro, já fizemos tanta coisa interessante juntos.
Ele começou bem novo com vocês? Eu não lembro exatamente o ano em que foi, mas ele tinha 17 anos, faz muito tempo.
Vocês mantinham contato ainda, ele te contou que ia participar doBBB? Eu fiquei sabendo um pouquinho antes. Ele já está fora do Nós do Morro já tem um tempo também. Mas eu sempre tenho um orgulho muito grande, por ele, pelo Thiago Martins... São meus filhos, de verdade, que eu criei. São meninos que eu tive uma relação muito forte com eles. Chega uma hora que cada um está buscando seu rumo e me dá um orgulho muito grande. Quando eu vejo a tatuagem do Babu do projeto Nós do Morro, eu fico arrepiado. É uma felicidade muito grande, agradeço aos deuses da arte.
Você tem assistido com frequência? Sempre que eu posso eu assisto. Eu acho o máximo ele ser a pessoa que mais vezes foi para o paredão até hoje na história do Big Brother. E graças a Deus voltou em todos. Eu acho bonito quando vejo gente torcendo por ele, o Bial, até a Anitta torcendo por ele. Acho bonito quando as pessoas que têm visibilidade se manifestam a favor de um menino como o Babu.
Você falou um pouco antes da importância de gestos de cordialidade e de educação nos sentidos mais simples e básicos e também da importância de formar multiplicadores. E você diz estar passando por dificuldades muito grandes há um ano, um período em que esse tipo de postura tem dado lugar a hostilidades. Quando você diz que nunca foi tão difícil, mesmo no começo do projeto era mais fácil do que é hoje manter o trabalho que faz há 34 anos? Nem no começo dos anos 80, até mesmo porque eu era bem mais novo. O Nós do Morro foi fundado em 1986, foi um momento muito eterno, uma coisa muito importante na minha vida. Era a primeira vez que eu ia para Nova York, fui com a Marília Pêra, e, lá, fui para a off-off-Broadway. Foram naqueles momentos que vi essa possibilidade, de lugares em que você nem imaginava, com galerias de arte, as pessoas tendo acesso a tudo, ao teatro. Isso me impressionou. Eu pensei "meu Deus, é possível" e eu já morava no Vidigal desde 1976. Eu via tantas pessoas com qualidade, que tinham talento e não tinham oportunidade. Quando voltei, parei de trabalhar com a Marília e voltei para a estaca zero, de sobreviver, mas foi de uma maneira muito importante. A Marília foi uma pessoa que abriu muito a minha vida, ela, o cineasta Domingos Oliveira, tantas pessoas que foram eternas na minha história.
Você fez jornalismo. Chegou a trabalhar? Eu nunca esqueço. Em 1980, na primeira vez que o papa João Paulo II veio ao Brasil, eu fiz uma matéria, que foi a única que fiz na minha vida e foi uma capa do Pasquim – e o Luís Paulo, outro fundador e jornalista, fez uma matéria em um jornal que eu tinha na comunidade chamado Jornal Mural. E deu uma polêmica muito grande, o que ele escreveu e o que eu fiz também, tentaram me apagar por isso. Aí falei "não vou escrever mais nada" e nunca mais fiz mais nada, foi só uma matéria. Larguei o jornalismo e fiquei só no teatro mesmo, comecei a trabalhar com a Marília, com o Domingos e aí não parei mais até fundar o Nós do Morro.
Como você chega no Vidigal? Eu nasci em Alto Garças, no Mato Grosso. Com 10 anos, fui para Goiânia e cresci lá. Em 1973 ou 74, fui morar na Argentina, em Córdoba e Mendoza, onde eu fazia medicina de manhã, agronomia durante a tarde e teatro à noite, até ter o golpe militar contra Isabelita Perón e a gente ter que voltar ao Brasil, aí fomos direto para o Rio e fui fazer jornalismo na UFRJ. Mas eu já tinha começado a fazer teatro em Goiânia, em um grupo chamado Exercício, com o Hugo Zorzetti, que faleceu no ano passado. Era teatro mambembe e aprendi muito. A gente viajava em uma kombi por todo o estado de São Paulo, Minas, Paraná, Goiás, claro. A gente levava refletores e uma rotunda e se apresentava, ganhava alguma coisa para ir até a próxima cidade. Foi uma escola de teatro muito importante.
Você fica direto no Vidigal hoje? Eu ainda estou no Vidigal, mas eu divido minha vida com Saquarema, eu tenho um teatro aqui no mato há 13 anos, que se chama Casa Nós. Eu formei um outro grupo, mas a gente prega a mesma filosofia, mas aqui é no mato. Minha mãe e minha irmã moram aqui.
No trabalho que fazem no Vidigal arrecadando doações, imagino que a população diga algo sobre o momento. Que tipo de informação tem chegado para vocês? Eu tenho sentido muita união, sabe, que é muito importante no momento. As diferenças ficam de lado e todo mundo está junto em prol de um objetivo comum. A comunidade sempre foi muito unida, tem vários outros projetos além do nosso lá, do Nós do Morro, e todo mundo está chegando junto, a solidariedade está coletiva. Esse é um orgulho muito grande, quando você percebe que as diferenças ficam de fora e todos chegam junto dentro das possibilidades.
O que você pensa em fazer assim que sair da quarentena? Não sei. No momento, eu estou capinando, podando planta e lendo poesia. Eu fiz uma novela que fez um bem enorme para a minha vida agora, que foi Bom Sucesso, da Rosane Svartman, Paulo Halm, uma parceira do Nós do Morro, da minha vida. Eu gosto de fazer novelas, me faz muito bem. Eu não sei o que vou fazer, a gente não sabe como as coisas vão ficar. Eu estou plantando couve, pra colher, comendo banana todo dia, mexerica, laranja. Tem que ver como é que vai ser.
Você tem acompanhado as manifestações do governo e as notícias sobre a pandemia? Ou consegue se manter sadiamente um pouco distante? Eu fico com o meu coração doendo, porque é difícil, muito difícil. É muito difícil mesmo, não é pouco. Eu tento, eu tento, às vezes uma tarja preta me ajuda a dormir. Mas acordo todo dia 5 e meia, 6 horas da manhã. Para dormir, eu às vezes assisto umas pegadinhas, para rir um pouquinho. [Risos.]
Você é otimista? Eu sempre acredito. O que não falta é alma boa. Eu sempre acredito na possibilidade do renascer. Acredito no bem.
E um pouco de BBB, na torcida por Babu, sempre. Por que ele tem que ganhar? É muito importante, muito importante mesmo, filosoficamente. Muito guerreiro, lutou a vida toda, acreditou. Era pobre e acreditou na possibilidade de viver através da arte. Isso é lindo. Eu falo sempre: "A vida levada através da arte é muito mais bonita de ser vivida". Eu acredito nisso. Você não pode deixar os seus sonhos. O homem sem sonhos é como um pássaro de asa quebrada.
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