Promovemos o encontro entre as lideranças Eliana Sousa e Yvonne Bezerra, que estão levando educação e segurança pública para os moradores de um dos maiores complexos de favelas do Rio de Janeiro
Eliana Sousa Silva, 57 anos, é diretora fundadora da Redes da Maré, localizada no conjunto de favelas da Maré no Rio de Janeiro, além de ser professora visitante da USP, no Instituto de Estudos Avançados. Yvonne Bezerra, 72 anos, é fundadora do Projeto Uerê, também na Maré, criado em 1998 como uma escola especializada em crianças com problemas cognitivos e traumas devido à violência.
Eliana é moradora do conjunto de favelas desde os 7 anos e tem uma inserção profunda nas lutas comunitárias. Com a Redes da Maré, trabalha com eixos de educação, movimento territorial, arte e cultura, identidade e segurança pública. Seu trabalho começou a partir de uma articulação de um pré-vestibular comunitário. Desde o primeiro ano, aumentaram em 3,5% o acesso dos moradores da Maré às universidades. Hoje, o trabalho é apoiado pelo Projeto Voa, da cervejaria Ambev.
Yvonne trabalhava com os meninos que vivenciaram a Chacina da Candelária, em 1993, e desenvolveu uma metodologia de ensino para os sobreviventes que foi reconhecida pela Unesco como uma das seis melhores do mundo para ensinar crianças em zonas de risco. Pouco tempo depois, decidiu abrir uma escola para aplicar a metodologia. Nasceu, assim, o Projeto Uerê, uma escola-modelo na Favela da Maré.
As duas trabalham paralelamente em diversas ações territoriais que se estendem por mais de uma favela dentro da Maré. Abaixo, elas falam sobre o dia a dia de seus projetos e questões como segurança pública, educação e pertencimento na Maré.
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Quando pensamos na Maré, pensamos em uma única favela. Mas na verdade é um complexo, certo?
Eliana: São 16 favelas, são marés aqui, e todas com demandas muito específicas. É muito importante falar que a Maré é um conjunto de favelas, porque quando usávamos a palavra “complexo”, estávamos querendo falar da complexidade que é isso aqui. Só que a imprensa usou esse nome para falar de problema e não de complexidade, percebe? Então, politicamente, a gente usa “conjunto de favelas da Maré”. E, aqui dentro, temos uma divisão territorial com regras que falam sobre o ir e vir dos moradores, influenciando diretamente na segurança de cada um deles.
Yvonne: E para viver aqui, você tem que ter estratégias. Estratégia de proteção, como quando eu coloquei a placa no teto da escola: “Escola. Não atire”. Um helicóptero realmente atirou no teto de uma das salas de aula da escola há dois anos, no governo anterior. E aí eu fiquei pensando: O que fazer? Não adianta denunciar, porque a gente não vai ser ouvido. Então a placa foi um símbolo. Se cair uma bala nessa placa, aí eu vou ter que tomar outras providências.
Dentro do que envolve o trabalho de vocês duas, como a educação pode ser um instrumento de proteção contra a vulnerabilidade social?
Yvonne: Sem educação é impossível fazer esse país andar. Eu, como uma escola especializada em crianças que têm problemas cognitivos devido à violência, vejo o desastre que é a educação na Maré. As escolas me mandam as crianças as quais elas não conseguem fazer aprender, entende? É muito importante estar perto das escolas públicas para educar essas crianças em um lugar onde temos cem dias de conflito por ano. Depois, temos a falta de professores. Na rede pública do Rio de Janeiro, temos quase 3 mil professores de licença psiquiátrica. Eles não conseguem ensinar por conta do medo constante. Consequentemente, as crianças muitas vezes se tornam agressivas com esse medo.
Eliana: A nossa existência como Redes da Maré nasceu justamente de um levantamento que fizemos do número de moradores que acessam a universidade, para entender a questão da desigualdade e entender que educação é um direito extremamente negligenciado na Maré. Mesmo com 46 escolas de ensino fundamental, temos uma discussão muito grande sobre como garantir a qualidade do ensino. A gente conquistou o básico, que é o prédio, mas precisamos dar um passo muito importante que é garantir a qualidade da educação e, com isso, o direito à educação se efetivar plenamente, aumentando a autonomia do sujeito. Para isso, precisamos trabalhar outras demandas desse território, como o direito à segurança pública, que é totalmente negligenciado.
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Yvonne, desde a chacina da Candelária, você identificou que as crianças que vivem em zonas de conflito têm mais dificuldade de cognição. Como você trabalha esses bloqueios?
Yvonne: A criança que vive em constante estresse perde uma parte da memória curta e não consegue armazenar corretamente o aprendizado. Isso, infelizmente, a escola tradicional não tem a possibilidade de consertar. São necessárias outras metodologias. Eu tenho uma pedagogia que muda completamente a gestão de sala de aula, contemplando vários aspectos da neurociência e da neuroeducação. Por exemplo o tempo de concentração dessas crianças, que é de dez a 12 minutos. Não existe aula de 50 minutos, isso é absolutamente cruel com elas. Em várias escolas públicas do país e na Europa, com os refugiados, por exemplo, o modelo está dando certo. A metodologia do Uerê foi reconhecida pela Unicef como uma das seis melhores do mundo.
Qual seria a maior dificuldade hoje para a educação dentro da Maré?
Eliana: A gente faz um boletim anual chamado “Pelo Direito da Segurança Pública na Maré”, que monitora todos os confrontos armados que acontecem. Temos uma equipe que vai para rua no momento em que as operações policiais acontecem e depois fazem um relatório com as informações do que foi, de fato, essa operação. No boletim de 2017, temos 30 dias em que as escolas fecharam, assim como os postos de saúde. Como é que a gente exige que a prefeitura reponha dias de aula legalmente? Ela não repõe.
Yvonne: Nas listas de chamada eu coloco um “T” para os dias de tiroteio. As escolas definitivamente não repõem as aulas e as crianças ficam numa defasagem muito grande.
Vocês, enquanto mulheres trabalhando na Maré, já sentiram algum medo?
Yvonne: Não. Eu não tenho medo. Eu perdi todo o meu medo quando fui sequestrada pela polícia na época da Candelária. Como eu não morri, depois de horas com um fuzil na minha cabeça, falei que nunca mais sentiria medo. Acho que quando a gente faz esse trabalho o medo não pode existir. A gente tem que ter um propósito e esse propósito faz com que tenhamos coragem. O trabalho supera o medo. Quando eu estou aqui, fazendo o que preciso, o que pode me acontecer? Morrer por uma bala perdida? Acontece. Vejo a vida dessa maneira. Se eu escolhi trabalhar em um local violento, tenho que ir para cima.
Eliana: Fui criada dentro desse contexto, então aprendi a lidar com ele relativizando muitas coisas por conta da vivência. Muito do que é dito lá fora, não se materializa aqui dentro. Mas sempre tento não naturalizar a violência, claro. Tive medo em alguns momentos por conta de ameaças específicas, mas não um medo que me paralisou. Pelo contrário, ele me fortaleceu. Atualmente, inclusive, estamos sob algumas ameaças. Mas é o que a Yvonne trouxe, é um trabalho transformador e não tem como você não lidar com essas questões.
E como que é ser mulher trabalhando essas questões dentro da Maré?
Yvonne: Acho que tanto a Eliana, quanto eu, temos uma coisa em comum. Nós educamos muito bem as meninas, mas também fazemos questão de educar os meninos. Em 21 anos, tive apenas três meninas grávidas e nenhum jovem, enquanto esteve aqui comigo, foi pai. Acho que é muito importante que você eduque os dois. O homem que é violento e essa é uma constante. O papel da mulher aqui é complicado, mas estamos num processo muito bom de transformar isso.
Eliana: Em todas as lutas que nós tivemos aqui, historicamente, havia mulheres por trás. As mulheres daqui sempre tiveram um papel muito importante de estar protagonizando as mudanças que precisam acontecer. Por outro lado, há determinadas violências ligadas a redes ilícitas que fazem principalmente as mulheres jovens sofrerem. Além, é claro, das mães que perdem seus filhos muito cedo, o que gera um adoecimento muito latente das mulheres da Maré. De fato, a gente precisa fazer um trabalho para os homens. São eles que morrem mais do que as mulheres. São homens negros, moradores de favelas. Precisamos olhar para isso e ver o papel fundamental deles para reverter essa lógica.
Aí dentro existem algumas fontes de ameaça à segurança dos moradores que não são as mesmas de quem está do lado de fora. Como vocês discutem essa questão?
Yvonne: Quando o governador fez a cartilha de como a população das comunidades teria de se comportar quando a polícia chega, os meninos ficaram indignados. Fizemos aqui a contra cartilha e fomos falar com ele. Adiantou alguma coisa? Olha, para os meninos adiantou muito! Eles foram ouvidos, ficaram uma hora com o cara lá e foi uma experiência muito boa. Quando saíram perguntaram: “Professora, ele está mentindo, né?”. Eu falei “Ele está mentindo, mas o que importa é que vocês conseguiram chegar aqui. A voz de vocês foi ouvida”. Aqui, a população vive com medo porque nós temos homens armados em todos os lugares, todos os dias. Estamos criando a consciência de que é preciso denunciar, mesmo tendo que ir a outras favelas em que existe divisão de território.
Eliana: No caso da Redes da Maré, temos um eixo de trabalho que é segurança pública e acesso à justiça. Por que temos esse eixo? Porque entendemos que o direito à segurança pública não se estabeleceu aqui nas favelas. Não é um direito do qual pessoas se sentem proprietárias. É mais natural achar que temos que ter educação, saúde… Por termos grupos armados aqui, o direito à segurança não se estabelece. O próprio morador aqui não se vê como um sujeito de direito. O trabalho que a gente faz é justamente para tentar articular e mobilizar o morador e convencê-lo de que esse direito só vai acontecer aqui se ele demandar, se ele denunciar. Com o projeto Maré de Direito, que tem advogado, psicólogo e assistente social, tivemos 300 atendimentos só no ano passado. A partir disso, fizemos uma parceria com a defensoria pública para registrar essas violações. A Maré é a única favela do Rio, talvez do país, que tem uma ação civil pública que foi conquistada, então a operação policial deve ter ambulância, o policial tem que estar identificado e não pode entrar na casa das pessoas sem mandado. Tudo isso existe legalmente, apesar de não ser efetivamente cumprido.
Construir essa identidade territorial e essa mudança no pensamento sociocultural dos adultos é mais difícil do que quando o trabalho é feito com crianças?
Eliana: No meu caso, a gente tem uma receptividade muito boa. Tanto das crianças, quanto de adolescentes, jovens e adultos. Também tem a ver, no nosso caso, com essa inserção histórica do movimento comunitário e da participação dos moradores. Nosso foco é envolver os moradores nessa luta, nesses processos que a gente desenvolve. Cada vez mais temos o retorno do quanto é importante esse tipo de trabalho que fazemos aqui.
Yvonne: Nós trabalhamos as famílias de uma forma diferente, através de reuniões e encontros. O Uerê é uma espécie de ouvidoria, onde todo mundo vem conversar, denunciar e pedir conselho. Então conseguimos, aqui nessa área, fazer um trabalho muito bom de limpeza, de conscientização do meio ambiente e de questões sociais. Entendemos que é importante trabalhar o núcleo familiar como um todo para ter resultados mais efetivos.
Créditos
Texto: Camila Eiroa