Aconteceu em Cabo Verde

por Nathalia Zaccaro

Principal voz de seu país, Mayra Andrade traduz em música a potência e a sensualidade de ser uma mulher africana de seu tempo

Faz pouco tempo que Mayra Andrade percebeu que as próprias experiências eram interessantes o suficiente para serem transformadas em músicas. Em seus primeiros discos, a cantora e compositora cabo-verdiana voltava sua sensibilidade para figuras marcantes da infância na África – mulheres de pescadores, camponeses, gente que a inspirava. Já em Manga, lançado em fevereiro, ela assume o papel de protagonista.

“Percebi que minha vida não é desinteressante. Comecei a me expor de um jeito mais direto nas composições”, conta. Com mais dela nas letras, o disco ganhou contornos sensuais. “Para os meus braços envolverem-te e a tua coxa ser minha, tua saliva no meu pé, uma manga na tua boca”, canta, em crioulo cabo-verdiano, na faixa que dá título ao álbum. “A manga é uma metáfora do feminino, ela se transforma, muda de cor, de textura, 
de perfume. É uma fruta muito sensual.” E foi nesse clima de calor tropical que Mayra posou para a Trip em um rolê por sua ilha de Santiago, em Cabo Verde.

No disco, ela transpira não só a beleza e a essência do feminino, mas também a potência de uma África contemporânea e consciente da própria força. “Sou eu no meu lugar mais íntimo. Existe uma noção de uma África ancestral, que obviamente existiu, mas que não parou aí. Minhas raízes são também de um continente urbano, moderno e complexo”, explica.

Uma das grandes influências de Manga é o afrobeatz, movimento que mistura batidas eletrônicas ao ritmo de Fela Kuti, que ganhou o mundo nos anos 70. “Há uns quatro anos, fiz uma viagem a Gana que virou a minha cabeça. É dos países com maior índice de desenvolvimento do continente. Foi muito inspirador”, conta.

“Tive que defender minha forma de ver meu corpo, minha música e decidir como quero estar nesse mundo.”
Mayra Andrade

Mayra nasceu em 1985, quando Cabo Verde celebrava dez anos de independência. “Cresci muito rodeada por esse amor ao país, lembrando dos sacrifícios que a geração dos meus pais fez para que fossemos um povo independente”, lembra. Aos 6 anos, deixou pela primeira vez sua terra natal e foi viver no Senegal, onde seu padrasto atuava como embaixador cabo-verdiano. “Ali descobri a África continental. Era um país vizinho, mas as pessoas falavam outra língua, se vestiam, comiam, rezavam, dançavam de jeitos muito diferentes dos nossos.” Dois anos depois, a família se mudou para Luanda, onde conviveu de perto com a guerra civil angolana.

De volta a Cabo Verde, aos 14 anos, ela já sabia que queria cantar e começou a cavar seu espaço na cena local até que, aos 17, venceu um concurso e descolou uma bolsa para estudar música em Paris, na França. Ela já dominava o francês por conta dos anos em Senegal, tinha algumas composições próprias e transbordava vontade de fazer sua carreira acontecer.

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Apresentou-se na noite, estudou, fez contatos e, aos 20, assinou com a gravadora Sony. Nos 14 anos que viveu na capital francesa, lançou seus quatro primeiros discos: Navega (2006), Stória, stória (2009), Studio 105 (2010) e Lovely difficult (2013), sempre com sucesso de público e crítica internacional, o que lhe rendeu um convite para gravar com um dos maiores ícones da música francesa, Charles Aznavour. Antes dos 30, Mayra já era a cantora cabo-verdiana mais popular de sua geração.

 Exótica?

Os anos em Paris foram fundamentais para a carreira de Mayra e a levaram a experimentar sonoridades distantes de seu universo, especialmente no álbum Lovely difficult, que gravou em inglês, além de português, crioulo e francês. “Eu propus ali um som cabo-verdiano mais pop e foi importante porque percebi que o pop não é a minha cena”, conta.

O processo de entender mais profundamente sua identidade, tanto musical quanto pessoal, não foi fácil. “Foi um período bem forte. Começou aos 27 anos e culminou aos 30, em uma crise gigantesca. Foram muitos cortes, muitas páginas viradas e isso é doloroso. Passou por tudo, pelas pessoas que trabalhavam comigo, pela direção para onde eu levava minha música, o fim de um casamento, a relação com a cidade”, conta. Paris já não acolhia mais as ambições de Mayra. “Eu era vista como um ‘produto exótico’. Achavam legal que eu existisse, mas não me entendiam totalmente, ou não queriam entender. Tive muitas oportunidades lá, existe um circuito fantástico de shows, mas chega um momento em que você sente que há um teto de vidro. Você vê o céu, mas não consegue passar. Eu precisava me mudar.”

“Uma força diferente habita em mim quando canto em crioulo, parece que tiro as minhas entranhas e boto em cima da mesa. ”
Mayra Andrade

E se mudou para Lisboa, em 2016, momento que marca uma ressignificação em sua vida. “Aos 30 anos, a mulher ganha uma consciência brutal da sua força. Nunca me senti tão bonita, poderosa, livre. E isso é uma conquista. Tive que defender meu percurso, minha forma de ver o meu corpo, minha pessoa, minha vida, minha música, decidir como eu quero estar nesse mundo”, conclui.

 Caetaneando

Na capital portuguesa, Mayra se misturou com músicos de origens diversas e passou a fazer parte da cena conhecida como “Nova Lisboa”, marcada pela mescla de sons eletrônicos e contemporâneos a tradições regionais. “Portugal saiu recentemente de uma crise que durou muito tempo. E a dificuldade sempre fomentou a criatividade no ser humano. Existe uma energia rolando aqui agora”, conta. O caldeirão cultural em que Mayra mergulhou chamou atenção de uma ilustre moradora de Lisboa, Madonna. A americana elogiou a cantora em sua conta no Instagram depois de vê-la dando uma canja em um casa noturna.

A vibe portuguesa fez com que Mayra voltasse a focar sua produção em canções em crioulo e português. “Estou em um momento muito lusófono. Uma força diferente me habita quando canto em crioulo, parece que tiro as minhas entranhas e boto em cima da mesa”, conta. Apesar do português ser a língua oficial de Cabo Verde, é em crioulo que a maioria da população se comunica.

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A proximidade entre as duas línguas permitiu que Mayra tivesse desde cedo contato com a música brasileira. A africana já gravou e se apresentou com Chico Buarque, Lenine, Dominguinhos, Gilberto Gil, Yamandu Costa, Hamilton de Holanda e outros gigantes da MPB, que, ao lado das canções cabo-verdianas, têm lugar especial na formação da cantora. Duas composições de Caetano Veloso estão enraizadas em suas memórias mais antigas: “Leãozinho” e “Tigresa”. “Lembro de cantar essas desde de bem pequenininha. E é engraçado porque ‘Tigresa’ é super a Mayra de agora”, ri, aos 34. Mayra é, como a tigresa de Caetano, uma beleza que simplesmente aconteceu, sendo o que quer, inventando um lugar, sendo feliz e, antes de tudo, sendo mulher.

 

Créditos

Imagem principal: Autumn Sonnichsen

Produção executiva: Adriana Verani | Estilo: Ana Wainer | Produção de moda: Tulio Melles | Tratamento de imagem: Andi Kuonath/redfishblack | Mayra usa By Sian Swimwear, Paradise | Agradecimentos: salavguesthouse.com, João Wainer, Connie Lopes e Mário Lúcio.

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