Axé ativista
Daniela Mercury lança novo disco e fala sobre Bacurau, Bolsonaro, a nova cena baiana e, claro, Carnaval
“É a rainha da balbúrdia que chegou pra balançar/as bruxas, as bichas o meu canto é de fé em nós/minha força é a nossa voz/é a resistência, é a resistência.” Sob o signo da resistência, a baiana Daniela Mercury canta os versos de “Rainha da Balbúrdia”, no início de Perfume, seu novo álbum, lançado oficialmente neste 10 de janeiro. A faixa que abre o disco, assim como outras do álbum, despista a tristeza que a embaixadora da alegria no Carnaval confessa sentir pelo Brasil de 2020. Em entrevista por telefone, de Salvador, ela conversa sobre seu axé cada vez mais ativista, a nova e transformadora cena musical baiana e as expectativas para o Carnaval de 2020.
Tpm. Por que o título Perfume?
Daniela Mercury. Foi por causa da frase de “Rainha da Balbúrdia”, “somos feitos de sol e música e perfume”. Já falei de nós, brasileiros, como um povo brilhante, solar. Os trópicos interferem, a luminosidade, o sol. E nós, aqui no Nordeste, estamos muito mais relacionados ao sol, porque temos em quase todos os dias do ano. O perfume é porque a gente é cheiroso como povo. Me lembro das descrições da chegada dos portugueses ao Brasil dizendo que os indígenas tomavam muitos banhos, eram muito cheirosos. É bom que sejamos cheirosos, mas num sentido muito mais amplo. É uma forma a mais de celebrar nosso orgulho de sermos nordestinos. O álbum fala disso.
A música “Rainha da Balbúrdia” também fala sobre o bacurau (“meu canto é alegre/é o canto do carnaval/é o grito do bacurau”). É por causa do filme? É. Bacurau me comoveu muito, não somente por todos os paralelos com a realidade. Me trouxe uma lembrança da garra que a gente tem, de como somos afetivos no Nordeste e que, quando a gente está unido, não importa a força de quem está contra nós. A gente precisa se proteger, encontrar estratégias de sobrevivência, lutar, independentemente da dificuldade. São muitas simbologias ali, sobre quem se acha mais e menos brasileiro, mais e menos branco, o preconceito de raça, a xenofobia, o olhar sobre nós mesmos. É muito profundo, desnuda muitos preconceitos dos brasileiros como brasileiros. Tudo aquilo é muito nítido para mim, é como Democracia em Vertigem, de Petra Costa, que é uma confirmação do que eu havia visto.
Isso pode ser estendido ao seu trabalho atual? Nos seus discos recentes, você também tem falado sobre lutas de minorias, condição indígena, negra, LGBTQ… Nos meus álbuns todos. A gente no Nordeste sempre viveu com migalhas do bolo federal. Tudo foi mais difícil para o nordestino a vida inteira, inclusive mostrar o trabalho artisticamente. Sempre foi mais difícil chegar no Sudeste, apesar de a gente ter tantos nordestinos que sejam ícones artísticos. Quase todos tiveram que se mudar daqui [do Nordeste], que é um sacrifício. Acho que sou a primeira geração que consegue ficar aqui, porque realmente não consegui me mudar. É como se eu perdesse a minha energia de criação. Eu nasci disso, a minha MPB é totalmente relacionada a Dorival Caymmi, ao tropicalismo, até à bossa nova de João Gilberto. Olho para lá, mas estou aqui. Caymmi morou grande parte da vida dele no Rio, mas nunca consegui associar Caymmi à cidade, apesar dos filhos dele serem cariocas.
Os seus filhos são todos baianos? Não, as minhas três meninas e de Malu, filhas de coração, são da Paraíba. [Daniela ainda tem dois filhos biológicos, baianos].
Cada vez mais seu lado compositora está florescendo. Qual foi a transformação que permitiu isso? Eu tenho gastado mais tempo com isso. Composição sempre exigiu pesquisa, reflexão, até um tempo de ócio para produzir, escolher temas e efetivamente transformá-los em melodias relevantes. É uma experiência, uma tentativa. É uma opção também. Perguntei a Chico Buarque como é que ele compõe e ele disse que faz a melodia antes. Comecei a tentar fazer isso, mas normalmente faço letra e melodia, até para me guiar. Faço um esboço qualquer da letra e depois vou trocando ela toda. Isso me dá muito trabalho. Fico pensando sempre em Rita Lee, no que ela cantou a vida inteira. Ela diz coisas muito profundas. Foi inovadora, corajosa, falou do prazer num momento em que não se falava disso. Regravei “A Banda”, do Chico, porque eu queria uma música que fosse brasileira nesse contexto que estamos vivendo. Eu quis dar o Prêmio Camões a ele [risos], era minha maneira de falar que adoro o Chico, a obra dele e as coisas que defende.
Como Jair Bolsonaro tem afetado o dia a dia de um artista? Tem sido cansativo se contrapor a tantas declarações agressivas. Ver a cultura brasileira ser atacada é muito aflitivo. Mais que isso, gera uma tristeza muito grande. Agora há uma destruição, um ataque direto ao cinema, aos artistas, a todo mundo que questiona os pontos de vista deles. O dia a dia é de se manifestar nas redes sobre os vários assuntos, sobre as declarações homofóbicas que ferem as nossas famílias. A gente merece que respeitem as nossas famílias. Como se contrapor a tantos absurdos? A Terra é redonda, vamos começar. Artista é para fazer arte, para através da sua arte produzir sua crítica social, construir o seu olhar sobre o seu tempo. A minha comunicação está sendo feita através de metáforas. Não é uma comunicação tão direta. Tenho precisado me manifestar no cotidiano, dentro das redes sociais, entoando o que não concordo, defendendo os nordestinos, nos momentos em que somos atacados. Isso é emocionalmente muito cansativo. Todo dia tem uma novidade, uma manifestação homofóbica, algo contra o Nordeste, outro dia tinha o óleo no Nordeste. Foi um ano de muitas declarações péssimas. Acho péssima a mistura de religião e política. Acho terrível o que aconteceu na Ancine, uma ofensa tamanha tirar os cartazes dos filmes brasileiros. São ofensas contínuas, agressões que tocam a grande maioria do povo brasileiro. A agressão a Fernanda Montenegro, a fala de Damares sobre abstinência como forma de evitar as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez na adolescência, os ataques às universidades federais, aos indígenas, à Amazônia... É muito triste ver o governo falando que os professores da universidade fazem balbúrdia, desmerecendo os pesquisadores, os cientistas, os artistas. É a sociedade inteira sendo atacada. Este caminho não é bom, é um caminho de destruir o país. A sociedade precisa combater o autoritarismo que ainda está em nós. É uma era em que os monstros de dentro das pessoas estão saindo.
Você se sente censurada? Eu sinto uma vigilância. Não me deixo censurar, mas uma das coisas que converso muito é sobre o perigo da autocensura. Está todo mundo com medo de falar, é lógico que isso gera uma tensão maior. Estamos todos sendo atacados, alguns mais diretamente e outros menos. Mas a gente tem que acreditar na democracia e seguir. Tem que lutar. Essa cultura da violência, física e verbal, que tem sido muito estimulada é muito perigosa. A gente está num momento confuso sobre quais são os caminhos. Tenho certeza de que não há outro que não seja o da educação. A sociedade precisa encontrar formas de diálogo, a gente não pode ficar assim, ninguém fala com ninguém. É preciso falar. Precisamos confrontar as nossas formas de pensar. Meu axé é o que fala desse jeito sobre as coisas, Perfume tem esse DNA. “Rainha da Balbúrdia” traz uma crítica, faço referência a Bacurau, “se for, vá na paz”. Tem referências ao sertão, ao Nordeste, à resistência, aos livros, à balbúrdia, às universidades, à Marielle Franco.
O que acha da nova cena baiana, de BaianaSystem, Larissa Luz, Àttøøxxá, Baco Exu do Blues… O Pelourinho tem sido um lugar dessa turma bem novinha fazer suas apresentações com muita liberdade. Eu acho genial. Adoro BaianaSystem, acho das melhores coisas que surgiram na Bahia em todos os tempos. Acho muito bom que esteja em cima do trio elétrico. Fico felicíssima. Baco Exu do Blues também, faz um rap muito particular. Marcia Castro tem feito um trabalho interessante. Larissa Luz já vinha do Araketu, buscando um caminho particular. A Majur conheci no ano passado, é muito legal, adorei também o menino que canta com ela, o Hiran. Meu filho Gabriel Póvoas é dessa idade, ele está me mostrando. Alguns do BaianaSystem eram colegas de Gabriel, um deles é filho de Márcio Meirelles, conheço desde criança. Acompanhei desde o iniciozinho do BaianaSystem.
São todos filhotes do axé, de alguma maneira? Sempre, né? As gerações vão se sucedendo, e absorvendo, e aprendendo, e vão também se desfazendo do que não querem. Todos nos influenciamos, não tem como desassociar. Não conheço a origem de todos. Majur veio de igreja, de outro ambiente. Parecia não ter tanta influência de axé, mas conhece as minhas músicas, o ritmo, então tem alguma influência, mesmo que seja para negar. O Àttøøxxá está fazendo muitas misturas, de kuduro, groove arrastado... Muitas vertentes rítmicas novas nasceram a partir dos grupos de pagode, do samba duro, do samba de São João lá de trás. Tenho acompanhado o Afrocidade, que tem feito um trabalho bem visceral, e bem dançante, e misturado.
Como vai ser o Carnaval de 2020? Faço o encerramento do Carnaval de São Paulo, na Consolação com a Paulista, no domingo seguinte à quarta-feira de cinzas. É o quinto ano consecutivo que faço o Carnaval de São Paulo. Eu gostaria de passear pelo Brasil com o trio elétrico, mas vou ficar no Carnaval a maioria do tempo em Salvador. A rainha da balbúrdia vai subir no trio, sem a menor dúvida, com muita força, alegria, esperança. Estou chegando, a alegria é revolucionária. Independentemente da dificuldade, a felicidade existe. O Carnaval perfuma a avenida, ele humaniza, lembra o que a gente é. Nós, como povo, somos maiores do que tudo isso que está acontecendo.
Créditos
Imagem principal: Celia Santos / Divulgação