por Douglas Vieira
Trip #276

Fabio Assunção se sente no auge na carreira, foca em ter o essencial por perto e em não interromper sua batalha pessoal contra o vício

Com os pés descalços e de moletom, Fabio Assunção abre a porta de seu apartamento. A barba está por fazer, mas bem distante da usada por Ramiro, o vilão barbudo da série Onde nascem os fortes, de quem ele se despede neste mês. Fabio está sereno em uma típica tarde de inverno carioca, com um sol acima dos 30 graus brilhando sobre o mar azul da Barra da Tijuca, paisagem que ele consegue avistar da varanda.

Enquanto trocamos as primeiras palavras, o ator sobe o enorme telão que estava ligado no duelo entre França e Dinamarca. “O meu projeto atual é a Copa do Mundo”, brinca. Atrás do jogo que se vai, surge uma estante com algumas peças de decoração, uma breve discoteca em vinil e uma ampla biblioteca, tremendamente organizada, com livros etiquetados e catalogados. “Contratei alguém para fazer isso, demorou cerca de três meses”, diz sobre os livros, produto que mexe com o lado mais consumista e apegado de Fabio. “Sim, compro muitos. E não consigo desapegar. Doar um livro é uma coisa muito bacana, mas não consigo.”

Barbas de molho

Desde seu início na novela Meu bem, meu mal, 28 anos se passaram, e hoje, aos 46, Fabio sente que está no momento de maior maturidade, em cena e na vida. Seu vilão trouxe à tona características novas a ele como ator e uma densidade com a qual gostou de lidar. Mergulhou profundamente no personagem que tanto contrasta com sua orientação política. “É o oposto do que acredito, é exatamente o contrário de como eu ajo com o meu filho, das conversas que tenho com ele”, explica sobre Ramiro, que entra em conflito e parte para o uso da violência com Ramirinho, personagem transformista de Jesuíta Barbosa. “Ramiro é um cara extremamente conservador, reaça, um criminoso. É como se eu estivesse mostrando o que acredito pelo avesso”, reflete, para explicar que tirou a barba assim que terminaram as gravações porque “parecia que estava levando o personagem pra passear”.

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Suas falas na vida, não decoradas, saem com naturalidade, mas com algumas pausas longas entre as frases, ditas entre um cigarro e outro. “Estou me dando essa oportunidade de ficar um pouco em silêncio, tranquilo. Sou muito prolixo, penso muito. Não sou muito objetivo.”

A imagem serena de Fabio contrasta com a que se criou dele no inconsciente coletivo, de um cara que surge em situações delicadas e confusões não explicadas. Mas esse não é um assunto do qual ele foge. Ao contrário. Não deixa, porém, de lembrar a dificuldade que tem ao encarar sua dependência química sendo a figura midiática que é. “A primeira vez que achei que as coisas estavam saindo do meu controle, em 2008, fui no AA [Alcoólicos Anônimos]. Cara, na hora que eu saí, tinha um paparazzo do lado de fora. Então, nunca tive a possibilidade de viver esse processo com privacidade.” Ele nunca voltou ao AA depois desse dia, mas entendeu que precisava de ajuda e procurou seus próprios caminhos, que o levaram na época a uma clínica nos Estados Unidos.

Na análise, que faz desde quando estreou na Globo, em 1990, segue firme. No caminho, experimenta quedas. Porém, como no futebol que ele ama, jogo difícil não é jogo perdido, e, corintiano que é, nunca foi acostumado a ganhar de goleada. “É um trabalho diário. Não sei como é para cada um, mas, tendo foco, é possível”, diz Fabio. Tem derrota, mas tem vitória. E segue o jogo.

Trip. Você pensa sobre a passagem do tempo? Já são quase 30 anos de carreira.

Fabio Assunção. De televisão são 28, se for contar de teatro amador, está quase em 30. Gosto da passagem do tempo, sinto ela menos fisicamente do que sinto na minha vida. Não é uma coisa que me preocupa, mas comecei a pensar mais agora, com esse personagem que fiz, que deixei a barba grande e percebi o quanto estava grisalho. Os 46 anos hoje não são como os 46 anos de 40 anos atrás, mas foi interessante me ver grisalho, ver que o tempo passou, ter consciência disso. Durante o trabalho, principalmente por ter ficado um tempo no sertão, um lugar que provoca muita reflexão, silêncio, comigo mesmo, acho que foi um momento de balanço em paralelo com a série. 

Que impacto esse tipo de personagem que o leva a um Brasil profundo tem em você? Eu conheci o sertão pernambucano quando fiz A paixão de Cristo, em 1995. Fiz também um filme com o Paulo Caldas [País do desejo, 2001], que a gente entrou um pouco aí para dentro. Mas acho que foi a vez que fui para o sertão com mais consciência política, um momento de virada de maturidade na minha vida, de uma transformação em várias coisas. Cada um de nós, quando vai para o sertão, mexe de um jeito diferente, não é uma paisagem fixa, não é um lugar para o qual você vai e sente a mesma coisa. Ele te espelha um pouco, é um lugar de desprendimento, de você reavaliar o que realmente é necessário, do que realmente precisa. Cada vez que fui ao sertão, tive uma leitura diferente, de acordo com a minha maturidade, com a minha possibilidade de pensar o Brasil e o ser humano. Essa última vez foi mais rica para mim. 

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O que marcou você? Foi uma época de chuva, não chovia havia muitos anos naquela região do Cariri, na Paraíba. E era uma coisa impressionante como chovia, a gente saía na chuva, as pessoas saíam, uma coisa linda. Nada se desperdiça. E sou de São Paulo, que é um lugar de consumo, um lugar de muita variedade cultural, de muita coisa acontecendo e de muito desperdício. Você vai jantar e aquele alimento sobra, muita coisa é jogada fora. No sertão, você tem o que é essencial. E acho que você consegue jogar isso para dentro de você.

“Não ia muito ao teatro. E não tinha relação com novela, não. Em casa, era tudo muito regrado”
Fabio Assunção

Pensando no trabalho em si, você esteve lá atuando com o Jesuíta Barbosa em cenas pesadas de pai e filho, cheias de violência e discussões atuais de gênero. Essas relações impactam sua vida pessoal, nas conversas que tem com seu filho, por exemplo? Acho que é o contrário, as conversas que tenho com o João influenciam na atuação. Tem uma coisa engraçada… Não quero falar do Jesuíta, da intimidade dele. Mas, de certa forma, o meu filho é um cara alto, esguio, magro, tem o biotipo do Jesuíta, apesar do Jesuíta ter dez anos a mais que o meu filho. E faço um pai que é o oposto do que acredito, é exatamente o contrário de como ajo com o meu filho, das conversas que tenho com ele. É um cara extremamente conservador, reaça, um criminoso, que manipula coisas. Esse personagem é quase um ato político, é como se eu estivesse mostrando o que não acredito, ou que acredito pelo avesso.

Você fala do Jesuíta com bastante carinho. Bati muita bola com ele, foi incrível trabalhar com o Jesuíta e tentar projetar a figura do meu filho nele. Ele fez essa analogia também. Pô, teve cenas de eu batendo nele, muito pesadas, e a gente se abraçava muito, se emocionava. Às vezes, falava: “Pô, cara, não vou falar isso, não tenho como”. Ele respondia: “Mas diz, porque é isso que ouço”. A gente foi construindo uma coisa muito prazerosa de ator, de cena, uma troca muito verdadeira. Foi muito legal e num momento muito precioso de discussão de gênero, de preconceitos, de desigualdade, discriminação e tudo mais, um prato cheio para falar sobre. E fazer isso em cena, mostrar isso com uma dose de energia, de emoção, sair do discurso e mostrar um pouco da ação disso, da realidade. Era difícil, mas a gente embarcava nas cenas e foi muito emocionante. Ele é um ator extremamente precioso, sensível. Uma troca incrível.

Esse papel exigiu você de uma forma diferente do que os frequentes galãs? Acho que sim. É um momento de mais maturidade. É um personagem incrível, que tem muito peso dramático, muito robusto, que tem muito conteúdo. Acaba sendo uma plataforma para eu jogar com mais consistência. Foi uma oportunidade de poder trazer algo mais sólido que tenho. Essa densidade você não encontra em qualquer personagem, em qualquer projeto.

Você se assiste? Assisto. Essa série eu vi inteira até agora.

Mas pensando em coisas passadas. O canal Viva reprisou recentemente Meu bem, meu mal, por exemplo. Aí não. É engraçado, porque, quando me vejo muito novo, parece que não sou eu. Às vezes passa Vamp, Meu bem, meu mal, Corpo e alma, ali nos anos 90, dos meus 19 aos 25, e fico: “Como é que você fez essa cena assim? Pô, respira, dá uma pausa, calma, cara”[risos]. Sou muito crítico também. Vendo hoje quando comecei, penso: “Como é que você conseguiu seguir na carreira, como é que foi possível?” [risos].

E você lembra como se sentia naquela época? Eu sentia que eu estava dando um show, que beleza de pessoa [risos]. Acho que a gente está sempre no nosso melhor, você nunca vai economizar.

Tem memórias da primeira cena que fez em Meu bem, meu mal? Acho que foi uma com a Sílvia Pfeifer, Yoná Magalhães, uma cena na sala. Vinha do teatro e falei: “Esse personagem é tímido, então, quando sentar, vou colocar os pés um pouco para dentro, sabe, um cara mais tímido”. Pensei em fazer isso. Aí a direção falou para mim: “Não, está fechado aqui” [mostra com as mãos um enquadramento fechado em seu rosto]. Na época que comecei, não tinha as oficinas que a Globo faz hoje, muito interessantes. Eu não tinha nenhum contato com a câmera antes, não sabia o que era plano, contraplano. Fui aprender fazendo. Fiz um teste, passei e já estava gravando 30 dias depois. E a televisão tem uma linguagem muito própria, tem um ritmo, um andamento de gravação... Você vai para o estúdio, tem 20 cenas e você faz… Muitas vezes sai de um estado de espírito e vai para outro, com densidades e níveis emocionais completamente diferentes, sai de uma cena mais engraçada e vai para uma de desespero, esse entrar e sair desses lugares da alma.

Bem diferente de fazer cinema, por exemplo. O cinema é outro tempo, você faz cinco cenas, seis, em um dia. Eu já gravei 42 cenas em um dia na TV, cenas curtas, mas uma atrás da outra.

Com essa intensidade toda, como fica quando termina? Dá um vazio. A primeira coisa que fiz quando acabou o trabalho foi tirar a barba, porque eu estava até com dificuldade de sair de casa em função de parecer que estava levando o personagem para passear. E, como era muito característico do Ramiro, era como se eu tivesse carregando o personagem o tempo todo. Eu tirei.

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Você não é de acumular muitos projetos simultâneos. É bom dar uma respirada. Já teve vez de eu estar fazendo Os Maias na TV, Quem tem medo de Virginia Wolf? no teatro – aquela montagem do João Falcão, com [Marco] Nanini, Marieta [Severo], Silvinha Buarque – e Bellini e a esfinge no cinema. Isso foi em 2000, eu estava fazendo os três ao mesmo tempo, mas com 18 anos a menos.

Que outros trabalhos mais marcaram você? Acho marcantes as duas peças que eu dirigi [O expresso do pôr do sol, 2012; Dias de vinho e rosas, 2015]. Na televisão, destaco o Rei do gado [1996], que foi a primeira novela em que de certa forma eu tinha um personagem mais central; Labirinto [1998], a primeira série em que eu era protagonista; Os Maias [2001] era uma série muito fodona. Celebridade [2003] eu acho que foi uma novela que marcou. E agora, esse personagem que eu acabei de fazer, me marca. Trabalhei coisas que eu não tinha feito ainda. 

Você se desprendeu do galã? Acho que vai para outro lugar, que tem uma frieza.

Você sempre foi marcado por ser o galã dos olhos azuis. Apareceu nas capas de cadernos da Tilibra lá nos anos 90, virou Colírio da revista Capricho. Não teve como fugir disso por anos. Isso o  preocupava ou você aproveitava? É difícil. Quando você começa a trabalhar, fica chateado quando te chamam de galã. “Porra, não estão reconhecendo meu trabalho!” Mas hoje já acho legal. “O cara não consegue escapar do galã!” Acho maneiro. “Até de barba o cara continua galã!” Poxa, obrigado, pessoal, valeu. É engraçada essa coisa do galã. Na verdade, nunca me achei galã, tipo, estou fazendo um galã. 
Eu acho que a sociedade lida muito com rótulos, a gente taxa as pessoas. É impressionante a dificuldade que as pessoas têm, que a gente tem, em reler uma outra pessoa, de uma outra forma.

Você gosta de relações estáveis? Gosto. Eu tive um casamento com a Priscila [Borgonovi], aí tive um relacionamento de bastante tempo com a Karina [Tavares]. Foram oito anos com a Priscila, dez anos com a Karina, são as mães dos meus filhos. Tive namoro de dois anos e meio, de dois anos.

E como é a relação com as mães dos seus filhos hoje? Superboa. Junto todo mundo, por mim juntava todo mundo sempre. Hoje tenho uma relação excelente com a Priscila, com a Karina também, minha amigona.

Vocês conversam mais sobre os filhos? Com a Priscila é mais sobre o João, até porque é o ritmo de vida dela, ela trabalha muito à noite [Priscila é relações-públicas], que é o momento que tenho mais para conversar. Agora, com a Karina, a gente tem vários assuntos, conversa sobre tudo. Mas acaba que o foco fica mais nas crianças. Quais são as atividades extracurriculares que vão fazer, o que seria mais interessante.

Você vê algum deles olhando para sua carreira? O João fez um filme comigo [Entre idas e vindas, de José Eduardo Belmonte]. Foi extraordinário, ele arrasou. Ele fez de um jeito simples.

Você se viu nele? Eu acho ele melhor que eu [risos]. Ele foi tão econômico, uma sinceridade, uma coisa tão verdadeira, não estava interpretando, estava vivendo. É uma outra geração. Eu, adolescente, quando comecei a fazer teatro, parecia que tinha que mostrar trabalho, então tinha que mostrar o personagem. No pain, no gain. Se não estivesse suando, não tinha personagem, sabe? E hoje tem uma coisa contemporânea que os argentinos fazem muito, os ingleses fazem muito, que é uma coisa que flui mais, mais econômica. 

Qual o cinema que te interessa hoje no Brasil? A gente tem muita coisa legal. Pernambuco é um polo, o Kleber Mendonça Filho, tem muita coisa legal lá.

Você já dirigiu um documentário em curta-metragem sobre o samba de coco de Arcoverde. Você se vê dirigindo mais vezes? Olha, esse documentário foi feito sem planejamento nenhum. Levei as três câmeras que tenho e a gente foi lá e fez. Eu e a Pally [Siqueira]. Na época, a gente namorava, ela nasceu em Arcoverde [PE], e a gente fez um resgate do samba de coco. Gosto muito de documentário. Dirigir é uma coisa que eu quero fazer mais, e só dirigi teatro, então eu queria ter um projeto de cinema.

“[A luta contra a dependência] é um trabalho diário. Mas, com foco, é possível ”
Fabio Assunção

Você acha que dirigindo consegue aprender coisas que não aprenderia se estivesse apenas atuando? Sim. Dirigir é você entrar na alma dos personagens sem o sofrimento que é atuar. Porque existe um sofrimento, tem um se colocar em cena fisicamente, emocionalmente, é uma malhação. Ao dirigir, você se joga da mesma forma, mas intelectualmente. É questão de trabalhar o conceito, de pensar. Por exemplo, quando você faz um personagem, de certa forma, tem uma visão limitada. E, quando você dirige, percebe as possibilidades que o personagem tem e que às vezes o ator não está enxergando. Dirigir enriquece o ator.

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O que a vida artística trouxe que você acha que não teria sem ela? Foi uma possibilidade de leitura do mundo, de olhar para o mundo, para o ser humano de uma forma única. Eu tenho uma troca, uma dificuldade com relacionamentos formais, relacionamentos distanciados, sou muito de sentir a pessoa. Essa troca de energia. Eu acho que a vida artística me trouxe humanidade, essa permissão de troca. Me deu tudo que eu tenho de legal, e eu estou falando de coisas imateriais, de valores, estou falando sobre flexibilidade, a forma como me relaciono com os meus filhos, que é uma troca muito verdadeira. Tudo isso a vida artística me trouxe, uma forma de ver o mundo.

Tem alguma coisa em mente para agora? Tem, mas eu estou dando uma avaliada. Estou vendo. Achei muito legal ter acabado a série e ter começado a Copa do Mundo, que é um negócio fenomenal. Estou vendo todos os jogos. E a Argentina está com bons pontos, com o negócio do aborto [a interrupção da gravidez foi aprovada em votação na Câmara dos Deputados], estou quase torcendo para ela [a entrevista foi feita em 26 de junho]. Meu filho está de férias, minha filha também, agora a gente vai ficar vendo os jogos.

Como é a rotina com os seus filhos? A rotina deles é São Paulo, eles moram com as mães, e eu, no Rio de Janeiro, estou fixo agora aqui. Vim para cá com 19 e aí fiquei. Depois, teve Rio e São Paulo ao mesmo tempo, mas, no ano passado, decidi que queria uma base e aqui é o meu local de trabalho. Amo São Paulo, meu DNA é de lá, gosto daquelas ruas. Então, a rotina deles é com as mães, escola, tudo e tal. Mas eles costumam vir bastante para cá, passam o fim de semana e voltam. E férias a gente divide, se as mães estiverem trabalhando, eles ficam mais comigo, até para compensar esse período todo.

Você é muito ligado a eles? Muito. Muito. Muito. Muito. Muito. Muito. Muito. São duas relações bem diferentes, meu filho tem 15 anos, minha filha tem 7, são duas pessoas diferentes. Eles não foram criados juntos, porque são duas mães, mas procuro sempre trazer os dois juntos, até para fortalecer essa questão dos irmãos. Acho importante eles terem essa questão de família mesmo. E enche mais a casa, é mais legal.

Você fala dessa relação com eles e da importância da família, e lembro de você contar para a coluna da Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, que era muito difícil para você não conviver com sua família há anos. Leva essa experiência para sua forma de lidar com eles? Com certeza. Inclusive essa reaproximação com a minha mãe e com a minha irmã, que está acontecendo, acho que é uma forma de dizer para os meus filhos que a gente tem que tolerar também, aceitar as diferenças com os pais. Em determinado momento, passou a ser difícil, ainda mais quando vim para cá, com 19, fui me distanciando, muito trabalho, a gente foi desafinando um pouco. Agora a gente está fazendo um exercício de aceitar mais as diferenças. Obviamente que todos se transformaram, meus pais também evoluíram, meus irmãos, eu. É um outro momento na vida de todo mundo. Estou tendo um reencontro lindo com a minha irmã agora. Família é um grande exercício de aprender a ouvir, a perdoar, a você se perdoar. Estou em um momento em que quero aproveitar. Eu sou o irmão do meio, ela é mais velha, a Mara Lúcia, e o mais novo é o Fernando.

“A primeira vez que fui no Alcoólicos Anônimos, saí e tinha um paparazzo do lado de fora”
Fabio Assunção

Como foi sua infância? Sempre morei na rua Pelotas, na Vila Mariana, até os 19, no mesmo apartamento. Na rua do Sesc, só que não tinha Sesc. Ali era uma loja gigante de luminárias chamada Pelotas. Eu jogava taco, brincava de polícia e ladrão, jogava bola naquelas ruas, os prédios não tinham nem grade.

Você começou a fazer teatro com que idade? Lembra o que te motivou? Tinha uns 15 anos. Eu queria mesmo era música. Tinha uma vizinha que tocava piano, ficava ouvindo e me deu vontade de aprender. Isso com 9 anos. E tive uma banda. Com 15 mais ou menos, comecei a fazer teatro. A sensação que tenho é de que comecei a fazer pelo afeto que tem. Os exercícios em aula te juntam muito com outras pessoas, tem muito toque, são muitos exercícios que te aproximam e você vira uma turma. É muito legal isso na nossa profissão. Temporariamente, você tem aquela família, aqueles amigos e é uma equipe de trabalho que se forma, daqui a pouco você está com outra. E eu acho isso muito afetivo.

Você fez teatro pensando em carreira? Se não fosse a música nem o teatro, eu sempre gostei muito de medicina, gostaria de ter sido médico. Sou ligado nesse olhar para o outro e muito sensível à enfermidade do mundo. Eu acho que eu teria um bom olhar de médico. Eu gostava bastante.

Você ia ao teatro quando jovem, assistia a novelas? Não ia muito ao teatro, não tive uma formação para isso. Foi uma coisa que veio comigo. E não tinha relação com novela, não. Em casa, com os meus pais, meus irmãos, era tudo muito regrado. Volta da escola, a rotina muito certa, hora do jantar, depois via o Jornal Nacional e cama, porque a gente estudava de manhã. Nunca tive um quarto meu, com uma televisão. A gente dividia os três o mesmo quarto. Não tinha essa moleza que os moleques têm hoje.

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Sem luxos... Nada de luxo, mas a gente tinha as coisas. Meus pais se empenharam muito, a gente não passou dificuldade. Nosso lazer era brincar na rua, descer e ficar com os amigos. Não era fazer viagens e ter o novo iPad. Era uma vida justa, correta.

Seus pais eram rígidos? Se for comparar com a formação que a gente dá hoje, com o lugar de fala que as crianças têm, é um degrau absurdo. Os pais tinham uma autoridade. Meu pai tinha uma autoridade que não era negociável.

Você falou que nunca teve um quarto seu e logo que você começou a trabalhar na Globo já mudou de casa. Lembra desse sentimento? É incrível, foi a época em que eu comecei a comprar CDs.

Teve um impulso consumista? Sim, acho que fui aprendendo a lidar com isso. Teve uma mudança gigante, muitos sentimentos. Tem uma grande alegria quando você conquista esse espaço de o público gostar de você, acompanhar seu trabalho e falar sobre a personagem. Tem também, claro, uma questão de exposição, de você não ser mais anônimo, de ter uma perda da sua privacidade. Tudo isso misturado. Mas aquele início de construir uma carreira, de estar começando a vida, dar os primeiros passos profissionais, estar dando certo, conseguir independência, pagar suas contas e poder viajar, conhecer lugares no mundo, e trocar com figuras questionadoras, inquietas em relação ao país que a gente vive, poetas, figuras sensíveis...

E estar de frente com pessoas que até outro dia eram personagens que você só conhecia da TV. Como era lidar com isso? Mexeu com a sua cabeça, seu ego? Pô, o Lima Duarte era o meu avô [em Meu bem, meu mal]. Sem dúvida que isso me transformou. A questão do ego é muito nociva, não te leva para lugares bons, é muito difícil de você lidar. O ego te coloca numa posição muito central, autocentrado, e você desperdiça esse olhar para o outro. Acho que, nesse início, não tinha preparo para lidar com isso. Aí fui aprendendo a administrar. É uma profissão que te joga muito no centro das atenções.

“A vida artística me trouxe humanidade, essa permissão de troca. Me deu tudo que eu tenho de legal”
Fabio Assunção

Nesse contexto de exposição, sua privacidade hoje em dia é respeitada? Muito, no meu dia a dia, sem dúvida. No começo, sendo mais novo, eu era muito mais abordado, mas achava muito legal, não era desconfortável. Hoje, já vejo de outra forma, gosto de estar num mesmo espaço que outras pessoas, mas sem holofote.

Como anda sua rotina de vida? Desde o ano passado, dependia dos roteiros da série. Mas, antes de começar a gravar, era acordar muito cedo, fazer pilates, malhar. Eu estava nessa pegada.

Sempre exercícios mais solitários? Eu faço pilates com a Jaque, que a Claudia Raia me indicou. Gosto de pilates porque mexe com tudo, força, resistência, equilíbrio, é um exercício mais holístico. Sou muito tranquilo, fico muito em casa.

Tem um violão ali, você ainda toca ele? Esse violão foi da minha mãe quando ela era criança. E aí, quando eu vim para o Rio, ela me deu. Eu tenho três guitarras também e tinha um piano. Aprendi a tocar nesse violão.

Sonhava em fazer sucesso na música? Com 14, 15 anos, minha banda tocava rock, porque os anos 80 foram um período potente das bandas de rock nacional. Legião, Titãs, Plebe Rude, Capital Inicial, 365, Garotos Podres, Inocentes, RPM. Porra, tinha muita coisa. Se aquela banda tivesse dado certo, eu certamente seria músico. Gosto demais de música, ela me acompanha o tempo todo. Durmo ouvindo música.

Costuma ir a shows? Não vou muito, não. Não saio muito, sou mais caseiro. Agora estou voltando a ter mais vida social, a sair mais. E quando eu estou trabalhando então...

Que tipo de hobby ocupa sua vida hoje? Gosto de fotografia e, quando eu posso, de viajar. Gosto de mergulhar, sou mergulhador, tenho cinco graduações, já fiz uns cem mergulhos.

Onde você gosta de mergulhar? Vai ficar um pouco metida a nossa entrevista, porque eu tive a oportunidade de ir para o Índico várias vezes, Tailândia, Maldivas, Ilhas Maurício, além do Caribe. Mas acho muito metido falar isso. Tipo “mamãe, eu venci”. Sou muito low-profile, não fico divulgando as coisas que faço. Eu viajo e volto. Agora, com essa coisa de Instagram, você acaba até postando. Outro dia até postei uma foto minha em um barco. A Maria [Ribeiro] que tirou, ela gostou, brinca que estou popstar nessa foto.

Como está esse momento com a Maria Ribeiro? Faz quatro meses que estamos juntos, mas a gente se conhece há muitos anos. Tivemos esse reencontro agora só. Está num momento incrível.

Quais os planos futuros? Viajo sempre que acabo um trabalho, agora eu vou viajar para a Itália. Vamos eu e Maria para Itália.

Qual viagem mais marcou você? A viagem para a Índia foi difícil, foram duas semanas, era um lugar de meditação, outra cultura completamente diferente. Tem uns seis, sete anos. Chegou uma hora que precisava do celular, é impressionante como fez falta. Fiz viagens muito diferentes, muito marcantes. As duas viagens que fiz para o Japão, em momentos muito diferentes, uma foi em 1997 e a outra, em 2012, no ano que o Corinthians foi campeão mundial lá, fui com o meu filho.

Viaja bastante com os filhos? Com a Ella ainda não. Ela tem 7, comecei a viajar com o João meio por aí. Está nos planos. Com o João, faço viagens que de certa forma estou formando ele. A gente fez uma para a África do Sul, que foi incrível, logo depois que o Mandela morreu. Fomos em Robben Island, na cela do Mandela, no Museu do Apartheid, Pretória, Cidade do Cabo, em Soweto, na casa do Mandela. Tento juntar as duas coisas, estar com ele em uma viagem, conhecer um lugar novo, mas ao mesmo tempo permitir que ele conheça outras culturas. Não é só uma viagem de lazer.

Na vida de um ator de muito sucesso, imagino que seja possível ficar isolado de muitas coisas da “vida real” dentro de seus próprios privilégios. Essa é uma coisa com que eu me preocupo muito.

O que é esse mundo real que você quer mostrar para eles? Não sei se é uma coisa objetiva, é proporcionar essa experiência. Não sei de fato o que ele está tirando daquilo. Acho que o mundo real é a forma como a gente vê o mundo. Já tive fases muito pessimistas, de achar que o mundo estava todo errado. E já tive fases de me conectar com uma positividade. Na verdade, o mundo inteiro está dentro da sua cabeça, na forma como você lê esse mundo.

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Essa percepção mudou bastante com o tempo? Sou uma figura completamente transformada do que era com 20 anos. Tenho uma percepção muito diferente da vida, do tempo. Estou aqui com você e estou no presente, não estou pensando que “assim que acabar isso, eu vou fazer não sei o quê”. Saboreio. E, quando a gente terminar, meu filho vai chegar, a gente vai ver o jogo da Argentina, e vou viver esse momento. A ansiedade é uma coisa difícil de lidar, hoje eu já me relaciono com isso de outra forma.

E o imediatismo atual talvez gere mais ansiedade. Sim. Eu acho que o WhatsApp é uma coisa a ser estudada.

Você usa bastante? Sim, minha filha, por exemplo, começou a ter o WhatsApp há um mês e estou falando com ela 20 vezes mais. Mas acho que esse mundo digital vai construindo bolhas. São subdivisões do mundo real.

E como você faz para lidar melhor com essa ansiedade hoje? A minha ansiedade vem mais se, por exemplo, não tenho uma programação, alguma meta. Tempo morto me dá muita ansiedade. Faço agenda, sou muito organizado.

Estou vendo sua biblioteca, superorganizada. Sim, ela é catalogada. Contratei alguém para fazer isso, demorou cerca de três meses.

Qual o último livro que você leu? O da Maria [Tudo que eu sempre quis dizer, mas só consegui escrevendo]. O último que comprei foi um livro de fotos do Woody Allen. Compro muito livro na livraria do Projac. Estava lendo Como falar com um fascista, da Marcia Tiburi. É brilhante.

Que autor é sua leitura obrigatória? São mais livros ligados ao teatro, a trilogia do Constantin Stanislavski [dramaturgo russo morto em 1938] foi uma coisa que mexeu muito comigo, mas não é literatura, é o método dele. O que mais me dá prazer é Fernando Pessoa. Leio e parece que é o que eu queria dizer. Nelson Rodrigues também é uma leitura incrível, que fala muito dessa questão das relações familiares.

Voltando ao lance da maturidade, você diz ser uma pessoa muito mais centrada hoje. A questão da dependência química, e o fato de isso se tornar público uma década atrás, foi determinante nesse processo? Sem dúvida. Naquele momento, me sentia completamente sozinho, quase nenhum contato com os meus pais e irmãos, tinha me separado da mãe do meu filho, a Priscila. Tinha muita expectativa com o primeiro filho, e, na separação, ele tinha 1 ano e 8 meses, então não pude viver tão de perto essa primeira infância. E acho que todo o meu processo de ir para a televisão, todo esse contexto que passei a viver; chegou uma hora que tinha que interromper com tudo aquilo, e de certa forma isso implodiu. As questões de ego que a gente estava falando, todo esse contexto.

“Quando você começa, fica chateado quando te chamam de galã. Mas hoje acho legal. ‘O cara não consegue escapar do galã!’ Acho maneiro ”
Fabio Assunção

Precisava ter outro tipo de atenção? Não sei te dizer exatamente. Não acho que era uma coisa de chamar atenção, era uma falta 
de ferramenta na época para eu poder me relacionar com as minhas dores ou com as minhas dificuldades, é importante a gente ter contato com os nossos sentimentos. Então, se você está feliz, se está com saudade, se tem uma perda ou se acaba um relacionamento, tem que vivenciar isso e dói. Essas coisas… Todo mundo sente o impacto desses sentimentos, não são sentimentos fáceis. Então acho que foi uma forma de não sentir, uma coisa que eu não tinha preparo para me relacionar.

Em 2009, você deu uma entrevista para o Fantástico e disse que é importante falar sobre a dependência química. Aí, hoje, em 2018, a gente ainda vê ações de hostilidade em lugares como a Cracolândia. Pensa no efeito que tem uma pessoa como você falar sobre isso? Penso. Vou te falar uma coisa: a primeira vez que achei que as coisas estavam saindo do meu controle, em 2008, fui ao AA [Alcoólicos Anônimos]. Estava me sentindo envergonhado, muito preocupado com as pessoas saberem. Cara, na hora que eu saí, tinha um paparazzo do lado de fora. Então, eu nunca tive a possibilidade de viver esse processo com privacidade. Deixa eu entender o que é isso que está acontecendo, o que estou vivendo, fui lá, sentei, ouvi. Eles perguntaram se tinha alguém novo, vindo pela primeira vez. Fiquei quieto. E, quando saio, sou fotografado e sai uma nota no jornal.

Você teria voltado, se não tivesse acontecido aquilo? Teria. Conheci pessoas que conseguiram fazer o tratamento com privacidade e com tranquilidade e que puderam vivenciar essa travessia, porque é uma travessia. Mas isso hoje não tem mais importância.

Você sempre volta o olhar para o mundo e a política. Tinha discussões assim em casa? Não. Tinha uns 16 anos, ali, junto com o teatro, quando comecei a ter uma consciência política, que ficou mais forte a partir do governo Lula, de 2002. Comecei a prestar mais atenção em política. Na época do Fernando Henrique, 
trabalhava muito. E na segunda eleição da Dilma comecei realmente a ter uma ligação com a política. Todo aquele ano de campanha para a reeleição dela, e depois o golpe e tudo isso que a gente está vendo.

E aí você se filia ao PT em 2017… Tive um convite do Lula, numa conversa que tivemos em um jantar. Ele queria formar uma comissão para discutir política de drogas e queria que eu participasse. Falei que sim. E a gente fez algumas reuniões, ele disse que era muito importante conversar sobre isso com as famílias brasileiras.

Você se vê participando de projetos assim? Existe esse grupo, formado por profissionais da área, figuras que trabalham com gestão pública de saúde, psicanalistas. A gente está sempre trocando. O Brasil tem muito o que mudar nessa área, que é muito central. Se jogar a droga na ilegalidade, ela vira um instrumento de extermínio. É muito pesado o que falei, mas o que o Dória fez na Cracolândia foi uma violação de direitos humanos flagrante, uma coisa absurda.

A gente sempre ouve sobre a luta contra a dependência ser diária. Você está sempre focado nisso? Sim, é um trabalho diário mesmo. Não sei como é para cada um. Mas é isso. Eu acho que, tendo foco, é possível.

Como é lidar com essa montanha-russa? Tem algo que sirva para centrar você quando tem um dia ruim? Não, é força de vontade e determinação. A questão não é só a dependência química. Tem várias coisas. As pessoas sofrem por várias razões, por medo, ou porque são eufóricas, ou porque são deprimidas, ou porque sentem muita raiva. O equilíbrio é você aprender a lidar com essas forças a seu favor e a favor do mundo. Essa não é uma questão exclusiva das pessoas que têm ou tiveram histórico de uso de alguma substância, seja ela lícita ou ilícita, porque tem muita gente que desenvolve dependência de substâncias lícitas. A gente está aprendendo, não é uma resposta que só eu preciso encontrar.

Créditos

Fotos: Fernando Young | Coordenação Geral: Adriana Verani | Estilo: Leila Pigatto | Beleza: Lucas Vieira | Assistentes de Foto: Fefê Smilgat e Carlos Henrique do Nascimento | Tratamento de Imagens: Henri Junqueira

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