Educar para transformar

por Camila Eiroa

Três professores transgêneros contam sobre o processo de aceitação e mudança de gênero em contato com a sala de aula, alunos e outros professores

Neste dia dos professores – 15 de outubro – Tpm ouviu três professores transgêneros. Do processo de aceitação da mudança de gênero ao convívio com os profissionais e alunos, eles contaram as dificuldades e facilidades que encontraram na profissão. Conheça a história de Luiza, Daniel e Camila, que assim como todo professor apaixonado pela profissão, acreditam que a sala de aula também é lugar de mudar o mundo.

Luiza Coppieters

Luiza Coppieters, 36 anos, é de São Paulo. Formada em Filosofia pela USP, dá aula há 15 anos. Começou a lecionar na rede estadual e, em 2005, em escolas privadas com as matérias história e filosofia para ensino médio e cursinho pré-vestibular.

Quando você se descobriu trangênero? Não me descobri transexual, me aceitei. Me entendo como mulher, mas toda a designação cultural imposta a mim como homem sempre foi uma coisa muito dolorosa. Eu tinha uma estabilidade, tenho uma formação e uma série de privilégios por ter vivido muito tempo como homem cis, hétero e de classe média. Demorei 30 anos pra entender que tinha esses privilégios e que isso me permitiu ocupar um lugar na sociedade pra ter clareza do que acontecia. Evidentemente que não me faz escapar dos preconceitos como transexual. Desde a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual, a saber das condições de tratamento hormonal e aceitar, eu tive que enfrentar o mundo. Foi um momento que ou eu parava, ou eu seguia o caminho da vida do jeito que eu existo. Precisava existir me sentindo bem.

Como foi a reação da comunidade escolar? A reação dos professores e alunos a princípio foi muito bacana. Uns ficavam meio assustados, mas todos me apoiaram. Os alunos entenderam o sofrimento, cheguei a dizer que, se soubesse que iam reagir daquela maneira, já teria contado antes. Eles foram maravilhosos e convivo com muitos deles até hoje. Entre os professores sempre teve uma tensão geral porque todo mundo sabia que o patrão não ia aceitar bem, seria preciso fazer alguma coisa pra manter o emprego. De fato, ficou pior quando os patrões souberam, eles surtaram. Tentaram me demitir em junho de 2014, mas como o coordenador estava indo para um trabalho de campo, deu uma segurada. No segundo semestre tiraram algumas aulas de mim e foi ficando cada vez mais tenso, vigia total pra cima de mim.  Quando os alunos descobriram meu Facebook com nome de mulher, acharam que eu estava fazendo algum protesto sobre a questão de gênero. No momento que souberam, começaram a me tratar no feminino, perguntaram quando eu iria começar a ir "vestida de mulher" e como gostaria de ser tratada.

"Depois que se tornou pública minha condição transexual, muitos estudantes chegaram a me agradecer"

Como você aborda a questão de gênero com seus alunos? Eu sempre procurei desnaturalizar o preconceito e naturalizar o que é humano. Nesses anos dando aula, aprendi muito a ouvir e tratar as angústias dos alunos, problematizar o próprio espaço da sala de aula. Como era escola privada, acabava dizendo coisas que contrariam a mentalidade das famílias. Antes de eu me assumir transgênero, muitas meninas já me perguntavam coisas sobre sexualidade, sobre violência em relacionamentos. Depois que se tornou pública minha condição transexual, muitos estudantes chegaram a me agradecer. Eu costumo dizer que ninguém sai ileso de uma família e, quando você conhece os pais, você conhece os alunos. Você começa a ver que vira exemplo para eles.

Já sofreu preconceito por parte de alunos, pais ou colegas de profissão? Preconceito direto não, parece que as pessoas não têm coragem de falar na cara. Sei de histórias. Uma aluna chegou pra mim depois que saíram os quadrinhos e disse que o pai dela a fez me bloquear no Facebook, com medo de ela querer virar menino. Se a presença do transexual não fosse estigmatizada, as pessoas iriam perder esse receio. Muitas travestis e transexuais ficam irritadas, mas eu entendo que é um espanto, que há um estranhamento. E quando você começa a conversar, todo mundo enxerga que você é como qualquer outra pessoa e desconstrói o preconceito. Na virada de 2014 pra 2015, cortaram todas as minhas aulas de primeiro ano de forma ilegal, passei a receber ⅓ do que eu recebia. Eu só pude dar aula para os alunos que eu já dava aula. Foi me destruindo psicologicamente até que eu fui demitida sem justa causa e agora vou entrar com os processos contra isso. Minha vida teve uma mudança gigantesca. Eu nunca tive reconhecimento dentro da escola como professor ou professora, e agora as pessoas querem me ouvir. 

Daniel Camargo

Daniel Camargo, 26 anos, é de Conchal (SP). Formado em Letras e Pedagogia, leciona língua portuguesa na rede estadual pública para turmas do 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio há 2 anos e 10 meses.

Quando você se descobriu trangênero? Eu descobri que não era um menino como os demais quando entrei na escola, aos sete anos. Foi lá que me mostraram que, de acordo com meu sexo biológico, eu deveria viver no ambiente feminino. Foi também o que me levou à depressão. Minha psicóloga foi minha primeira amiga e, na época, ela chegou a contar para minha mãe que eu tinha uma "alma masculina", mas não foi o suficiente para abrir um diálogo sobre isso. Pelo contrário, minha mãe parou de me levar às consultas depois dessa constatação. Quando estava no segundo ano de faculdade, vi uma entrevista com um homem trans e tudo fez sentido! Busquei pessoas como eu e foram elas que me ajudaram.

O fato de ser professor atrapalhou ou atrasou o seu processo de mudança de gênero? Não, visto que sou funcionário público e isso me ajudou bastante a ter coragem para começa o processo. Foi um dos motivos pelos quais atrasei toda minha transição. Queria estar em um emprego em que não houvesse a possibilidade de ser demitido por conta dos tratamentos hormonais, visto que é o que ocorre com frequência com outros professores que assumem a transgeneridade.

Como foi a reação da comunidade escolar? Foi, no geral, tranquilo. Com os alunos e alunas é fantástico, eles se inspiram na minha história para buscar aquilo que os fazem felizes. Me consideram um ser humano corajoso. Os pais e mães também foram muito receptivos e inclusive acho engraçado quando curtem minhas fotos no Facebook. Já sobre os colegas de trabalho, foi e é uma experiência bacana porque trouxe a discussão para a escola. Porém, sei que convivo com muitos funcionários preconceituosos e despreparados para abordar a questão em sala. A sexualidade e o gênero são tabus em todos os ambientes, visto que nossos modelos educacionais (família, escola, mídia) ainda são pautados na obediência, no silenciamento e que nós também somos frutos desse sistema educacional.

Como você aborda a questão de gênero com seus alunos? Sempre falo das consequências dessa relação — como por exemplo o machismo, que nos leva a números assustadores de feminicídios. Abordo a questão do estupro, da violência em geral. São todas relações de gênero. Já para compreendermos pessoas como eu, costumo sempre inciar o bate papo com uma brincadeira: pergunto quantas pessoas de identidade masculina e feminina eles conseguem encontrar na sala. Depois, iniciamos a discussão questionando qual a relevância de saber o que cada pessoa tem entre suas pernas, visto que é o critério vulgar adotado para encaixar alguém como homem ou como mulher.

"Eu prorroguei minha transição por décadas por medo de ficar desempregado"

Já aconteceu de alunos com a mesma condição te procurarem? Sim, não só alunos como também profissionais. Um deles, professor, me marcou bastante. Disse que queria ter tido a coragem que eu tive, que se sentia da mesma forma mas já se considerava muito velho para tentar. Fiquei triste e me imaginei no lugar dele. Eu prorroguei minha transição por décadas por medo de ficar desempregado, o que é muito triste. Pouquíssimas pessoas transexuais estão empregadas e as que estão não necessariamente têm bons empregos.

Acha que a sua presença em sala ajuda a desconstruir a transfobia? Ajuda. São raras as famílias que conversam tranquilamente com seus filhos. Sei disso porque converso com os filhos e filhas desses pais, e a abertura para certos temas costuma ser zero. A televisão e as instituições religiosas também ajudam a blindar esses assuntos. Logo, conviver comigo desconstrói todas essas construções pautadas no ódio. Costumo sempre brincar que eu gosto de viajar, de chocolate e sou trans — ou seja, é só mais uma forma de expressão, não modifica meu caráter ou meu profissionalismo. Pelo contrário, só tem me mostrado o quanto falhamos e estamos a falhar na educação para os direitos humanos, o amor, e sobretudo, o direito de ser e se expressar de qualquer pessoa.

Camila Godoi

Camila Godoi, 44 anos, é de Bragança Paulista. Formou-se em Engenharia Química pela UNICAMP e é pós graduada em História e Filosofia das Ciências pela mesma instituição. Leciona física e química para o ensino médio e cursinhos pré-vestibulares há vinte anos. Também é professora em cursos de engenharia do ensino superior.

Quando você se descobriu transgênero? Me percebi bastante desconfortável com o papel que a sociedade me impôs ainda criança. No entanto, reprimi a minha transgeneridade durante mais de quarenta anos e só recentemente me aceitei como mulher transgênera. Foi um processo muito longo, desde a infância eu me sentia muito feminina e somente nos últimos anos é que eu comecei a preparar um caminho para me assumir como mulher em nossa sociedade. Quando eu era mais nova, não havia essa diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Então, isto causou uma confusão a mais na minha cabeça: como eu posso me sentir feminina e não sentir atração por homens?

O fato de ser professora atrapalhou ou atrasou o seu processo de mudança de gênero? Não acredito que a minha carreira profissional tenha atrapalhado. Pelo contrário, tive o privilégio de conviver com professores e alunos maravilhosos. Pessoas que me ajudaram, e muito, a compreender e a respeitar os outros em suas complexidades e diversidades. Sempre reprimi fortemente a minha feminilidade devido a vários medos: o de sofrer violência e de não ter a oportunidade de estudar ou construir uma carreira. 

"A justificativa [para a demissão] foi que a minha condição ia contra os valores cristãos da instituição"

Como foi a reação da comunidade escolar? Fui acolhida por alunos, professores e funcionários de maneira fantástica. Tanto que, em uma das escolas toda a comunidade acadêmica tinha acesso às minhas imagens como mulher no Facebook e nunca as divulgaram. Todos eles, incluindo as respectivas famílias, me blindaram, me protegeram. No entanto, os donos das escolas em que trabalhava me demitiram. Em uma delas, a justificativa foi corte de gastos, sendo que fui a única professora de ensino médio a ser demitida. Já no outro colégio, em maio deste ano, a justificativa foi que a minha condição ia contra os valores cristãos da instituição.

Como você aborda a questão de gênero com seus alunos? Como educadora, sempre apontei em minhas falas a necessidade de combater a cultura machista e patriarcal que permeia a nossa sociedade em seus mínimos detalhes. É algo que, infelizmente, o nosso sistema de ensino recicla, atualiza e reproduz. Combater essa cultura machista e patriarcal implica também em respeitar toda a diversidade característica aos seres humanos. É também combater o racismo, o classismo, o capacitismo, a gordofobia, a homofobia, a transfobia e mais outras formas sutis de discriminação e de opressão.

Acha que a sua presença em sala ajuda a desconstruir a transfobia? Durante vinte anos fui uma excelente professora, embora exercesse - através da minha linguagem corporal, das palavras que eu escolhia, das roupas que eu vestia – o papel social atribuído ao gênero masculino. Ao me assumir como mulher transgênera, mudei a minha aparência, mas não minha essência. Hoje, as roupas que uso, as palavras que escolho e o modo como eu movimento o meu corpo constituem, apenas, uma linguagem mais confortável e mais adequada para transmitir ao mundo a minha essência. Minha presença na sala de aula ajuda a desconstruir a transfobia ao mostrar para todos que eu sou uma pessoa como qualquer outra no mundo, com qualidades e defeitos. Posso contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e mereço respeito como qualquer ser humano.

NÚMERO DE INSCRITOS NO ENEM QUE USARÃO NOME SOCIAL TRIPLICA

Em 2015, o número de transexuais e travestis  inscritos no ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio] que solicitaram o uso do nome social cresceu em 172% em relação ao ano passado. Segundo o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], foram 278 pedidos para os dois dias de prova, enquanto que em 2014 foram recebidos apenas 102.

É o segundo ano que o exame possibilita que seja usado o nome social nos locais de prova. A solicitação, antes feita por telefone, passou a ser feita pela internet. O ENEM é a principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil e tem mais de 8 milhões de estudantes inscritos. É importante que esteja preparado para acolher todas as pessoas, independente de questões de gênero. 

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