Nem os 13 anos de cadeia seguraram a vocação de Dexter: se expressar através do rap. Hoje, ele divide o que aprendeu
Para o sistema prisional, Marcos Fernandes de Omena era, como todos os outros, apenas um número: 164-953. Mas, para o mundo lá fora, ele era Dexter e ficaria famoso por outro número: 509-E, nome do grupo que criou em 1999 com o parceiro Afro X na Casa de Detenção de São Paulo, muito mais conhecida como Carandiru. Era improvável que o que um detento pensasse tivesse força para extrapolar as muralhas de uma prisão. Mas o que Dexter pensava, transformava em versos, e suas rimas contrariaram a estatística e ganharam projeção nacional em 2000, quando o grupo lançou Provérbios 13.
O álbum trazia reflexões sobre o dia a dia dos presídios e as mazelas da sociedade, com músicas como “Saudades mil” e “Oitavo anjo”, em que cantou os versos que até hoje marcam sua vida: ”Acharam que eu estava derrotado/Quem achou estava errado”.
Dos 45 anos que tem hoje, 13 anos e três meses foram vividos atrás das grades. Neste período, mais do que cantar os versos acima, ele precisava mostrar que eles reproduziam uma verdade. Missão nada fácil quando a primeira pessoa que ele teria de convencer era ele próprio, um jovem que, aos 24 anos, parecia perdido. “O sistema carcerário não é para recuperar, é de revoltar mais ainda. Então tive que lutar por mim mesmo”, lembra.
APENAS UM SONHO
Fato é que ele sobreviveu, ganhou respeito e, em abril de 2011, saiu para não voltar. “Quando o portão bateu atrás de mim, só pensava que tinha de continuar trabalhando, porque o meu trabalho me levou para lugares que nunca imaginei. Para quem nunca tinha saído do Jardim Calux [bairro de São Bernardo, município da Grande São Paulo], estar em Lisboa fazendo um show é foda. Atravessei um oceano.”
Em mais de 20 anos de carreira, Dexter lançou ainda um segundo disco com o 509-E, MMII-DC (2002), e outros dois em carreira solo, Exilado sim, preso não (2005) e Flor de lótus (o primeiro lançado fora da cadeia, em 2016). Não fosse o rap, a história dele seria bem diferente e sequer seria conhecida. “Talvez hoje você escute o primeiro cara dizer que a prisão lhe fez bem. Se eu não tivesse ido para lá, não estaria com você aqui trocando essas ideias.”
Segundo Dexter, esse conjunto de linhas tortas foi a forma que o universo encontrou para guardá-lo e, na hora certa, lhe devolver ao mundo em condições de fazer alguma diferença. “Tenho o sonho de um dia olhar para os meus netos, andando por aqui, e eles falarem: ‘Aí, meu vô, você ajudou muita gente’.” Assim, Dexter se envolve em iniciativas que ajudam ex-presidiários a ficarem longe do crime e, atualmente, trabalha no projeto Trampo Justo, voltado a jovens assistidos por casas de acolhimento que, aos 18 anos, precisam deixar as instituições onde moram para encarar o mundo sozinhos.
Por tudo que viveu, Dexter sabe que sonhos podem virar realidade. “Quando fui preso, fiquei uns seis meses pensando no que faria da minha vida, porque achava que tinha acabado”, lembra. “Mas entendi que aquilo não era pra mim e decidi voltar para o rap. Passei a querer viver, e não morrer.” Nesse momento, Marcos justificou o apelido que escolheu para si: Dexter. Foi em 1992, lendo a biografia de Martin Luther King, que ele teve a ideia. O pastor havia batizado assim o seu filho para celebrar a avenida em que ficava a primeira igreja em que pregou. “Me apaixonei pelo nome, foi louco. Fui procurar a tradução e significa destro, direito, mas também significa direito de correto, honesto, e passa por esperto, sagaz, ligeiro. Acredita? Porra, todo cara de periferia tem que ser um Dexter, mano.”
A seguir, um papo cheio de curvas, em que Dexter fala sobre a vida, o rap, o reencontro com Afro X após anos de afastamento e tudo o que viveu dentro e fora da prisão.
Trip. Você comentou comigo em nosso primeiro encontro, em um bar, que ficava feliz quando colocavam você no segundo andar da penitenciária, porque conseguia ver mais longe. Aí, quando chego aqui na sua casa, na área de serviço, vejo que está num vale, com uma vista impressionante.
Dexter. É isso. Gosto dessa vista, sabe? Alcançar o horizonte até onde eu puder. Quando estava na prisão, fiquei 13 anos sem isso. Só olhava para o céu, a muralha não te deixa ver o horizonte. Por isso ficava feliz quando ia morar no segundo andar: ainda era só o céu, mas conseguia ver um céu maior do que quem morava embaixo. Por muito tempo, era só televisão, livro, televisão, livro, futebol, educação física, futebol, televisão, livro, uma conversa ou outra com um parceiro, mas sempre os mesmos assuntos, não renova. Hoje, no hotel que eu for ficar, só tenho uma exigência: que seja no andar mais alto possível, para eu ver o horizonte.
No segundo andar da prisão, seu horizonte era a liberdade. O que você tenta mirar hoje, do seu quintal? Cara, eu poderia dizer para você alguma coisa clichê, minha carreira, não sei o quê. Mas não é isso. O que eu vejo ainda é a liberdade, e gostaria que as pessoas fossem mais felizes. Quando paro aqui para tomar um vinho ou uma cerveja com a minha mulher, geralmente à noite, porque tem esse espetáculo que são as luzes da cidade, o que penso é que eu gostaria de ver todo mundo bem. Olho ali para baixo e vejo certa diferença: embora aqui também seja periferia, estou morando bem. Fico aqui pensando na vida das pessoas, no que estão fazendo neste momento e o que eu poderia escrever sobre elas.
Diferente do rap que você fazia dentro do Carandiru, em que seu personagem principal era o sistema carcerário. Sim, lá eu falava sobre as mazelas do cárcere. Aqui fora, falo das mazelas do mundão. Liberdade sem liberdade não é liberdade, tá ligado? A gente tem medo de ir na esquina. Eu posso sair andando aqui no bairro, as pessoas me conhecem e tal. Mas nem todo mundo pode sair assim à noite.
“Durante o dia, as pessoas trabalham mais, não se mostram como são. A noite chega e isso muda. Isso é liberdade. ”
Dexter
Você fala bastante da noite e pediu para nosso primeiro encontro ser assim. Prefiro trabalhar à noite. Às vezes, estou indo embora da casa da família da minha mulher – de vez em quando, ela vai para São Bernardo e fica na casa da mãe –, e no caminho, no Rodoanel, adoro ver as luzes. Sabe quando você desce para a Baixada [Santista] e vê as luzes lá embaixo? A noite me inspira muito. Às vezes, pego meu carro e vou andar nas marginais, vou da Zona Leste para a Sul apenas para ver as luzes da cidade, ouvindo música, um bom Tim Maia, Jorge Ben, James Brown, Racionais, Thaíde, Péricles, gosto pra caralho. A noite é fascinante, mesmo com os seus perigos.
Tem um paralelo com a liberdade? Pra caralho. Gosto dessa junção aí. É mais liberdade. Durante o dia, as pessoas trabalham mais, estão nas empresas, nos seus negócios, não se mostram como são de verdade. A noite chega e isso muda. Quando você sai do trampo, aí é você de verdade. Isso é liberdade. Tem noite em que pego o meu cachorro e vou andar na rua às 2 horas da manhã, não tem carro, não tem nada, nem na coleira eu levo ele. Amo a noite e é nela que eu ganho meu sustento também.
Como você foi preso? Eu estava indo para a casa da minha irmã, em Serra Negra [interior de São Paulo], quando vi um posto de gasolina no lado oposto da estrada. Estava precisando de dinheiro para gravar meu CD e pensei: “Mano, vou pegar esse posto aí”. Estava sozinho e fiz o retorno, já tinha feito outros roubos assim. Depois do assalto, saí no sentido São Paulo, mas retornei e voltei para o sentido Minas Gerais. Só que os caras tinham fechado os dois lados da rodovia e me pegaram no caminho.
Dinheiro para o disco? Estava atrás de um dinheiro para pagar as contas da gravação, que tinha produção do Edi Rock e do Mano Brown, dos Racionais. Costumo dizer que fui preso porque amo o rap, e é uma verdade. Eu já tinha feito umas bobeirinhas e tal, mas não era uma coisa que queria para a minha vida ou no que eu imaginava que iria me transformar. Também nunca foi uma necessidade, de passar fome. A dona Marina, minha mãe, varreu rua por 23 anos para me criar. Bem ou mal, sempre tinha um arroz, um feijão, um ovo...
O que eram essas bobeirinhas? No começo, eram umas coisas assim, de revólver na mão, pegava uns boy saindo da Overnight, [extinta casa noturna] na Mooca, ou umas lojinhas de roupa. Depois de um tempo, comecei a pegar mercado, entrei em banco também, mas aí não dei sorte: em um, a menina não conseguiu entrar com as armas no banco; no outro, nós estávamos em uma agência no Jabaquara quando parou uma viatura da Rota bem na frente. A gente imaginou que tinha sido uma fita dada, nos assustamos e saímos fora. Mas não era. O cara foi lá no caixa eletrônico mesmo. Nessa fase de pegar uns boys, eu tinha uns 17, 18 anos. Fui preso com 24. Tenho 44 agora, vou fazer 45 dia 17 de agosto, no mês do cachorro louco, leonino zica.
Você manja de astrologia? Eu gosto de ler, tem muita coisa que bate. A Jéssica [produtora dele] vive me mandando essas coisas, fez um mapa astral. Tem muita coisa que bate. Eu gosto também. Meu signo fala muito de liderança e tenho esse instinto, me vejo assim.
Dá um exemplo? Começa um projeto e daqui a pouquinho eu já estou na frente, dominando a fita e tal. Às vezes, nem é uma coisa que eu quero, tento ser mais comedido, ficar mais na minha, deixar as pessoas trabalharem um pouco. Estou aprendendo isso agora, com um amigo com quem estou trabalhando e tem me ensinado a delegar e confiar nas pessoas. Mas até eu pegar confiança nas pessoas e acreditar que elas vão desenvolver o trabalho do jeito que eu desenvolveria – e sempre penso que eu faria com maestria –, demora.
E isso atrapalha você? Hoje, com quase 45 anos, penso que preciso ser menos assim, porque a minha equipe trabalha direitinho. É normal errar, é natural acontecer porque somos seres humanos, mas me cobro muito.
Tem aquela máxima de que a prisão piora o indivíduo. Como lidou com isso? É um fato. O sistema carcerário não é para recuperar. Muito pelo contrário, é de revoltar mais ainda. A prisão faz com que isso continue sendo um ciclo vicioso, o entra e sai da cadeia. Então, tive que lutar por mim mesmo.
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Você conta que conheceu o rap nos anos 80, mas que se ligou mesmo quando descobriu a música “Pânico na Zona Sul”, dos Racionais. Lembra do que sentiu quando ouviu esse som? Cara, foi muito louco. Imagina um quarto escuro e você lá dentro, com várias coisas bonitas, mas também várias coisas difíceis ao seu redor. Mas você nunca viu nenhuma delas. De repente, alguém vai lá e acende a luz e você vê as coisas bonitas e, ao mesmo tempo, muita coisa que vai te fazer mal. Aí você quer fazer com que essas coisas que te fazem mal se tornem coisas bonitas, e vai para a luta. Foi isso que essa música fez comigo. Essa música acende uma luz interna na mente, no coração, no espírito, é foda. Ouvi “Pânico na Zona Sul” e falei: “Se isso é rap, é isso que vou fazer. E esse cara que está cantando essa música, Mano Brown, eu vou conhecer ele também”. Hoje já são 30 anos de amizade.
Começou a rimar já nessa época? Cara, uma semana depois eu já estava rimando, escrevendo umas paradas, cheio de cuidado. Lembro que o nome da música era “Violência do subconsciente”. Foi uma música que cantei durante um tempo, mas não ficou boa. Com o tempo, as rimas passam a ficar mais interessantes. “De preto para preto”, que saiu no primeiro disco do Tribunal Popular [primeiro grupo de rap em que Dexter cantou], é uma música boa. Mas a primeira que me marcou mesmo, em 1993, foi “Animais irracionais”, que falava do massacre do Carandiru. Escrevi sobre o Carandiru e anos depois estaria lá.
E é justamente lá que sua carreira musical deslancha, no grupo 509-E, que criou com o Afro X. Ironicamente, é a prisão que traz você para a condição de vida boa que tem hoje. Talvez hoje você escute o primeiro cara a dizer que a prisão lhe fez bem. Se eu não tivesse ido para lá, não estaria com você aqui trocando essas ideias. Foi a forma que o universo encontrou de me guardar e me trazer para o mundo, para as pessoas, na hora certa, com mais maturidade, respeito à vida, com mais responsabilidade. Eu saí da cadeia como um astro, no bom sentido da frase, na humildade, porque não tenho pretensão nenhuma de ser um astro. Mas, para um garoto que estava fadado ao nada, um sério candidato a morrer cedo na mão do crime ou da polícia, sair da prisão depois de 13 anos fazendo sucesso na música… Eu venci. Foi briga pra caralho, muita luta, mas consegui.
“Hoje, no hotel que eu for ficar, só tenho uma exigência: que seja no andar mais alto possível, para eu ver o horizonte”
Dexter
Quem achou estava errado? Essa frase é realmente bem significativa; não escrevi isso só para mim. Todo ladrão, todo parceiro, gente que conheço e que não conheço, diz para mim que, quando sai da cadeia, “Oitavo anjo” é a primeira música que querem ouvir. “Acharam que eu estava derrotado/Quem achou estava errado...” Digo a mesma coisa da frase “A fé na vitória tem que ser inabalável”. São frases que as pessoas tatuam, O Rappa usou essa segunda, isso, para mim, é uma puta vitória. As pessoas só acharam mesmo que eu estava derrotado, mas graças a Deus e a quem acreditou em mim, estavam errados.
Como conheceu o Afro X? Conheci ele na infância, estávamos na mesma escola e jogávamos bola juntos, em um time do Jardim Calux. A gente se conhecia, mas não tinha uma amizade. Eu saí fora da quebrada com 15 anos e voltei com 17, que é quando começo a trombar mais os caras, em uns shows, porque eles também montaram um grupo, o Suburbanos, que tinha o Afro X e o irmão dele, o Bad. Começamos a cantar rap na mesma época, em 1990, 1991, e eu já estava a milhão abrindo shows para os Racionais com o grupo Tribunal Popular. Aí, em 1994, ele vai preso. Eu visitei o Afro X algumas vezes na cadeia, antes de entrar lá também.
Quando se reencontram na cadeia, foi automática a ideia de criarem um grupo? Quando cheguei na Casa de Detenção, em 1º de abril de 1999, ele estava arrumando um plano para fugir, mas consegui colocar na cabeça dele que não deveria fazer aquilo, que a gente teria um futuro na música. Eu já não queria mais o crime. Morei no Pavilhão 2 uns seis meses e depois eu e o Afro X compramos um barraco no 7, onde ele já morava. Tinha uma “imobiliária” na detenção. Não vou lembrar o valor, foi uns R$ 350. Compramos a cela 509-E. A gente trabalhou naquele barraco com tanto amor, com tanto carinho. Nossa cela virou um lugar incomum, era diferente das outras. Os caras que organizavam a prisão iam lá tomar café e ler um livro, porque tinha paz, música e livros. A cela 509-E passou a falar de vida.
Aí vem o projeto Talentos Aprisionados, da atriz e agente social Sophia Bisilliat, que consegue um contrato para vocês gravarem. Fazem bastante sucesso com o primeiro disco e começa uma rotina de shows, mesmo estando presos. Quantas apresentações fizeram? Foram 157 saídas. O que me mantinha firme era saber que, no dia seguinte, eu ia sair de novo. A gente estava desenvolvendo um trabalho muito legal, bonito, cantando coisas importantes. Eu imaginava como se estivesse voltando para a minha casa. Vou dormir, descansar e amanhã cedo eu saio para trabalhar de novo. A gente parou de ter aquele convívio diurno dentro da detenção. Começamos a ganhar um espaço tão grande que a gente trabalhava de dia e de noite e só voltava de manhã para fazer a baixa na contagem.
Até a briga com o deputado estadual e policial aposentado da Rota Conte Lopes, no programa Altas horas. Essa rotina é interrompida. Sim, era um quadro chamado “Paredão”, no programa do Serginho Groisman. Dois pretinhos da favela, presidiários, cantores de rap desafiando um deputado em rede nacional. A ideia era um papo entre duas pessoas ou mais de lados opostos, de ideologias diferentes. Convidaram o 509-E para conversar com o Conte Lopes e só podia dar no que deu. Eu já tinha lido sobre ele no Rota 66 e fiz a primeira pergunta com base nesse livro do Caco Barcellos. Ele esbravejou e eu falei que ele não precisava gritar, que daria meu microfone pra ele. E ele foi ficando cada vez mais nervoso. Tenho a humildade de reconhecer que a gente não tinha que ter ido. Foi importante na época, mas não queria ter dado esse gosto para ele.
O 509-E se separa depois do segundo disco, com o Afro X já solto e você ainda preso. Ele já estava na rua e a gente começou a fazer shows em que eu entrava pelo telefone para cantar duas músicas. Durou um tempinho, mas chegou um momento em que a gente decidiu que tinha que trilhar uma nova caminhada, fui fazer a minha carreira solo e ele também. Isso foi em 2004.
E passaram um bom tempo sem se falar... Sim, anos. Agora, mais velho e amadurecido, voltamos a trocar ideia. Ele sempre me procurou e eu nunca quis. Ele foi insistente. Aí falei: “Tá bom, se quer trocar ideia comigo, vou na sua casa”. E fui. Conversamos sobre as coisas que aconteceram, mostrei para ele alguns pontos com os quais ele concordou e teve a humildade de reconhecer. Percebemos que era mais importante a nossa amizade do que a nossa briga, passamos por vários momentos juntos. Se falo de amizade, de carinho, de perdão e de respeito nas minhas letras, eu preciso praticar isso também. Não é fácil, mas é preciso. Isso foi em 2017. E agora, no começo do ano, mais serenos, paramos para conversar e resolvemos nossos problemas de vez. Estamos conversando, organizando as redes sociais do 509-E, que até hoje não existiam. Eu tenho a minha carreira solo, ele tem a dele. Mas vamos aguardar.
“Nossa cela virou um lugar incomum. Os caras que organizavam a prisão iam lá tomar café e ler um livro. A cela 509-E passou a falar de vida ”
Dexter
Com o 509-E de volta aos palcos para uma turnê, você consegue se ver no futuro compondo alguma coisa com o Afro X de novo? Ah, mano, reticências; é melhor assim. O amor salvará o mundo. Pelo amor às pessoas, a gente abre mão de uma série de coisas, de milhares delas. Para criar, ainda não sei. Mas o tempo é rei, vamos aguardar.
O amor é um tema recorrente para você. É uma parada que fazia muita falta lá dentro? Com certeza, a música e o amor fizeram falta pra caralho. Você pode estar no fundo do poço, mas ainda vai ser o que é. Fui criado com muito amor, então tenho que falar disso.
Como você fez, com tantas dificuldades sociais e familiares, para não sucumbir ao ódio? Só você pode salvar a sua vida e isso se dá através do amor, foi onde me segurei. Você tem que se amar, tem que estar firmão, fortão com você. O amor tem que te acompanhar sempre e, no meu caso, a música também. Mesmo você tendo seus momentos racionais do ódio – o bagulho é louco, tem hora que não dá –, você tem que estar munido de amor. É importante para caralho, é ele que salva vidas. E sempre tive o rap como base, o que me dava uma sustentação também, o rap salva vidas.
Sem o rap, acha que o crime poderia ter dominado você lá dentro? Eu vou falar uma fita para você: a minha vida nunca foi pautada pelo crime. Mas pode ser que tivesse acontecido, porque tem uns atrativos. Mas quando entrei na prisão, decidi não ficar nela. E, se entro na prisão decidido a não ficar, não posso querer o crime, entendeu?
Você tinha essa convicção de que voltaria a rimar quando foi preso? Não, fiquei uns seis meses pensando o que eu faria da minha vida: “Caralho, e agora? Não teve acerto, não teve nada, como é que vai ser isso?”. Para mim, tinha acabado. A minha primeira pena foi de cinco anos e quatro meses, a primeira. Mas a minha condenação total chegou a 52 anos, foram 6 assaltos e 1 homicídio.
Como foi quando chegou na prisão? Como eu já tinha visitado o Afro X algumas vezes na cadeia – ele foi preso em 1994 e eu, em 1998 –, eu tinha aprendido muitas coisas. Quando eu ia, conhecia muitos caras através dele, criminosos mesmo. A mulher dele ia também e, na hora da visita íntima, eu ficava por lá trocando ideia. Fui pegando muito do que eles me falavam a respeito da cadeia e guardando essas informações. Então, quando fui preso, algumas coisas eu já sabia como funcionavam e de que forma eu tinha que proceder. Foi importante esse aprendizado “teórico” com os caras.
Por quantos presídios você passou? Fugiu alguma vez? No total foram uns oito ou nove. Eu fugi de Atibaia [SP], quando fui preso. Eu estava lá há um mês e os caras armaram uma fuga. Fui com eles, mas, na hora de pular o muro, quebrei o tornozelo e não consegui ir embora. Aí me transferiram para Serra Negra [SP] e houve outra fuga, fui no armário do policial e peguei o revólver dele. Fiquei dois dia na rua e voltei, com mais um B.O.; nessa, peguei um carro, uma moto, um supermercado para arrumar dinheiro. Aí, fui transferido para Amparo [SP], mas o delegado de lá não me quis e me mandou para Bragança [SP], que era sistema Apac [Associação de Proteção e Assistência aos Condenados]. Tem um fundamento humanitário, mas, nesse sistema, é ladrão que tranca ladrão, aí não dá, dentro da prisão, isso é antiético. Fugi dessa cadeia também, fiquei mais dois dias na rua. Fui recapturado. Foi aí que os caras falaram: “Esse não tem jeito, foge muito”. E me mandaram para a detenção, para o Carandiru. Foi quando comecei a ver jovens, da mesma cor que eu – eu sempre falo isso, sempre vem essa imagem na minha memória, de jovens da mesma cor que eu, da mesma idade que eu, morrendo cedo. Então, eu comecei a entender que aquilo não era pra mim e decidi voltar para o rap. E aí minha trajetória mudou, porque passei a querer viver, e não morrer. Então não podia continuar no crime.
Qual foi a primeira coisa que fez quando saiu da cadeia? A primeira coisa que fiz, assim que o portão bateu atrás de mim, foi ajoelhar e fazer uma oração agradecendo a Deus por estar vivo. Aí chorei, me emocionei, só queria ir para casa e ficar com a minha mulher na época, curtindo, comer uma comida diferente, que era uma coisa que eu já estava fazendo nas minhas saídas, mas, com o alvará na mão, tudo aquilo teria um novo gosto, diferenciado, mais refinado. Minha mulher estava no carro me esperando. Eu tinha chegado da Bahia, de um show, estava me apresentando na unidade quando recebi a notícia. Aproveitei para me despedir dos caras. Entrei, fui buscar minha Bíblia e algumas fotos, o restante eu deixei para eles lá.
Em “Oitavo anjo”, você canta que não se esconde atrás da Bíblia. É uma outra conotação, porque eu vejo a palavra de Deus com muita seriedade. Quando um cara vai para a cadeia, mas não tem condições de segurar, aí ele se esconde atrás daquilo. “Na igreja, eu estou protegido pela palavra”, só que ele não está de coração. Eu leio a Bíblia hoje e questiono muita coisa, porque entendo que a palavra foi mudada durante os anos pelo homem, mas existe uma ligação espiritual, de fé, não é só a palavra.
Você é religioso? Fui criado em um berço evangélico, minha mãe, irmã, família. Eu me batizei nas águas quando tinha uns 8, 9 anos, na igreja batista. Acredito muito nessa força maior, em um lance espiritual. Só a fé pode te levar por determinados caminhos.
Quantos irmãos você tem? Da última vez que contei, tinha 13. Da minha mãe biológica, Francelina, tenho três irmãos e uma irmã. Era para ter cinco, mas uma morreu de meningite aos 5 anos. E da minha mãe, a dona Marina, que me criou, tenho duas irmãs. Da primeira família do meu pai, tenho dois irmãos e duas irmãs; da segunda família dele, tenho duas irmãs. Uma época fui morar com meus irmãos em Diadema [Grande São Paulo] e, num dia em que estávamos conversando, ouvindo música, apareceu um cara parecido comigo na casa do meu pai, procurando onde morava o Joça, que é apelido do meu pai, Juscelino. Olhei para o cara e me vi nele. Fiquei naquelas: “Esse cara se parece com quem, mano?”. Somos 13.
Você foi adotado com 1 ano e meio. Teve contato com a sua mãe biológica? Eu tive aos 7 anos, o juiz que deu a guarda para a minha mãe pediu que ela me contasse a história quando eu completasse essa idade, que, segundo ele, era uma idade de formação de caráter. Eu não consigo ter um vínculo afetivo com ela. Vi de novo ela com 12 anos, mas nunca nos conectamos. A minha mãe é a dona Marina, que me criou. Ela, coração bom, fala: “Meu filho, você tem que um dia agradecer a sua mãe, no mínimo, por ela ter dado você para mim. Você já agradeceu? Tudo bem que ela não teve condições de criar, mas ela te deu para mim, foi o maior presente da minha vida”. Ela é foda, o coração dela é bondoso para caralho, eu queria ter 50% do coração dela.
Como a dona Marina chegou em você? A história da adoção é louca. Quando minhas irmãs eram pequenas, começaram a pedir um irmãozinho. Dona Marina, alagoana arretada, que tinha largado o casamento, pegado as duas filhas e vindo para São Paulo, disse que não queria saber de homem. Mas um dia ela comentou com a vizinha, dona Maria, que era feirante, que falou: “Por que a senhora não pega um menininho?”. Minha mãe falou que achava muito trabalho, mas que, se aparecesse um de papel passado, pegaria. Algum tempo depois, uma cliente da banca da dona Maria perguntou se ela conhecia alguém que quisesse um menino. Ela chamou a minha mãe na hora, que chamou a dona Severina, que seria minha madrinha, e foram as três na casa da minha mãe biológica. Chegando lá, minha mãe conta que ouviu uma criança chorando e viu algumas coisas, não ficou feliz. A minha mãe biológica falou: “Se quiser levar, pode levar”. Minha mãe falou que levaria com papel passado. E me adotou.
Como foi a reação da sua mãe, dona Marina, quando você foi preso? Você acredita que ela ficou um bom tempo sem saber que eu estava preso? Não sei precisar quanto, foram uns cinco anos em que ela acreditou que eu estava no Rio tentando a vida na música. Aí chegou um momento em que a saudade já estava doendo demais e falei com a minha irmã que teríamos que contar. Em 2004, ela foi lá me ver e falou: “Estamos juntos, semana que vem eu volto”. Foi foda a música que fiz para ela, “Me perdoa”, que canto com o Péricles. Explica muito bem: “Eu virei as costas para você/E não percebia a vida que deixei para trás/Vou compensar todo o sofrimento que causei quando voltar/Prometo não ser mais insensato imaturo/Eu te juro que a minha volta vai te trazer muito orgulho”. E ela me diz que tem muito orgulho de mim, isso me faz feliz.
Durante boa parte da sua vida, ela tinha tudo pra dar errado. Aí você sai da cadeia como artista. Nas últimas semanas, esteve no programa do Pedro Bial, no Altas horas, do Serginho Groisman, outra vez. Conquistou o sucesso, mas não escapou da depressão, que você canta em várias músicas. Em que momento percebeu que estava doente? Irmão, são vários momentos dentro de um só. Começam a acontecer coisas que você não entende o que é, uma tristeza que não sabe de onde vem, quando vai ver, está diagnosticado com depressão. Graças a Deus nunca pensei em me matar, porque é algo que pode chegar nesse nível.
Estava na prisão? O primeiro sintoma que lembro de ter tido foi na prisão ainda, em Presidente Bernardes [SP], quando descobri que estava com síndrome do pânico. Mas depois sumiu e agora, há pouco tempo, voltou. Dessa vez fui na psicóloga, porque é muito foda. A nossa vida é muita pressão todo dia, toda hora, não é fácil ser rapper. Para muitas pessoas, você é um herói, mas, para outras, sobretudo neste momento, é o inimigo.
“As pessoas não respeitam a natureza, que é perfeita, vão respeitas outra pessoa que tem os mesmos defeitos dela?”
Dexter
Você falou deste momento complicado. Como você, que cresceu em quebrada e passou 13 anos na detenção, vê a tentativa de facilitar o acesso às armas? Eu vejo perigo, tem uma música nova minha em que digo que “quem com ferro fere, com ferro será ferido”. É isso. Não é a solução em hipótese alguma. E se a gente for falar de liberação de armas no Brasil, ela já existe, de certa forma. O que o Bolsonaro está fazendo? Ele só está dando condições para que os dele possam andar armados sem problema nenhum. É impossível acharem que é uma solução para um país despreparado, que não tem educação. As pessoas não respeitam a natureza, que é perfeita, vão respeitar outra pessoa que tem os mesmos defeitos dela? Somos carentes de educação, cultura e informação. Como que você vai colocar uma arma na mão dessas pessoas achando que a criminalidade vai acabar? Daqui a pouco será o pai de família que estará indo pra cadeia por causa de uma briga de trânsito. Eu fico com os livros. Quando eu posto determinadas coisas no Instagram, alguns imbecis chegam com aquele papo de criancinha: “Joga um livro no assaltante quando ele entrar na sua casa”. Porra, cara, se os livros chegarem primeiro, você não vai precisar atirar em ninguém mais tarde. A atitude desse presidente não é honesta com as pessoas.
Você estudou até que série? Até a quinta.
Sente falta de ter estudado mais? Sinto. Às vezes, estou conversando com as pessoas e elas falam que estudaram, terminaram, têm o diploma. Eu gostaria de poder falar isso. Nunca é tarde, mas hoje a minha carreira toma muito de mim. Mas sempre que posso, estou lendo alguma coisa, estou sempre em um processo de aprendizagem. Quero ler muito mais e gostaria de voltar a estudar. Vou começar a fazer aula de canto agora.
Mas você quer gravar alguma coisa diferente de rap ou quer gravar rap de um jeito diferente? Pode ser isso, o rap mudou consideravelmente. A minha essência não morre, mas se puder incorporar algo dentro da minha música que não saia fora do que acredito... Sempre vou em rodas de samba e de vez em quando as pessoas gravam e colocam na internet. Esses dias, fiz uma parada com o Salgadinho [Katinguelê] e foi bem legal. Vieram falar que não sabiam que eu cantava.
Você é um homem realizado? Sim. Claro que tenho sonhos, muita coisa que talvez não esteja ao meu alcance, mas como meu trabalho é de formiguinha, sim. Tenho os meus defeitos, não sou certinho, mas sou um sonhador, um cara que acredita nas coisas.
Pretende ter filhos? A gente mora junto, posso dizer que estou casado. Eu sou louco para ser pai, mas há hora para tudo. Agora é um momento em que eu e a Andressa estamos procurando construir algumas coisas primeiro, para depois tê-los.
Você se vê numa missão? Sim, exatamente essa, de cantar para as pessoas, tentar fazer com que a vida delas seja melhor de alguma forma através da minha música. Tenho essa preocupação. Não consigo, não quero, não devo e não posso mudar a minha diretriz. É um dos ensinamentos do Mano Brown: eu preciso ser útil. Ele me ensinou isso, o Malcolm X me ensinou isso, Mandela, Martin Luther King, Zumbi... Eu preciso ser útil.
Foco na missão
Entre os projetos com que está envolvido atualmente, um que tem ocupado bastante a agenda de Dexter é o Trampo Justo. À frente do projeto, idealizado em uma parceria do Tribunal de Justiça de São Paulo e o CIEE, está o juiz titular da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos e assessor da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, Iberê Dias, que, tal qual nas maratonas que corre como atleta, mantém o passo apertado em direção a uma causa que assumiu no judiciário: o trabalho com jovens em situação de vulnerabilidade.
O paulistano criado no bairro de Cerqueira César, juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos e assessor da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, já havia desenvolvido outras iniciativas voltadas a amenizar a brutal falta de oportunidades para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O foco é criar pontes para o mercado profissional para jovens que, aos 18 anos, precisam deixar as Casas de Acolhimento onde moram para encarar o mundo sozinhos. Todo mês, são cerca de 50 pessoas com este perfil que partem para o mundo lá fora no Estado de São Paulo.
No projeto coordenado por Iberê, Dexter é um porta-voz do TJ-SP junto a esses jovens, em encontros que visam inspirá-los para a batalha que terão pela frente. “Vou lá conversar com essas pessoas, que não têm família e, com 18 anos, vão ter que seguir para a vida. Minha ideia é mostrar para essas pessoas que elas têm, sim, um potencial muito grande, que não precisam do crime para sobreviver. No fundo, a linha é uma só: salvar vidas. Trocar ideia para que, de alguma forma elas se encontrem e passem a ter o que eu tenho, que é vontade de viver”, explica o rapper. “Não tem cachê maior ou melhor do que isso, do que ver a vida de alguém mudar bem ali na sua frente por conta do seu trabalho. É foda.”
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Imagem principal: João Wainer