Thalma de Freitas e Cibelle Cavalli

por Nina Lemos
Tpm #117

Elas têm 30 e poucos, são libertárias, cantam, atuam e prometem agitar o Carnaval carioca

Elas têm 30 e poucos anos, são libertárias, cantam, atuam e prometem agitar o Carnaval carioca: Thalma de Freitas, à frente da Orquestra Imperial, e Cibelle Cavalli, com marchinhas inéditas e um bloco de rua performático

Thalma de Freitas tem 38 anos, nasceu em São Paulo, mas é carioca de carteirinha desde o fim da década de 90. Cibelle Cavalli, 33, também nasceu no que Vinicius de Moraes chamou de túmulo do samba. E daí? As duas moças, cada uma ao seu modo, tocam fogo no Carnaval do Rio de Janeiro este ano.

Thalma brilha há uma década como vocalista da Orquestra Imperial e se prepara, com parceiros como Nina Becker, Wilson das Neves e Moreno Veloso, para lançar o disco comemorativo de aniversário do grupo. Além disso, ensaia uma volta aos palcos com sua porção atriz no espetáculo Adeus à carne, de Michel Melamed, que estreia no fim de fevereiro.

Cibelle, cantora com carreira internacional de sucesso, faz sua primeira incursão em bailes pré-carnavalescos com o A.B.R.A. (Amigos Bandidos Residentes no Amor), em que canta marchinhas de Carnaval compostas por ela e por sua amiga e parceira Iara Rennó – e por Julinho Jacobina, que também toca na... Orquestra Imperial. As conexões entre as duas são muitas. Moraram juntas. Cantam juntas. E, de certa forma, pensam junto, de forma libertária. As novas vedetes, olha só, são pós-feministas.

“Ouvia: ‘Você deveria arrumar um marido gringo e mudar para a Europa’. Falavam como se fosse a única saída para mim. Fiquei com birra do samba e dessa coisa de ‘mulata exportação’” (Thalma)

É fim de tarde de uma sexta-feira ensolarada no restaurante Azul Marinho, no Arpoador. Um homem toca pandeiro para tentar arrancar alguns trocados dos turistas. Pede dinheiro para Thalma de Freitas. Ela diz que não tem. “Então samba”, ele pede. Thalma levanta da mesa e samba. Com propriedade. É aplaudida.

Volta por cima

Quem vê (e muita gente viu) pensa que a moça de 38 anos é a própria mulata “exportação”. Mal sabem eles que Thalma foi criada em São Paulo e só mudou para o Rio de Janeiro no fim dos anos 90. E, se é, de fato, uma das caras do Carnaval carioca de hoje (os bailes da Orquestra Imperial que antecedem o Carnaval já viraram tradição na cidade), isso é só um dos itens da biografia da moça.

“Antes de tudo, eu sou do rap. O que me formou foi o rap”, diz Thalma. “Os Racionais MCs mudaram a minha vida. Sou fruto disso”, completa. “Eu morava em São Paulo, aquele lugar careta, não via saída para nada. Era uma coisa estranha. E eu sou preta. Ouvia no colégio coisas assim: ‘Ah, você é tão bonita, deveria arrumar um marido gringo e mudar para a Europa, né?’. Falavam como se essa fosse a única saída para mim. Fiquei boa parte da minha vida com birra do samba e dessa coisa de ‘mulata exportação’ por conta disso.”

Thalma é filha do maestro Laércio de Freitas e teve uma infância liberal, de filha de artista. “Minha mãe era produtora do meu pai. Aprendi muito vendo eles trabalharem, sempre soube que não seria uma vida fácil. Mesmo assim, na minha casa não tocava samba, sabia? O negócio do meu pai sempre foi mais bossa nova.”

O tempo passou. E lá estava Thalma, com 28 anos, conhecendo Wilson das Neves, o compositor mito do samba carioca, agora seu parceiro de trabalho na Orquestra Imperial. “O Wilson é o próprio samba. Tive essa aula intensiva e me apaixonei pelo ritmo, é claro.” E até fez as pazes com a mulata passista de escola de samba. “Já fui fantasiada de passista no baile de Carnaval da Orquestra, e este ano vou de novo”, avisa. “Menina, dá um poder que você nem imagina.”

No momento, ela ensaia a peça Adeus à carne, de Michel Melamed, baseada no termo que deu origem à palavra Carnaval, e, claro, vai falar do tema. A estreia está prometida para o fim de fevereiro, no teatro Sesc Ginástico, no Rio. “Antes de ser cantora, sou atriz”, diz a moça, que tem contrato assinado com a Globo desde 2000 (participou de novelas como Laços de família e O clone). “Mas estou longe dos palcos há mais de dez anos. Fiquei pensando o que gostaria de fazer e me veio muita saudade do teatro. Todo mundo da Orquestra estava gravando discos e as pessoas perguntavam: ‘Quando você vai gravar o seu?’.” Thalma, que já lançou um álbum em 2004, não estava com vontade de gravar. “Estava a fim de fazer teatro. E aí o Michel, que é uma pessoa incrível, me apareceu com esse espetáculo maravilhoso.”

“Já fui fantasiada de passista no baile de Carnaval da Orquestra, e este ano vou de novo. Menina, dá um poder que você nem imagina” (Thalma)

Thalma não é muito de estudar. “Fiz um pouco do teatro Macunaíma, em São Paulo. Mas, a minha verdadeira escola foi trabalhar com o Oswaldo Montenegro na Oficina dos Menestréis por um ano.”

A rotina da moça neste verão é pesada. Ela acorda às sete da manhã, medita em casa, sozinha (“aprendi a meditar fazendo aula de tantra ioga. Já li muita coisa do Osho”), luta muay thai e faz ginástica localizada. “Eu não estava fazendo nada para o corpo até que a [amiga] Paula Lavigne virou minha personal trainer.” Daquelas que cobram e telefonam. “Mas estou acordando cedo porque gosto. Gosto de pegar duro, trabalhar, viver o dia, ainda mais no verão.”

Ano passado, Thalma se lançou, com Cibelle (e aqui o caminho das moças se cruza) em uma aventura. Ela queria morar em uma casa que fosse, ao mesmo tempo, morada e espaço cultural, onde artistas pudessem viver e produzir juntos. E assim criou o Miradouro, um casarão em Santa Tereza que Thalma alugou e dividiu com diversos artistas (o A.B.R.A., inclusive, nasceu lá, já que tanto Cibelle como Iara Rennó passaram o verão na casa), deu festas com o coletivo Fora do Eixo e com músicos como Pedro Bernardes, ex-marido de Marisa Monte. E faliu em oito meses. “Quando vi, estava gastando muito para manter a casa. Eu ganho bem. Mas teria que trabalhar mais para manter. Aí vi que não dava. Só eu, né, para gastar todo o meu dinheiro fazendo um negócio desses”, ri. Apesar de difícil, a experiência não foi negativa.

Ao mesmo tempo em que se prepara para estrear a peça, Thalma está montando uma produtora: “Quero fazer mais experiências como a do Miradouro. Alugar, por exemplo, um apartamento em Ipanema e abrigar artistas para fazerem projetos juntos”.

Sem filtros

Entusiasmada por natureza, seus olhos faíscam ao falar de seus projetos. E também de racismo, de política e de feminismo. Thalma é feminista. “Claro que sou. As coisas melhoraram. Mas ainda tem muita coisa para a gente fazer.” E pronto. Começamos a falar de homem. Ela, que no momento está solteira, “mas gostando de alguém”, tem muito o que dizer. “A geração de homens da nossa idade foi criada de uma maneira muito machista. Eles morrem de medo de mulheres que têm alguma grana, algum poder, que são independentes. O que eles não sabem é que a gente também gosta de ser dependente. Quer mandar em mim? Ótimo, mas aprende”, solta.

Thalma fala o que pensa, sem filtros. E ano passado teve seu nome envolvido nos noticiários por causa disso. Ela foi vítima de uma blitz no Vidigal, morro do Rio, sofreu revista íntima e soltou a boca no mundo. Fez queixa de racismo. Escreveu no Twitter. Deu entrevista. O caso, por indicação da delegada que atendeu Thalma no dia do incidente, está sob os cuidados do Cedine (Conselho Estadual dos Direitos do Negro) e ela optou por não acompanhar de perto, apesar de deixar clara sua postura em relação ao acontecido. “Eu não sei ser de outro jeito. E, se posso fazer a minha parte de denunciar um pouco do racismo que acontece no Brasil, olha, meu trabalho na vida já está feito. Não vou ficar quieta. O Beltrame [secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro] me procurou para me dar os parabéns por eu ter denunciado.” Existe suingue, calor e muito, mas muito cérebro nesse Carnaval.

“Olha, sou casada/ tenho meu marido temporário/ (...) E valeu, otário.” A mensagem da marchinha de Carnaval escrita pela cantora e compositora Cibelle Costa, com Iara Rennó, diz muito sobre o A.B.R.A., o bloco-grupo de Carnaval formado por elas e por Julinho Jacobina, com participação dos meninos da banda Do Amor, formada por Marcelo Callado, Ricardo Dias Gomes, Gustavo Benjão e Gabriel Bubu.

“Ter marido temporário significa que você sabe que nada dura para sempre. Otário é quem não entende isso”, diz Cibelle em uma tarde chuvosa no Parque Lage, no Rio de Janeiro. “Pode durar, claro, mas vira outra coisa.” Sim. De cara já começamos a falar de amor. De muitas formas de amor. Cibelle é moça especial. E é difícil ficar perto dela e falar de um assunto só. A paulistana de 33 anos tem carreira internacional. Seu último trabalho é o La venus resort hotel, uma espécie de “disco-projeto-cabaré”. Além do disco, ela montava no palco um clima que remetia a um cabaré decadente. “Todo o conceito foi influenciado por trabalhos que fiz com artistas plásticos como Rick Castro e o pessoal da Avaf (coletivo que reúne artistas brasileiros, americanos e alemães).

Cibelle desenha, toca, compõe, faz seus próprios figurinos. Mora em Londres desde 98. Até que há dois anos se apaixonou pelo Rio. E a verdade é que, assim como é casada consigo mesma, mora também em si mesma, se é que vocês me entendem: 
ela não precisa ter uma casa estruturada. “Já fiquei sem casa muitas vezes, com minhas coisas em um armário, morando um tempo na casa de cada amigo. Você aprende muito com esse tipo de experiência”, diz a moça que, no momento, se divide entre Londres e Brasil. “Há uns dois anos vim para cá. Cheguei e estava tendo uma festa de 20 anos da MTV. Encontrei um monte de amigos. Aí vi o quanto estava sentindo falta disso aqui.” Atualmente, passa os verões no Rio, onde se comporta como carioca de raiz. É presença constante na praia do Arpoador e agora se prepara para fazer um bloco de Carnaval. Quem diria.

Sempre pronta pra partir

“Eu não pulava Carnaval, morava em São Paulo. Ano passado, estava superanimada, mas tive que ir embora para fazer show na Europa. Imagina, todo mundo animado e eu indo embora deprimida para fazer show no frio. E era um daqueles shows que faço sozinha.” E, quando ela diz sozinha, é sozinha mesmo. Cibelle monta seu palco, faz a cenografia. Toca todos os instrumentos. Canta. Tudo a ver com quem não sabia o que fazer da vida e passou uma adolescência esquisita justamente porque queria fazer tudo. “Eu era muito estranha. Eu já era eu, só que com 12 anos. Então, não me encaixava. Estudava piano, fazia conservatório, pintava. E lia sobre física quântica ao mesmo tempo em que fazia esculturas.”

“Era muito estranha. Eu já era eu, só que com 12 anos. Então, não me encaixava. Estudava piano, fazia conservatório, pintava. E lia sobre física quântica” (Cibelle)

Cibelle perdeu o pai ainda criança e sua mãe herdou o negócio dele: trabalhar com moda. “Eles eram representantes de roupas.” Vem daí o interesse da moça por moda, claro. “Minha mãe é tipo eu. Hoje, mora em Cabo Frio [região litorânea do estado do Rio], sai de shortinho, não está nem aí. E eles sempre me incentivaram.”

Em meio a música, pintura e física quântica, a menina foi descoberta por um olheiro da Ford, no shopping Paulista. “Vi que era uma maneira de trabalhar e pensei: ‘Quer saber, vou ganhar minha grana, vou viajar’.” Cibelle virou modelo, mais precisamente atriz de comerciais (até Brastemp ela fez). Até que houve um encontro, daqueles que ela, espiritual que só, sabe que não foi por acaso. E mudou o rumo de sua vida.“Eu estava em uma jam organizada pelo Bid [Eduardo Bidlovski, músico e produtor do Funk como Le Gusta] e ninguém me chamava para subir ao palco. Uma hora pedi fogo para um cara. E esse mesmo cara foi chamado para subir. E me puxou junto.”

Esse cara era Suba. O produtor do primeiro disco de Cibelle – e também do primeiro de Bebel Gilberto. “No palco, ele já me disse: ‘Passa no meu estúdio, quero gravar um disco com você’. Cheguei lá e tivemos uma sintonia louca. A ideia dele 
era me ensinar a produzir. Ele produziria o meu disco e eu produziria o dele.”

Até que tudo pegou fogo. Literalmente. Em 1999, o apartamento de Suba foi consumido por chamas e o produtor gênio morreu na tragédia, deixando Cibelle, seus pupilos e a cena de música da época órfãos. “Eu tinha largado os trabalhos de publicidade quando aconteceu o incêndio. Fiquei perdida. Se aparecia algum trabalho eu até ia, mas sempre chegava alguém e perguntava: ‘Você está bem?’.”

London calling

Com o disco, que já estava pronto, e contrato em gravadora gringa, Cibelle foi para a Europa. E, depois de uma temporada em Paris, nunca mais voltou. “Cheguei em Londres e descobri que não era a única pessoa que pensava daquele jeito, que se vestia daquele jeito. Fiquei louca.”

Cibelle vive do jeito que gosta. Faz o que deseja. E é aí que, mais uma vez, seu caminho se cruza com o de Thalma. “Sempre fui muito fã da Orquestra Imperial. Tenho o nome Orquestra Imperial tatuado”, exagera. “Conheci a Thalma assim. Começamos a falar por Skype, ficamos amigas. E ela me disse que tinha visto uma casa, que queria dividir com outros artistas. E isso é uma coisa que sempre fiz. Por que morar sozinho, gastar tanto dinheiro, em vez de morar junto, produzir junto? Não entendia por que as pessoas não faziam isso no Brasil.” Cibelle viveu com Thalma toda a experiência do Miradouro.

“Por que morar sozinho, gastar tanto dinheiro, em vez de morar junto, produzir junto? Não entendia por que as pessoas não faziam isso no Brasil” (Cibelle)

E foi lá também que conheceu Iara Rennó, sua atual parceira. “Passamos um verão inteiro cantando marchinha. Qualquer coisa que acontecia a gente transformava em marchinha. Aquilo virou uma loucura nossa. Entrávamos no carro e começávamos a cantar marchinha de Carnaval.” Até que a piração virou realidade. O grupo já fez dois shows e se prepara para sair na rua. “Vamos desfilar na Gentil Carioca do centro”, diz a carnavalesca animada Cibelle, se referindo à galeria de arte de Ernesto Neto e outros artistas, localizada no centro da cidade. A neocarioca, antes avessa à festa pagã, está empolgada em cantar suas marchinhas em pleno centro do Carnaval. Para quem quiser ouvir. E valeu, otários.

 

Onde acontecem os shows:

Orquestra Imperial
• 9 e 16/2, a partir das 22h • Circo Voador

A.B.R.A.
• 10/2, a partir das 23h • Espaço Multifoco
• 11/2, a partir das 17h • Gentil Carioca
• 19/2, a partir das 23h • Studio RJ
•20/2, a partir das 15h • Gentil Carioca

Vai lá: Circo Voador – r. dos Arcos, s/n, Lapa, Rio de Janeiro, RJ; Espaço Multifoco – av. Mem de Sá, 126, Lapa, Rio de Janeiro, RJ; Gentil Carioca – r. Gonçalves Ledo, 17, Centro, Rio de Janeiro, RJ; Studio RJ – av. Vieira Souto, 110, Arpoador, Rio de Janeiro, RJ

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