Thalma de Freitas é cantora, compositora, atriz, mãe, médium, preta. Vivendo nos Estados Unidos, a carioca enfrenta suas sombras e brilha sendo a única brasileira indicada ao Grammy 2020
"Em 2012, eu realmente estava saturada de ser a Thalma de Freitas", diz a carioca, sobre o ano em que trocou o Brasil pelos Estados Unidos, engravidou e teve um surto psicótico que a deixou internada em um hospital psiquiátrico por três dias. O período foi de luta. Ela precisou reconstruir as narrativas que existiam sobre si própria, fazer as pazes com sua mediunidade, se aceitar na dura função de mãe e encontrar sua voz enquanto compositora. Não foi fácil, mas ela sobreviveu e saiu mais forte. Mais alforriada do que nunca e cheia de coragem para falar com sinceridade sobre suas luzes e sombras.
Este ano, ela celebra a indicação do disco Sorte!, parceria com John Finbury, ao Grammy 2020 – Thalma é a única representante do Brasil entre os indicados. Até janeiro, ela estará em cartaz em São Paulo no espetáculo Pretoperitamar, o caminho que vai dar aqui, que celebra os 70 anos do cantor e compositor paulista Itamar Assumpção.
Para o ano que vem, ela pretende lançar dois novos trabalhos: um em parceria com Mateus Aleluia e outro com seu pai, Laércio de Freitas. Em primeira mão na Tpm, Thalma mostra uma composição exclusiva, parceria com o baiano Tiganá Santana, Iris e Arco.
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Em um papo com a Tpm, Thalma refletiu sobre trampo – "canto muito melhor melhor do que atuo" –, maternidade – "eu detesto a função de mãe" –, racismo – "não gostaria de estar na pele dos meus inimigos" – e mais. Se liga:
Tpm. Seu pai, Laércio de Freitas, é pianista, maestro, compositor. Trabalhar com música era um sonho de criança?
Thalma de Freitas. Não. Eu não queria trabalhar na noite, cantar para bêbado. Queria trabalhar com teatro. Até que conheci o Jorge Fernando, que me levou para a televisão. Mas, mesmo assim, fiz um disco aos 22 anos. E não rolou, flopou. Na verdade, eu até concorri a um prêmio da MTV em 1998, como artista revelação, mas o Charlie Brown Jr. ganhou. E na Globo eu fiquei por 18 anos. Cantar virou um hobby. Até que surgiu a Orquestra Imperial [big band brasileira fundada em 2002 com Thalma, Rodrigo Amarante, Nina Becker, Moreno Veloso e outros].
A Orquestra foi uma reconciliação com a ideia de trabalhar com música? Sim. Existia ainda essa pressão para eu ter um trabalho solo, mas eu falava: ‘não, eu tenho a Orquestra e está ótimo.’
Essa pressão vinha de você ou das outras pessoas? Das pessoas, porque eu canto muito melhor melhor do que eu atuo, mas fiz mais trabalhos como atriz do que como cantora. Eu nasci com o dom da voz. Como atriz, o meu corpo é uma voz. Profissionalmente, eu sou muito boa, sei cuidar do figurino, estar preparada para a cena, trabalhar em equipe. Eu sou taurina, gosto de trabalhar. Sou muito competente, mas não sou a Fernanda Montenegro. Meu forte são sotaques, o jeito das minhas personagens falarem. A minha voz é muito potente e de muito carisma. Mas eu não queria ser intérprete, achava que o mundo não precisava de mais uma intérprete da música brasileira. Era melhor ficar como atriz porque eu ganhava mais, trabalhava menos e não me estressava.
E a decisão de viver nos Estados Unidos? Como aconteceu? Meu marido é irlandês, mas mora em Los Angeles desde os anos 90. Em 2012, a gente começou a namorar porque os dois queriam ter filhos. Somos dois amigos que se casaram porque queriam ter uma família. A gente é muito difícil e não conseguiu se acertar com mais ninguém, temos a amizade como base. E aí eu me mudei para os Estados Unidos porque queria me dar essa chance.
E como foi largar os trabalhos aqui para viver a maternidade longe de casa? Aos 40, fechei uma fase da minha vida, até a astrologia fala isso. Entrei em uma fase mais introspectiva, em que pude me dedicar não só a criar a minha família, mas a achar a minha voz como compositora. Eu nasci como mãe e voltei a estudar o misticismo com mais afinco.
Misticismo? É, porque eu não tenho uma religião. Sempre fui bruxa, estudava tarô, ocultismo, paganismo, wicca, coisas assim. E também cristianismo, islamismo, budismo, todas as religiões me interessam muito. Eu tenho mediunidade e precisava fazer as pazes com isso. Eu tive um chamado muito forte em 2012 para essa mudança.
O que aconteceu? Eu tive um episódio psicótico que me deixou no hospital psiquiátrico por três dias, tive visões muito fortes. São espíritos que sempre me acompanharam. Eu acho que não faço músicas, eu canalizo músicas. Quando eu vou no candomblé, falam assim: ‘nossa, tem esse Ogum andando contigo’. Eu poderia chamar de anjo da guarda, mas eu sou preta, então vou chamar de Ogum. O que aconteceu comigo não foi exatamente um acidente, eu provoquei isso. Eu queria que isso acontecesse. A gente vai criando máscaras para viver em sociedade. De tempos em tempos, é legal que essas máscaras se quebrem. Em 2012, eu realmente estava saturada de ser a Thalma de Freitas. Eu precisava dar um tempo de mim. Eu não sabia onde estava a minha trava, eu não sabia onde estavam os meus limites. Depois desse surto, eu consegui sair do armário a respeito da minha espiritualidade.
E foi vivendo nos Estados Unidos que você encontrou caminhos para entender sua espiritualidade? Eu vivi absolutamente isolada por quatro anos. Vivi uma depressão séria pós parto, e ela não passou. E essa depressão tinha a ver com querer me expressar autenticamente. E eu vivi esses anos cuidando de um bebê. Eu detesto a função de mãe, tanto que demorei para ter filho, para tomar coragem de fazer uma coisa que eu queria fazer, mas que eu sabia que era o maior trampo. E eu não gosto de criança, eu não gosto de bebê, eu gosto de adolescentes. Eu tenho certeza que a minha filha vai se dar muito bem comigo quando for adolescente. A gente já está se dando muito melhor agora, que ela está com com 6 anos. Mas dos 2 ao 4, quem realmente segurava a onda era o meu marido. Ele tinha que cuidar dela e de mim.
E você procurou ajuda? Esse ano, fui internada de novo, porque o negócio apertou. Por vontade própria, porque eu não conseguia parar de chorar. Comecei a tomar remédio esse ano. Uma das coisas que me deixou deprimida foi o lance de ser estrangeira. Ser estrangeira é uma merda. É muito estranho. Durante anos você não sabe ler as pessoas, não sabe os códigos. Demora até você realmente dominar a língua a ponto de conseguir ser você. Levou uns três, quatro anos para eu ser uma Thalma em inglês.
A experiência de morar fora do Brasil mudou seu entendimento de si mesma enquanto mulher negra? Quando mudei pra lá, me divorciei da cultura branca. Nos Estados Unidos, isso é muito radical, você tem que escolher a sua tribo, definir quem é você. Por conta de sobrevivência, porque eu me nego a passar perrengue, sempre trabalhei com gente branca para ganhar dinheiro. Da porta de casa para fora, sempre fui permissiva e, como todo artista negro, engoli muito sapo. Mas eu não falo sobre racismo com pessoas brancas. Existe um prazer mórbido de ouvir o negro falar sobre suas mazelas. Ser preto é foda, é foda de ruim e foda de bom. Mas eu não gostaria de estar na pele dos meus inimigos, de ser um deles. Morar nos Estados Unidos reforçou isso. Rompi com um universo inteiro a qual eu pertencia, mas com o qual eu não queria mais ser permissiva. Me relaciono muito mais com pessoas negras. Meu feed na internet é basicamente de cultura negra. Nas minhas visões, eu vi os orixás chamando seus filhos para casa.
E como foi o processo para o disco Sorte!, que está indicado ao Grammy? Tem a ver com essa relação com negritude e espiritualidade? A Bebel Gilberto me indicou para escrever letras para as melodias do compositor norte-americano John Finbury. Fiz e finalmente achei minha voz. O afro surrealismo me inspirou. Eu falava para o John ouvir o disco A Tábua de Esmeralda, do Jorge Ben Jor, para entender do que eu estava falando. Eu cresci com esse legado, mas estava falando do meu jeito, com a minha voz. Seis meses depois, estamos no Grammy americano. Tô chapada com isso. É a validação de algo em que eu tenho investido meus últimos 7 anos. É um feedback do universo dizendo ‘bom trabalho, Thalmíssima’. Me dá uma tranquilidade para abraçar isso indesculpavelmente.
E tem mais trabalhos de música vindo por aí? Estou tão animada. Gravei 2 discos: um com Mateus Aleluia e um com meu pai. Decidi entrar em estúdio, porque não posso ficar trabalhando só para outras pessoas, tenho que fazer as minhas coisas.
Você está também em cartaz na peça Pretoperitamar, o caminho que vai dar aqui, sobre Itamar Assumpção. Como esse projeto te impactou? Em uma época em que isso não era nem possível, Itamar impossivelmente fez uma carreira brilhante. Com uma voz única, às próprias custas. A obra dele é tão teatral, o texto é tão rico. Não à toa, a Anelis [Assumpção, filha de Itamar e diretora geral do espetáculo] ficou obcecada em manter esse legado vivo. Itamar continua sendo vanguarda. E ele era preto, preto, preto retinto. E por isso era maldito. Ele não cantava samba nem candomblé, fazia a música dele. Me inspira tanto. Quando eu crescer, quero ser o Itamar Assumpção. Meus discos vou lançar às próprias custas também e criar precedente para um futuro alforriado de uma cultura opressora que quer determinar o que você tem que tocar para conseguir existir enquanto artista.
Créditos
José de Holanda