Abaixo a ditadura: documentário resgata história da Libelu

por Nathalia Zaccaro

Ser revolucionário de esquerda é coisa de jovem? Palocci, Eduardo Giannetti, Demétrio Magnoli, Reinaldo Azevedo e outros revisitam sua juventude rebelde em uma reflexão sobre política e memória

Eu agora sou bem diferente, diz Odair José no primeiro verso da música "Nunca mais", que fecha o documentário LIBELU - ABAIXO A DITADURA, um dos dez longas brasileiros da mostra competitiva do É Tudo Verdade, principal festival de documentários do país.

A passagem do tempo e suas incontroláveis transformações são protagonistas da história ao lado dos libelus, os integrantes da tendência estudantil universitária Liberdade e Luta, fundada em 1976 na USP. O grupo atuou no combate à ditadura militar, ganhando fama ao retomar a palavra de ordem “abaixo a ditadura” nos protestos dos anos 70 e 80. O economista Eduardo Giannetti, os jornalistas Demétrio Magnoli, Reinaldo Azevedo, Laura Capriglione, o crítico gastronômico Josimar Melo e até o ex-ministro Antonio Palocci abrem suas memórias da juventude rebelde e trotskista e produzem potentes reflexões sobre política, memória e autoimagem.  

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"Ser jovem, de uma fração política culturalmente inquieta e lutar contra um regime autoritário que, embora você não saiba, começa a entrar em declínio, é realmente uma forma marcante de viver a juventude. Da tendência estudantil, no entanto, foram poucos os que se mantiveram numa atividade política dessa voltagem. Então há uma elaboração que precisa ser feita ao longo da vida, de quem você vai ser nesse mundo que você tentava transformar", explica o diretor do filme, Diógenes Muniz, de 34 anos, o mais jovem entre os diretores brasileiros de longas da mostra competitiva. "Nossa equipe quase toda nasceu ou cresceu na democracia. Estávamos juntos ali pra entender o que essa geração que veio antes da nossa viveu durante a ditadura militar e o que eles fizeram depois de uma juventude que foi, sob vários aspectos, brilhante."

O filme estreia dia 30 de setembro, às 21h, no site do festival, e reprisa no dia 1º de outubro, às 15h, em exibição seguida de um debate com a equipe. O papo contará com a presença de Fernando Haddad, que também viveu intensamente o movimento estudantil durante seus tempos de aluno da USP. As duas primeiras sessões do filme serão gratuitas.

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Diógenes trocou uma ideia com a Trip sobre os bastidores do filme, a franqueza de Palocci, o match entre os libelus e Caetano Veloso, a crise política atual e mais. Se liga: 

Trip. Quando foi a primeira vez que você ouviu falar na Libelu? Por que se interessou?

Diógenes Muniz. Eu havia escutado que alguns jornalistas mais experientes da Folha de S.Paulo, onde trabalhei por oito anos, tinham participado da Liberdade e Luta durante sua militância estudantil. Era algo que se comentava nos corredores, geralmente confundindo essa informação com a resistência armada ao regime militar. Em algum momento cruzei com o poema do Leminski para a Libelu, chamado "Para a Liberdade e Luta", em que ele se refere aos trotskistas como "aqueles que o poder não corrompeu". Leminski foi trotskista e muito próximo da OSI [Organização Socialista Internacionalista, o grupo clandestino por trás da Libelu] no sul do país. Depois, lendo as cartas da poeta Ana Cristina César no "Correspondência Incompleta", em que ela fala sobre as passeatas de 1977, percebi que havia pouca atenção sendo dada a essa resistência da segunda metade dos anos 70 no Brasil. E que, na verdade, não tinha nada a ver com luta armada. É uma geração que vem depois, muito ligada à contracultura e à transgressão pelos costumes, e cuja missão inicial é reconstruir suas entidades de representação política. O fato de alguns deles terem abandonado a militância pra se tornarem quadros da direita ou terem subido a rampa do Planalto tornava tudo mais curioso.

Qual foi o maior desafio da produção? Conseguir convencer algumas pessoas a falar. As trajetórias de cada um foram muito diversas após a militância, e vários deles não se curtem mesmo. O que é compreensível. Imagina alguém chegar na sua turma de faculdade, 40 anos depois, e sugerir: vamos fazer um longa-metragem sobre aqueles tempos, juntando inclusive seus desafetos políticos? No fim, fomos recebidos por todo mundo, mas até entenderem o que pretendíamos com o documentário rolou desconfiança.

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A estética do filme aposta em mostrar o processo de filmagem. Por quê? Porque é uma geração mais jovem tentando retratar as vivências de outra mais velha. Nossa equipe quase toda nasceu ou cresceu na democracia. Estávamos juntos ali pra entender o que essa geração que veio antes da nossa viveu durante a ditadura militar e o que eles fizeram depois de uma juventude que foi, sob vários aspectos, brilhante. Só que quem dava a dinâmica do jogo éramos nós, os jovens, e isso tinha que estar registrado no filme também, inclusive eventuais desconfortos. Há uma cena, bem no início, em que o jornalista Paulo Moreira Leite pergunta porque estamos fazendo o documentário, se queremos ganhar dinheiro com o filme. Já o ex-presidente da EBC [Empresa Brasil de Comunicação] Ricardo Melo, ao ser questionado sobre os rumos da revolução socialista, rebate que, se soubesse, não estaria ali dando entrevista pra mim. Acho que esses momentos dão um pouco o tom dessa relação que nem sempre é tranquila entre quem quer saber, porque não viveu, e quem está ali pra responder e fazer balanços da própria trajetória.

Qual o impacto de lançar o documentário on-line? Tomei conhecimento do trabalho de vários diretores nessa pandemia por meio de festivais que aconteceram só de maneira virtual, como o Ecrã, o Kinoforum e o Dobra. Então, tem um lado positivo no lançamento on-line, de quem sabe atingir ainda mais gente, inclusive quem não é tão assíduo em festivais de cinema. Depois dessa estreia virtual no "É Tudo Verdade" ainda faremos o lançamento em salas comerciais, que deve ficar pra 2021.

O filme é um resgate de memória da ditadura. Qual a importância de falar sobre isso em tempos de crise política, como a que vivemos? A Libelu ganhou fama, entre outros, por retomar o grito de "Abaixo a Ditadura" quando o restante do movimento estudantil preferia gritar "Pelas Liberdades Democráticas". Parece algo dado, já havia mais de uma década de regime militar, mas fazer a leitura da conjuntura política e se organizar em torno de uma palavra de ordem que sintetize o momento e o que você quer dele é fundamental. Hoje, também cruzamos com vários termos para explicar nossa conjuntura, como 'desdemocratização' ou 'golpe gasoso'. Parece que ainda não chegamos nessa justa síntese, embora o desconforto e as dúvidas acerca da saúde da nossa democracia estejam no ar. Embora seja um filme que é contra a ditadura militar, do seu título ao último minuto de duração, não tenho pretensão que ele vá atingir e transformar a cabeça dos fãs da ditadura. Mas espero que sirva como ferramenta de debate e reflexão pra quem se interessa pela luta política.

Qual foi a importância da Cinemateca Brasileira para o filme? Não haveria filme sem Cinemateca. Nosso arquivo mais importante, um programa da TV Tupi em que o Mino Carta entrevista dois jovens dirigentes da Libelu, de 1979, só existia na Cinemateca, numa fita VHS. Nós conseguimos chegar nessa fita um pouco antes do fechamento da Cinemateca.

Ao mesmo tempo em que o filme mostra a importância da articulação estudantil, também transparece certa ingenuidade do movimento. Você concorda? O presidente chileno Salvador Allende, assassinado por um golpe militar patrocinado pelos EUA em 1973, dizia que ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição quase que biológica. Há, por outro lado, um senso comum de que as convicções esmorecem conforme vamos envelhecendo. Mas isso não é uma regra. Inclusive temos no filme pessoas que seguem trotskistas até hoje, mais de quarenta anos depois do início da sua militância. Por outro lado, embora tenha sido bem-sucedido em sua tomada de posição contra o regime militar, esse núcleo irradiador da Libelu na USP tinha limitações em termos raciais e socioeconômicos. E ainda que isso seja evidente pra nós – e destacado por eles mesmos ao longo do filme –, na época esse debate não estava colocado como está hoje.

Para além da política, o filme passa pela identificação dos libelus com Caetano Veloso. Por que eles são parecidos? Caetano costuma dizer que foram os libelus que habilitaram sua imagem junto à esquerda brasileira. Antes deles, o compositor baiano era visto como uma figura alienada por uma parcela dos progressistas brasileiros, que rechaçavam o rock e preferiam arte engajada. A Liberdade e Luta foi pioneira em fazer esse contrabando pra dentro da militância, se aproximando do surrealismo e da contracultura. É unânime entre quem participou das agitações políticas daqueles tempos que as festas da Liberdade e Luta eram as mais animadas. Por isso a Libelu, que não era o grupo mais numeroso ou o que vencia mais eleições dentro do ME, acabou gerando tanto fascínio naqueles anos. 

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Como foi o contato com o Palocci? Qual a importância dele pro filme? Foi um longo esforço até chegar nele. O Palocci não é só um ex-libelu que acabou se tornando Ministro da República, ele foi um quadro realmente importante da Liberdade e Luta e da organização trotskista que a impulsionava. Era tido como brilhante pelos seus pares e liderou experiências de 'entrismo' no início do PT, em Ribeirão Preto. Comecei a acreditar na possibilidade de entrevistá-lo depois que ele saiu da cadeia e foi para prisão domiciliar. Falamos algumas vezes por telefone e Skype, ele já chegou me perguntando se eu sabia da história do Lionel Jospin, ex-primeiro-ministro da França que, assim como ele, foi um trotskista da corrente de Pierre Lambert. E que, assim como ele, galgou posições dentro da máquina do Estado após largar o trotskismo. No fim das contas, sinto que ter conversado com Palocci enquanto a imagem do jovem militante trotskista de Ribeirão Preto pairava sobre nós fez com que ele se abrisse de maneira mais franca do que nós dois esperávamos.

No começo do filme, Cadão Volpato lê uma carta que diz que os libelus viraram "velhos patéticos". Você acha que a maneira como eles envelheceram é parte central da história? Por quê? Acabou se tornando central. As pessoas que passaram pela reconstrução do Movimento Estudantil na segunda metade dos anos 1970 têm lembranças muito vívidas sobre aqueles dias. Ser jovem, de uma fração política culturalmente inquieta e lutar contra um regime autoritário que, embora você não saiba, começa a entrar em declínio, é realmente uma forma marcante de viver a juventude. Da tendência estudantil, no entanto, foram poucos os que se mantiveram numa atividade política dessa voltagem. Então há uma elaboração que precisa ser feita ao longo da vida, de quem você vai ser nesse mundo que você tentava transformar.

Para a liberdade e luta
por Paulo Leminski

Me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

Me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão.

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