Entenda as diferenças entre os dois conceitos e o que podemos fazer para caminhar para uma sociedade onde peso não defina caráter e onde os gordos sofram menos preconceito
Se você acompanha as discussões sobre corpo que rolam diariamente na internet e segue perfis de mulheres que falam de beleza real ou sobre como é ser uma pessoa fora do padrão de beleza, com certeza já se deparou com a palavra gordofobia.
Ela entrou no vocabulário popular brasileiro há pouco tempo, ainda que o conceito exista há décadas. Nos últimos meses, um dos casos de maior repercussão sobre o assunto foi quando a atriz Cleo Pires postou no Instagram uma foto 20 quilos acima do seu peso usual e recebeu duras críticas. Em entrevista ao Fantástico pouco tempo após o episódio, ela também usou outro termo para falar sobre o que ela tinha sofrido: body shaming. Mas, afinal, o que ela sofreu? Gordofobia ou body shaming? Ou os dois? A resposta não é simples e nem absoluta, mas há alguns conceitos que podem ser esclarecidos a partir desse caso.
Primeiro de tudo, é importante lembrar – como se desse para esquecer… – que todas nós estamos submetidas a um padrão de beleza. E, por isso, sofremos pressão, em maior ou menor escala, para nos adequarmos a ele. É o que chamamos de pressão estética – e isso é bem diferente de gordofobia.
Quem explica é a modelo e ativista Luana Carvalho: “A pressão estética atinge todas as pessoas e a gordofobia somente pessoas gordas que sofrem estruturalmente esse preconceito”. Pode parecer a mesma coisa, mas o nível de complexidade das duas opressões não se compara, já que somente pessoas gordas passam por algumas situações.
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“A gordofobia alcança níveis de crueldade e desumanização muito maiores do que a pressão estética, fazendo pessoas gordas não terem acesso às diversas áreas da vida que garantem minimamente a dignidade aos seres humanos, faz mulheres grávidas gordas terem atendimento recusado porque o hospital não tem o equipamento adequado para realizar o parto e faz nutricionistas usarem fotos de pessoas gordas em seus consultórios e redes sociais dizendo que essas pessoas são ‘desserviço à humanidade’”, continua Luana.
Um bom – e triste – exemplo disso é o caso de Thais Carla, bailarina e militante contra a gordofobia. Grávida e com 160 kg, Thais desabafou recentemente no Instagram sobre a dificuldade de encontrar um hospital que pudesse fazer o parto de sua segunda filha, Eva. Foi uma experiência revivida, pois tudo isso já tinha rolado quando ficou grávida da primeira, Maria. “Veio um filme na minha cabeça. E foi horrível. As pessoas gordas não podem viver, ter filhos, ter nada", disse, em suas redes.
Todo mundo vai sofrer
Mas, voltemos a diferenciar os conceitos para entender melhor essa diferença. Quando falamos sobre pressão estética, é bom reforçar que ela atinge todo mundo, independente de seu formato de corpo. E, ao olhar mais profundamente para a questão, vemos o quanto suas raízes são profundas.
“Quando a gente pensa na nossa sociedade, que é patriarcal, percebemos que o machismo é a raiz do problema. Os homens veem a mulher como objeto e como algo a ser possuído. A mulher tem que ser subjugada ao homem e o olhar que importa é aquele do homem sobre ela. Essa pressão existe de qualquer jeito, a pressão para ser perfeita. Há um padrão para ser seguido e quem se aproxima mais dele é mais bonito”, completa Alexandra Gurgel, mais conhecida pelo perfil @alexandrismos, pioneira dessa discussão no Brasil e criadora do termo #CorpoLivre, uma adaptação do movimento #BodyPositivity, que prega que todo mundo descubra aspectos positivos sobre seu corpo e se ame.
E o que podemos fazer para acabar com esse tipo de preconceito que afeta todas as mulheres? Para a pesquisadora Joana de Vilhena Novaes, o problema da gordofobia, por exemplo, só vai começar a dar passos para uma melhora real quando isso se tornar uma pauta de saúde pública. “Do mesmo jeito que criminalizamos o racismo, temos que criminalizar a gordofobia. Se você ofende alguém nesse âmbito, tem que participar de debates, ver vídeos e fazer um serviço comunitário. Só assim conseguiremos mudar essa mentalidade”.
Além de pesquisadora, Joana é psicanalista e coordenadora do Núcleo de Estudo de Doenças de Beleza, no Rio de Janeiro, um espaço voltado para o atendimento psicológico de quem tem distúrbios relacionados à imagem corporal como anorexia, bulimia, vigorexia, ortorexia, e por aí vai. A iniciativa contempla, além da comunidade da PUC, universidade em que está localizado, o atendimento em hospitais públicos da cidade.
“Temos estudos muito sérios que mostram como esses comentários nefastos levam à depressão e ao suicídio. Tem muita gente boa, psicanalistas e estudiosos, afirmando que isso não é mimimi, que esse comportamento tem uma repercussão psíquica e emocional. Nosso próximo passo é militar para essa prevenção e a educação das pessoas tratando isso como um problema de saúde pública”, completa Joana.
A revolução será instagramada
Como quase todos os fenômenos sociais, a construção desse tipo de pensamento também é moldada pela mídia. Enquanto modelos e atrizes que estrelam campanhas continuarem sendo magras e dentro de um padrão muitas vezes inatingível, nada vai mudar. Nos últimos anos, há uma pressão enorme para que marcas, revistas e veículos em geral incluam corpos diferentes do padrão em sua comunicação, fazendo com que as pessoas aceitem e entendam aqueles que estão fora do padrão. Isso também mostra para pessoas não magras que elas podem, sim, ocupar lugares de destaque na moda, na publicidade e em qualquer outro meio. A representatividade nunca foi tão importante.
Educar a população para distinguir esses dois conceitos também é um ponto-chave. “Temos uma cultura de transtornos alimentares, dietas, remédios de emagrecimento. Todo mundo se acha gordo. As pessoas engordam três quilos e acham que estão gordas, porque aprenderam que é assim desde pequenas. As pessoas têm que ser educadas para entenderem se elas estão dentro ou fora do padrão. E, se estiverem fora, se são gordas ou não. Não é para criar uma segregação entre magros e gordos, mas para que se entenda que existe esse preconceito”, explica Alexandra.
Ainda que só agora a gordofobia tenha ganhado alguns holofotes e se tornado pauta, a verdade é que há anos o padrão de beleza da mulher se torna cada vez mais inatingível. “Todas as pessoas que não seguem esse padrão são supostamente gordas, mas não é assim que funciona”, comenta Luana Carvalho. “O capitalismo trabalha com o sentimento de insatisfação das pessoas para gerar consumo de produtos cada vez mais supostamente melhores e que precisamos comprar para sentir que fazemos parte de algo que satisfaça nossas supostas necessidades. Essa é a mesma lógica que a gordofobia e a pressão estética trabalham”.
Outra questão apontada por Luana é que muito do movimento contra gordofobia se pauta em autoamor e autocuidado. “Pessoas gordas podem ter a autoestima que for. Mesmo assim, continuarão sofrendo desumanização, negligência, preconceito, falta de acesso, gordofobia médica. Além de ser extremamente errado tratar o combate à gordofobia dessa forma, com narrativas voltadas para autoestima, é também elitista, já que a maioria das pessoas gordas comuns não têm acesso a esse tipo de conteúdo. Pessoas gordas comuns estão entrando em uma mesa de cirurgia para realizar a bariátrica porque sonham em ter uma vida com dignidade e comprar roupas baratas que sirvam em seus corpos, enquanto os 'militantes' estão falando de amor próprio. Pessoas gordas continuam sendo humilhadas no trabalho, no hospital, na família, na escola e na rua enquanto o combate à gordofobia, pelo menos na internet, segue uma única narrativa. Precisamos de mais, precisamos de políticas públicas, precisamos de médicos não gordofóbicos, precisamos de respeito e dignidade”, finaliza.
Créditos
Imagem principal: Projeto Mulheres Reais