Como encarar a própria imagem?

por Daniela Arrais
Tpm #180

Em meio à era do Instagram, dos filtros e retoques digitais,
tentamos descobrir como fazer as pazes com a vida real

Durante a adolescência, meu sonho era ter o nariz da Sandra Bullock. Sofria pedindo à minha tia de presente uma cirurgia plástica. Ela sempre negou. O tempo passou, continuo não gostando muito do meu nariz, mas até que aprendi a conviver com ele. Talvez se fosse adolescente hoje e tivesse acesso a tantos recursos tecnológicos para melhorar minhas selfies, continuasse querendo fazer a plástica, mas levaria à consulta com o médico meu próprio nariz moldado por filtros e aplicativos.

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É isso que tem acontecido com quem é acometido pela Dismorfia do Snapchat, termo que define o comportamento de jovens que recorrem a cirurgias para ficar parecidos com suas selfies: lábios mais cheios, olhos maiores, nariz mais fino. Se antes desejávamos as características das celebridades (a boca de Angelina Jolie ou o nariz arrebitado da Isis Valverde), agora optamos por nossas versões digitais turbinadas.

A tendência foi identificada por um grupo de pesquisadores da Universidade de Boston, no ano passado. “Vivemos em uma era de selfies editadas e padrões de beleza em constante evolução. O advento e a popularidade das mídias sociais baseadas em imagem colocaram o Photoshop e os filtros no arsenal de todos. Alguns toques no Snapchat podem dar à sua selfie uma coroa de flores ou orelhas de cachorro. Um pequeno ajuste no Facetune pode suavizar a pele e fazer com que os dentes pareçam mais brancos e os olhos e lábios, maiores. Um compartilhamento rápido no Instagram, e as curtidas e comentários começam a aparecer. Esses filtros e edições se tornaram a norma, alterando a percepção de beleza das pessoas em todo o mundo”, resume o estudo.

“Não somos lindos nem nos amamos o tempo todo. E tudo bem. É preciso conviver com a insatisfação.”
Julia Petit

Em outras palavras, a linha entre realidade e fantasia fica cada vez mais tênue. Os riscos são o aumento nos níveis de insatisfação e ansiedade, levando, em casos extremos, até a um distúrbio dismórfico corporal (quando há um foco obsessivo em um defeito físico que a pessoa acredita ter). Mas o que faz com que a gente queira cada vez mais se parecer com as versões editadas que postamos na internet?

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Um dos motivos é que, para camadas mais jovens, a distinção entre o digital e o analógico já não existe mais. Adolescentes hoje são nativos digitais, já nasceram desfrutando da conexão incessante.

“Um adolescente entende que ele é a máquina. Não tem distância entre ele e o app que vai aperfeiçoar sua imagem”, diz Joana de Vilhena Novaes, psicanalista que coordena o Núcleo de Estudos de Doenças da Beleza da PUC-RJ. Ela cita a pesquisadora argentina Paula Sibilia, que fala de um corpo pós-orgânico, em que o ego não está mais dentro de cada um, e sim na tela. “Esse tipo de dismorfia só vem comprovar isso. Se a tecnologia e todos os dispositivos que uso são apenas tão somente uma extensão minha, é natural que eu busque práticas corporais de inclusão. Cirurgia é uma delas. Quero, de alguma maneira, incorporar a mim algo que eu já vivo como meu.”

“Se você é negra, ele te clareia mais, afina o nariz, o que te deixa mais aceitável para a sociedade.”
Amanda Abreu

Para Joana, esse tipo de acontecimento é fruto da junção da sociedade do consumo à sociedade do espetáculo. A primeira cria um acesso muito facilitado aos dispositivos. A segunda reflete uma busca incessante pelo ideal. “Para que vou conviver com um defeito se tenho à disposição cada vez mais recursos acessíveis de aprimoramento da minha imagem? Não preciso ter incômodo com qualquer imperfeição, não preciso mais lidar com essas feiuras.”

Julia Petit, criadora do site Petiscos, que tinha a beleza como um dos seus principais temas, e hoje está à frente da marca de produtos para pele Sallve, acompanha a tendência com preocupação. “Na China e no Japão, já existem aplicativos de realidade 
virtual em que você fala com outras pessoas como se tivesse a aparência dos filtros. A pessoa vive como outra, já não se reconhece como ela é.” Nas pesquisas para sua marca, um pedido surpreendeu a equipe: produtos que deixem a pele sem poros. “Querem que eles sumam. É reflexo do efeito blur [de borrão] dos apps, querem essa textura na vida real. E nunca vão ter. A gente tem poros, da mesma forma que tem nariz.”

Para Julia, entender qualquer mudança estética como consumo é perigoso. “Agora está na moda ter a aparência das Kardashians. Você coloca mais boca, mas depois quer menos, como se estivesse comprando uma bolsa. Por que modificar tanto seu rosto, que é sua identidade primordial?”, questiona, mas também ressalta a liberdade de cada um. “As pessoas se observam demais. Talvez faça mal a gente se analisar tanto, se comparar tanto.”

“Um adolescente entende que ele é a máquina. Não tem distância entre ele e o app que vai aperfeiçoar sua imagem”
Joana de Vilhena Novaes

Nunca tivemos tanto acesso a imagens como hoje em dia. Estima-se que sejam publicados 100 milhões de fotos e vídeos no Instagram diariamente. Também acumulamos centenas de fotos de nós mesmas no celular. Até postar a selfie perfeita, não duvido que você tenha feito umas 50 tentativas, certo?

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“Acho que tem uma diferença entre se olhar no espelho por alguns instantes e ficar se vendo em fotos”, diz Vânia Goy, jornalista especialista em beleza e criadora do site Belezinha. “Mesmo quando a gente colecionava os nossos cliques digitais ou impressos e era supercrítica com a imagem, a gente não ficava fuçando nos arquivos o tempo todo, como agora, com o celular. As selfies e aplicativos focados em imagem aumentaram o nosso repertório visual e acabaram colocando a nota de corte do que é considerado perfeição lá no alto.”

O fato de a manipulação de imagens estar ao alcance de todos contribui. “Sai da mão do profissional e coloca na mão de todo mundo o bisturi virtual. E você muda completamente o relacionamento com seus defeitos”, afirma Iza Dezon, especialista em macrotendências e parceira da agência Peclers Paris no Brasil. Ela lembra que, após uma queda no número de jovens que recorrem a plásticas nos últimos anos, esse índice voltou a crescer.

Da tela para a pele

Dados da AAFPRS (Associação norte-americana de cirurgia plástica facial e reconstrutiva) de 2017 apontam que 55% dos cirurgiões relataram ter visto pacientes solicitando procedimentos para “melhorar sua aparência em selfies”, um aumento de 13% em relação ao estudo anterior.

“Quando você testa esses filtros, eles te colocam em um padrão. Se você é negra, ele te clareia mais, afina o nariz, o que te deixa mais aceitável para a sociedade”, diz Amanda Abreu, publicitária e uma das fundadoras do projeto Indique uma Preta, rede de apoio, empregabilidade e desenvolvimento profissional para mulheres negras. Aos 28 anos, ela se sente confortável em seu corpo, mas, caso fosse adolescente, pensa que o impacto seria outro. “Iria querer ser mais clara, fazer plástica no meu nariz. A gente está vivendo um momento muito estranho. As pessoas não se perguntam por que não se aceitam”, diz ela, citando como a internet hoje se divide em dois espaços. “Um mais saudável, em que a gente começou a falar de libertação dos corpos, de autoimagem. E outro mais tóxico, de querer alcançar um padrão a todo custo. É isso que é beleza?”, questiona.

Para um problema da nossa época, o antídoto de sempre: consciência. Precisamos falar sobre beleza, autoaceitação, insatisfação, padrões inatingíveis. Precisamos pensar nessas tantas horas na internet e entender por que passamos tanto tempo olhando vidas perfeitas de outras pessoas. Instagram e Facebook, aliás, anunciaram que vão restringir para o público menor de 18 anos o alcance de posts sobre produtos e serviços relacionados a emagrecimento e cirurgias plásticas para fins estéticos. E, em outubro deste ano, o Instagram passou a remover os filtros que simulam cirurgias plásticas.

“Acho que tem uma diferença entre se olhar no espelho por alguns instantes e ficar se vendo em fotos.”
Vânia Goy

Iza aposta que vamos voltar a prestar mais atenção nessa juventude que está tão obcecada consigo mesma. “Estamos passando por um autoapaixonamento. A quantidade de reação que você tem quando posta uma selfie é exponencial. Precisamos entender como conversar sobre isso em casa, no trabalho, nas escolas.” Julia concorda: “A gente vem de um tempo da hiperautoestima, em que precisamos nos amar, nos achar lindas e maravilhosas o tempo todo, nos elogiar sempre. Isso criou um falso diálogo das pessoas com elas mesmas”, diz. “Não somos lindos nem nos amamos o tempo todo. Devíamos aprender a ter uma convivência pacífica, achar coisas que a gente ame em nós mesmas é suficiente. Tem outras que vamos detestar mesmo. E tudo bem. É preciso conviver com a insatisfação.”

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Outra estratégia é pensar no quanto estamos sendo impactados por imagens. “Reduzir o tempo que você passa olhando o Instagram, o Snapchat, as imagens que você manipulou”, completa. “Precisamos usá-los de maneira frugal, reduzindo o consumo de selfie e de imagens de outras pessoas.”

Amplificar o conceito de beleza é urgente. “Tem que ser algo mais amplo do que medidas corporais. Lembre que seu corpo é companheiro, não pode ser algoz. Precisamos fazer do corpo uma morada agradável, uma fonte de prazer, desenvolver uma relação de mais serenidade, brincar com ele”, diz Joana. E fazer um mergulho para dentro. Porque não tem efeito que dure mais do que fazer as pazes com nós mesmos.   

 

Daniela Arrais é jornalista e sócia da @contente.vc, estúdio de criação
que trabalha para promover uma vida digital mais atenta e consciente.

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