O que Fernando Meirelles buscava em "Dois Papas"?
"O filme é sobre a tolerância, o perdão e o autoperdão. A graça é ver estes homens criando um vínculo afetivo apesar de discordarem"
Um abraço acalorado entre Francisco Bergoglio e o então papa Bento XVI sela a despedida do argentino, após uma viagem ao Vaticano. Os dois ensaiam passos de tango, a convite do argentino, então arcebispo em Buenos Aires. A cena é uma das tantas que o brasileiro Fernando Meirelles, diretor de Dois Papas, escolheu para dar alguma leveza ao longa-metragem, que chega agora à Netflix. "O roteiro inicial não tinha muito humor, mas, no desenvolvimento, fui sentindo que a melhor maneira de fazer aqueles diálogos ficarem envolventes seria buscar um tom muito íntimo e pessoal e colocar o máximo de piadas possível", diz Meirelles.
O resultado é uma obra que desponta bem cotada para o Oscar 2020 e foi indicada em quatro categorias no Globo de Ouro: melhor filme – drama; melhor ator, com Jonathan Pryce (papa Francisco); melhor ator coadjuvante, com Anthony Hopkins (papa Bento XVI); e melhor roteiro, com Anthony McCarten. A premiação ocorre em janeiro do ano que vem. "Não tinha nenhuma expectativa que um filme sobre dois senhores conversando sobre a igreja e suas culpas pudesse chegar tão longe", disse.
O longa-metragem retrata a ascensão de Bergoglio, em 2013, ao posto de Papa Francisco. Desde então, temas como aborto, o fim do celibato entre padres e a ordenação de mulheres ganharam força no Vaticano. Ainda assim, Meirelles acredita que o argentino ainda não conseguiu fazer tudo o que pretendia. "O Papa entrou em campo como um Messi que veio para virar o jogo, mas a instituição é tão pesada que por hora ele tem mudado menos do que pretendia ou do que eu achava que ele pretendia", comenta.
O filme é marcado por conversas entre Bento XVI e Francisco Bergoglio, que manifestam posições ideológicas distintas. A escolha dos cardeais pelo alemão, em 2005, já sinalizava o embate entre conservadorismo, uma das bandeiras principais de Joseph Ratinzger, e o progressismo do argentino. Para Meirelles, no entanto, o objetivo do filme é educar o público sobre a possibilidade do diálogo. "Confesso que não tenho grande interesse pelo Vaticano. Para mim, o tema de Dois Papas é a tolerância, o perdão e o autoperdão."
Abaixo, o diretor de longas como Cidade de Deus, O jardineiro fiel e Ensaio sobre a cegueira conversa com a Trip sobre o filme, sua relação com a religião e o conturbado momento do audiovisual brasileiro.
Trip. Você acredita em Deus?
Fernando Meirelles. Um Deus com quem a gente fala e ele escuta, que fica nos olhando e se importa conosco? Não! Mas que existe alguma coisa que permeia tudo que nos cerca, isso deve existir. Uma lógica que é como uma onda ou uma correnteza, que quando surfamos a favor tudo fica mais fácil. Em um Deus assim eu acredito mais. Talvez nem deva ser chamado de Deus, talvez deva ser chamado de outra coisa: natureza, essência, algoritmo... Sei lá. Esta coisa que nos liga a tudo e a todos é um mistério que nunca desvendaremos e que talvez nem devêssemos tentar desvendar. Uma samambaia não sabe nada sobre botânica e, no entanto, faz tudo certinho. Para que mais? Carpe diem.
Como foi fazer um filme sobre uma religião com mais de 1 bilhão de adeptos? São 1.2 bilhões de católicos, mas o filme não é sobre religião e nem sobre a igreja. Fala sobre dois líderes que são da igreja, mas poderiam ser de qualquer outra instituição. Confesso que não tenho grande interesse pelo Vaticano. Para mim, o tema de Dois Papas é a tolerância, o perdão e o autoperdão. A graça é ver estes homens aprendendo a se comunicar, criando um vínculo afetivo apesar de discordarem, é um filme sobre a possibilidade do diálogo.
“A graça é ver estes homens aprendendo a se comunicar, criando um vínculo afetivo apesar de discordarem, é sobre a possibilidade do diálogo”
Fernando Meirelles
O filme procura deslocar a questão da fé e da adoração divina para um discurso mais sobre perdão e a desigualdade social? Creio que o filme tem camadas para todos os gostos. No nível pessoal, da psicologia, tem esta camada da culpa, do perdão e da tolerância que falei. Há também a agenda política do papa Francisco, sua opção por trabalhar pelos pobres, a crítica ao nosso sistema econômico. No nível espiritual, o filme fala em sentir-se conectado, da nossa capacidade de sentir a presença de Deus — ou algo semelhante — e que às vezes esta conexão se perde. "Somos como uma televisão”, diz Bergoglio. Às vezes o sinal está bom, às vezes não pega nada e é aí que atravessamos "a noite escura da alma", como chamou o poeta/teólogo espanhol João da Cruz. Mesmo para alguém que faz yoga ou meditação, esta ideia da perda do sinal deve fazer algum sentido.
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A partir da visão dos dois últimos papas, o filme propõe um debate sobre a igreja católica enquanto instituição. Existe um vencedor na disputa entre reformismo e conservadorismo? O filme apresenta este debate da igreja entre tradicionalistas, que acham que a igreja deveria focar em nos ligar ao divino evitando distrações do mundo ao redor, e os reformistas, seculares, que acreditam que a igreja deve fazer parte das questões do mundo, pois sem isso não chega-se ao divino. Mas, para ser honesto, eu não estava muito interessado neste debate. A igreja está tão polarizada como o Brasil ou o resto do mundo e o filme fala sobre este estado de polarização no qual vivemos. A turma tem muitas certezas hoje em dia. Tenho medo disso. Prezo as minhas dúvidas e a minha ignorância.
E como foi dirigir Anthony Hopkins? O que um autor dessa envergadura agrega ao processo de feitura do filme? Confesso que eu tinha um certo preconceito em relação ao papa Bento XVI quando comecei, mas pelo, olhar e a interpretação do Hopkins, compreendi melhor o alemão e o filme ficou menos preto e branco, ganhou tons de cinza e algumas matizes de cores. O fato é que estes dois papas não são tão opostos como eu imaginava e como gostamos de pintá-los.
“Onde a igreja está mais atrasada é no papel que dá às mulheres. E parece que nesta área o papa Francisco não conseguirá muito”
Fernando Meirelles
Como você acha que os católicos têm respondido às manifestações do papa Francisco? O papa entrou em campo como um Messi que veio para virar o jogo, mas a instituição é tão pesada que, por hora, ele tem mudado menos do que pretendia ou do que eu achava que ele pretendia. Para mim, onde a igreja está mais atrasada é no papel que dá às mulheres. A igreja é medieval neste ponto e parece que nesta área o papa Francisco não conseguirá muito. Fazendo este filme percebi que ele é um destes papas muito amados pelos seus fiéis, eu o considero uma das vozes mais importantes no mundo hoje. É um dos poucos que vai contra a onda de nacionalismo e populismo que assolou o mundo, dos poucos que falam em construir pontes, quando todos estão pensando em construir muros.
O jornal britânico The Guardian, na crítica que fez do filme, afirmou que o longa é tímido ao abordar problemas importantes da Igreja na história recente, como os casos de abuso e pedofilia. Você concorda? Claro que concordo. Os escândalos da igreja são um tema que daria um bom filme, mas não é o tema do filme que eu fiz. Irishman também é tímido e evitou abordar os problemas da igreja e Joker falhou ao não falar em casos de pedofilia. Talvez também não sejam filmes sobre isso. Estou dando uma resposta irônica porque estas críticas que falam sobre o que o filme não abordou sempre me parecem meio esquisitas.
E como foi lidar com esses temas sem parecer apelativo? Filmei um diálogo maior sobre a pedofilia na igreja, mas na versão final acabei optando por reduzi-lo. O problema é que o tema é tão sério que, se passasse um pouco do ponto, o filme viraria uma história sobre os problemas da igreja, como gostaria o Guardian. Desequilibrava tudo. Este é um tema que ou a gente abraça ou é melhor apenas mencionar, para ser honesto, e seguir em frente. Foi o que fiz. São opções. Viver é perigoso.
“O audiovisual voltará a funcionar, me preocupa mais o que acontecerá com a educação e com os nossos biomas. Essas perdas não se recuperam”
Fernando Meirelles
O filme tem muito humor, mas não deixa de tratar da seriedade do tema. Como foi equilibrar as duas vertentes? O roteiro inicial não tinha muito humor, mas, no desenvolvimento, fui sentindo que a melhor maneira de fazer aqueles diálogos ficarem envolventes seria buscar um tom muito íntimo e pessoal e colocar o máximo de piadas possível. No desenvolvimento do projeto, no período de preparação, com a ajuda de muita gente, o roteiro foi chegando em seu formato até ser filmado. Descobri uma coisa curiosa: comer uma pizza com a mão não tem graça nenhuma, mas quando um papa faz isso, por alguma razão, ganha uma graça. Abusei deste efeito e isso humanizou os personagens e gerou algumas risadas.
Como recebeu as indicações para o Globo de Ouro? Não tinha nenhuma expectativa de que um filme sobre dois senhores conversando sobre a igreja e suas culpas pudesse chegar tão longe. A nomeação para mim já valeu como um reconhecimento do trabalho da equipe. Este é um ano difícil para prêmios, há muitos filmes bons na lista. Dos filmes que estão no páreo, o que mais me tocou foi Joker e em todos os aspectos. Melhor roteiro, melhor direção, melhor cenografia, melhor tudo. Achei pena A vida invisível, do Karim Aïnouz, não ter entrado na lista de filmes estrangeiros. É um filmaço de uma sensibilidade rara.
Como tem visto os ataques que o governo de Jair Bolsonaro tem feito ao audiovisual no Brasil? É a cara dele. O mais irônico é fazer isso em um ano onde o Brasil ganhou dois prêmios em Cannes, dois prêmios em Veneza, ganhou San Sebastian e algumas animações brasileiras fizeram strike em festivais pelo mundo, de Havana aos Estados Unidos.
O que a atual gestão pode significar para o futuro do cinema nacional? Muitos colegas estão com seus projetos parados aguardando a burocracia voltar a funcionar. Um ano perdido. Mas em 2022, democraticamente, podemos reverter isso. O audiovisual voltará a funcionar imediatamente, me preocupa mais o que acontecerá com a educação e, principalmente, com os nossos biomas. Essas perdas não se recuperam.
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