Colando velcro com segurança

por Leticia Pugliesi

Insatisfeita com a falta de informação sobre sexo seguro entre mulheres com vulva, a publicitária Nicolle Sartor decidiu criar sua própria cartilha, a Velcro Seguro

Ela decide se iniciar na vida sexual. Chegou o momento. Mas precisa de orientações: O que fazer? Como se proteger? Falar com os pais, amigos? Melhor não. Decide buscar por conta própria, mas os materiais que encontra não poderiam ser mais genéricos. Essa experiência é muito recorrente entre mulheres que mantêm relações sexuais com outras mulheres, e foi pensando nisso que a publicitária Nicolle Sartor criou o Velcro Seguro, guia de saúde sexual para minas lésbicas e bissexuais com vulva. O trabalho foi todo feito com acompanhamento da médica Thais Machado Dias. 

O primeiro passo de Nicolle foi mapear pesquisas por todo o Brasil que tratassem do tema. "Cheguei a uma conclusão bem insatisfatória: não tem mesmo materiais didáticos com acesso facilitado", conta ela, que, dentre as pesquisas, achou dois materiais produzidos pelo Ministério da Saúde para se basear - “Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais”, publicado em 2013, e "Chegou a hora de cuidar da Saúde", de 2007. 

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Embora o primeiro trate de grupos minorizados, todas as letras da sigla LGBT eram colocadas dentro do mesmo contexto, dificultando que cada uma delas pudesse ser contemplada de maneira apropriada. Já a segunda cartilha, que aborda especificamente mulheres lésbicas e bissexuais, só foi encontrada com muito esforço na biblioteca virtual do Ministério da Saúde. "Apesar de existir esse material, é quase como se ele não existisse, porque não atinge essas mulheres", declara a publicitária. 

A resposta que Nicolle encontrou para solucionar o problema foi disponibilizar sua cartilha para livre acesso e impressão. "Quando você coloca um grupo para protagonizar um material, não tira a necessidade de diferentes produtos para outras comunidades", explica, justificando a opção de abordar apenas o sexo entre mulheres com vulva. A saúde sexual dos homens trans, por exemplo, possui aspectos diversos abordados no Velcro Seguro. Terapia hormonal e cirurgias de afirmação de gênero, por exemplo, são especificidades que não caberiam no guia de forma contemplativa. Para isso, existe a cartilha "Saúde do homem trans e pessoas trans masculinas", criada pela Rede Trans. 

Não é de hoje

Na década de 80, a prevenção de ISTs entre a população LGBT+ começou a ganhar bastante espaço com a epidemia de HIV no Brasil. A partir de 1990, políticas de saúde sobre o tema foram incorporadas na agenda do governo. Mas e as mulheres lésbicas e bissexuais com vulva? Quase 40 anos depois, ainda é raro encontrar materiais e políticas públicas que contemplem de fato essa minoria. Afinal, sequer existem dados sobre saúde sexual deste grupo. 

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O boletim epidemiológico de HIV/AIDS do Ministério da Saúde, por exemplo, é separado nas categorias de homens héteros, bissexuais e homossexuais, enquanto os dados de ocorrência entre mulheres são resumidos apenas em mulheres heterossexuais. Já o boletim epidemiológico de sífilis não traz nenhuma distinção sobre orientação sexual, somente de gênero. 

"As mulheres lésbicas e bissexuais têm um uso muito precário de preservativos por um motivo muito simples: não foram feitos para vaginas, nem para o sexo", explica a médica Thais Machado Dias, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. O uso de camisinhas cortadas, dental dam (um quadradinho de látex que pode ser usado na hora do sexo oral para prevenir ISTs) e dedeiras, por exemplo, foram criados para usos totalmente diferentes dos que Nicolle sugere na cartilha. "Isso é sintomático de como as práticas sexuais das mulheres que transam com mulheres com vulva não são levadas em conta", explica a publicitária.

A mudança de baixo para cima da medicina

Ainda existem médicos e pesquisas que não consideram o sexo entre vulvas como uma prática de risco. Porém, os cursos de medicina atuais estão avançando nesse sentido. Apesar do tema ISTs entre LGBT+, em grande parte, não fazer parte da grade curricular formal, "os alunos têm buscado esse tipo de temática, principalmente nas atividades extracurriculares, simpósio, palestra, ligas acadêmicas e estágios", conta Thais. Inclusive, ela percebe que os congressos das áreas de Ginecologia e Medicina Familiar que abordam temáticas como ISTs entre lésbicas e bissexuais e hormonioterapia trans, sempre tem salas bastante lotadas de novos alunos.  

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"Como um bom movimento feminista, a cartilha Velcro Seguro é uma forma de democratizar o acesso à informação", explica a médica. Afinal, o ganho de conhecimento sobre nosso corpo e nossa identidade só fortalece a luta por direito de mulheres que amam outras mulheres. "Eu espero que esse guia sirva de inspiração para que sejam criados outros materiais para comunidade LGBT+", relata, com esperança, Nicolle.

 

Créditos

Imagem principal: @VLKRR

Ilustrações: Nicolle Sartor - @VLKRR

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