por Ana Maria Peres
Trip #181

Fotos de Joni Sternbach resgatam os velhos sentidos do surf e o prazer de viver sem pressa

Surfar é equilíbrio

Por Paulo Lima

“Vai, meu irmão! Acelera essa porra. Acelera cara, quero chegar lá com a maré enchendo.

1976, mais uma vez vai o Opalão despencando pela serra do Mar, em busca do grande oceano, da água salgada, do prazer do surf.

Um som arretado, pranchas na capota, THC.

Chegamos à Baixada Santista. Longa planície com cheiro do mangue e um indigesto posto de polícia rodoviária, que normalmente manda parar os carros com prancha na capota. Mas de alguma maneira hoje não nos pararam, nos ignoraram.

Eles não gostam da gente.

Nós não gostamos deles.

Atravessar a cidade de Santos sempre é prazeroso. As construções antigas, as ruas arborizadas, palmeiras imperiais e a turma arrastando a sandália com calma e soberania.

Na ponta da praia uma pequena fila da balsa.

Muito legal descer do carro, se esticar e debruçar no guarda-corpo sobre o canal de Santos, ver os barcos ancorados, coloridos, com cheiro de maresia. Os cardumes de peixinhos alinhados, lindo. Relaxo profundamente e viajo na furta-cor de uma mancha de óleo, que boiando muda de maneira aleatória da cor azul para o roxo, verde, vermelho, psicodélico.

Já estamos na balsa, a 5 min do Guarujá. O vento na cara é bom. Vejo as águas invadindo o mangue, confirmando a maré enchente.

Mais alguns quilômetros e chegaremos ao nosso destino, Sítio São Pedro, na praia Branca.

Paramos na generosa sombra de uma enorme amendoeira. Começa um momento mágico. Despir roupa, pensamentos e atitudes impregnados de agitação e da competição da cidade, da estrada, da facu, da família, do mundo, e trocar tudo por uma bermuda, uma sensualíssima prancha e uma parafina cheirosa. Cheiro de alegria, cheiro de liberdade.

Já falei tantas vezes e repetirei tantas outras: ‘Surf e sexo são as melhores coisas que conheci nesta minha humilde existência’.”

O depoimento acima é a resposta do arquiteto Carlos Motta aos retratos que você vê aqui. Carlinhos, como é mais conhecido por aí, está perto do mar e das ondas desde os anos 60. Já surfou em boa parte do mundo, andou pelos oceanos. Mas isso não impediu (e de fato só ajudou) que ele se tornasse um nome de frente da arquitetura brasileira, um dos mais notáveis designers de mobiliário do país, com exposições, prêmios e reconhecimento em vários outros, notadamente França, Holanda e Estados Unidos. Nem que tivesse sua mulher, quatro filhos, um showroom movimentado em São Paulo, uma marcenaria para produção de protótipos, além de inúmeras atividades ligadas à família, aos amigos, ao esporte, ao trabalho.

Talvez muito mais por conta da vida que construiu, sem abrir mão das coisas boas que o trabalho e a cidade oferecem, e menos pelos mais de 40 anos de surf e praia, ele tenha ido para onde foi, olhando para o ensaio de Joni Sternbach. As fotos mostram pessoas diferentes, mas que claramente formam um mesmo cardume.

Não só porque gostam de surfar, mas porque usam a mesma ferramenta para conseguir equilíbrio. Remam para o oceano, para se religarem. Não só (ou necessariamente) ao cardume, mas para religar seus saberes internos, aquelas mesmas evidências da alma, que vão se apagando, se diluindo e esmaecendo, quando nada é feito contra a ação da correria burra, da vida meramente cerebral, do chamado turbilhão de informação, do fluxo indomável de pensamentos, de afazeres, de metas, de missões, de prazos, de disputas, da competição doente por poder e acumulação e de expectativas que nunca são satisfeitas ou nem sequer relativamente domadas.

FILME QUERIDO

É bonito e interessante ver o processo que as imagens do ensaio desencadearam na mente de Carlinhos. Ver o pressionar de uma espécie de tecla play que pôs para rodar seu filminho mais querido. O Opala, o cheiro mágico da parafina, as sandálias dos santistas arrastando na calçada de cimento queimado em losangos vinho e preto, as bordas sensuais da prancha, a fila da balsa, o mangue entrando pelas narinas e, mais do que tudo, o momento que ele com precisão e felicidade chamou de despir.

Aqui no meu repertório foi exatamente esta tecla, menor e mais escondida, que as fotos apertaram com delicadeza, fazendo abrir na tela do lado de dentro dos olhos aquela janela que Bill Gates jamais abriu, uma sensação que até se consegue alcançar em outras situações (diante da boa arte, do sono perfeito, da meditação, dos olhos das crianças e de outros amores e, claro, do sexo, tão pertinentemente mencionado pelo Carlos), mas que o ato de seguir para o mar revela e produz de forma simples, imediata, infalível, com delicadeza e absoluta precisão. Falo deste despir, de deixar a pele grossa para trás, de desligar o jorro quase irrepresável do pensamento, da informação ansiosa, dos saberes múltiplos e desorganizados, permanentemente correndo e se batendo como uma torcida desesperada tentando escapar de um estádio que desaba.

No exato momento em que foram flagrados para as fotos, estes homens e mulheres já começaram a deixar de ser quem pensam que são e começaram a tal religação com fibras, entranhas, com reações, forças, sentimentos, com aspectos de si mesmos, pouco conhecidos por eles, menos ainda pelos outros, que não têm registros claros nem reputação, que não aparecem em seus Facebooks, nem nas certidões dos cartórios de Nova York, mas que surpreendem exatamente porque sempre estiveram lá, firmas irreconhecidas, latentes, esperando pela alforria, às vezes sob uma pesada camada de escombros e que, quando emergem, fazem infinitamente mais sentido do que todo o resto.

É possível ver todo o peso escorrendo pela areia, evaporando de suas almas, largando suas carnes, como gatos gordos e incômodos que de repente não conseguem mais manter as garras cravadas em suas peles e caem resignados pelo chão. E é possível ver também estes homens e mulheres deixando Joni para trás, dando as costas para as fotografias e andando para dentro delas.

E, a cada passo para o mar, vendo as coisas ficando mais claras, os ritmos se encaixando, as mentes se apaziguando, os problemas tomando suas reais e diminutas proporções, até sumirem no sal. Consigo ver cada um deles sentando sobre suas pranchas no outside, equilibrados, olhando para o horizonte e simplesmente contemplando, como só é capaz de fazer quem entende um pouco de vida.

SURFLAND


Origem EUA. Tempo de surf 47 anos. Ganhei uma prancha do meu pai aos 14 e nunca mais parei. Onde surfa? Na costa de Los Angeles, de San Diego até Ventura. Surf como desaceleração A água, as ondas e o horizonte existem para lavar todas as encrencas da mente. Você tem de estar focado no aqui e agora. Além do surf esporádico, pratico natação todos os dias. Nadar e meditar são quase a mesma coisa. Lifestyle Tento ser um exemplo para meus filhos e amigos. Tentamos não adicionar mais problemas e desgraças ao mundo. Fazemos compostagem e limitamos nosso consumo ao que é realmente necessário e um pouco mais. Desperdício de tempo Falar com alguém que não joga a real. Panela de pressão Ter prazo para vender meus produtos ou finalizar projetos. Pareço um cara cool, mas sou estressado.

Origem Havaí. Tempo de surf 41 anos. Onde surfa? Em Montauk, NY. Prefácio O lado havaiano da minha família cresceu no Valley of the Kings, em Big Island. O chefe da tribo era um grande surfista. Meu pai, pescador, sabiamente fisgou minha ancestralidade: desde cedo, ensinou-me a respeitar o mar e seus habitantes. Surf como desaceleração Minha mente, meu corpo e minha alma são espiritualmente alimentados por meio do surf, da música e da família. Isso é saúde. Passo a passo Com a crise, perdi o carro, a casa e o emprego. Mas não perdi a cabeça. O homem deve caminhar confiante no seu próprio ritmo. Ensino aos meus alunos: mantenha a calma, mesmo que o teto desabe sobre você. Limite de velocidade Pessoas apressadas morrem cedo, pois não permitem que o corpo funcione como deveria.

Origem EUA. Tempo de surf 8 anos. Pratico ­windsurf também, há 29 anos. Onde surfa? Moro e surfo em Long Island, NY, mas tenho uma casa em Maui, no Havaí, para surfar nas férias. Surf como desaceleração A espera das ondas no mar é algo que me esvazia completamente, esqueço o business. Daí, surge a adrenalina para remar e pegar a onda. Nesse momento, entro em contato com um lugar fundamental dentro de mim. Melhor momento do dia Depois das 10h, após praticar ioga e lubrificar as articulações. Desperdício de tempo Passividade, agressividade e fofoca. Panela de pressão A expectativa dos outros. Time is money A crise econômica consolidou várias suspeitas sobre as manipulações do jogo de Wall Street. Por sorte, comecei a tirar meu dinheiro da bolsa de valores no ano passado.

Origem Canadá e Austrália, respectivamente. Tempo de surf 6 anos e 30 anos. Onde surfam? Vivemos em Manhattan, NY. Quando sopra vento norte, surfamos em Long Island ou Montauk. Se bate vento oeste, vamos para New Jersey. Fazemos várias surf trips; em outubro, iremos para o Brasil. Surf como desaceleração De uma só vez, praticamos atividade física, relaxamento e meditação. O surf inclusive nos faz enxergar o que realmente tem valor na Terra. Desperdício de tempo Sentar em Manhattan para tomar café no dia em que as ondas estão bombando. Porém, se já surfamos de manhã, o brunch vira um espetáculo. Panela de pressão Ter 1 milhão de coisas a fazer por uma questão de “vida ou morte”. O problema é que, lá no fundo, você sabe que só 1% daquilo importa no todo.

Origem EUA. Tempo de surf 46 anos. Onde surfa? Moro e ensino surf em Montauk, NY. Estilo Sou surfista profissional de longboard. Desde 1963, surfo todos os dias. Tenho mais de cem pranchas; algumas foram patrocinadas na época em que competia, nos anos 90. Surf como desaceleração Minha vida é guiada pela minha paixão pelo surf. É uma dança em câmera lenta com o mar. Maré boa Há 30 anos, faço um diário com colagens em pequenos painéis, relatando minha experiência. Recentemente, fiz as primeiras exposições. Melhor momento do dia O amanhecer na praia. Desperdício de tempo Ódio. Viveria numa metrópole? Jamais. Gosto de lugares remotos com ondas.

Origem EUA. Tempo de surf 10 anos. Onde surfa? Moro no Brooklin, NYC, e surfo em Montauk. Estilo Longboarder. Surf como desaceleração Estar inteiramente presente, apenas com minha prancha no meio do oceano,  é o acontecimento mais simples e gigantesco do mundo. Limite de velocidade As coisas estão acontecendo muito rápido para mim. Sou tão rápida quanto a pessoa mais rápida, mas não sinto prazer com isso. Gosto de desacelerar depois do trabalho e curtir a vida. Melhor momento do dia Quando estou surfando. Além disso, tenho uma empresa que faz cartões de presente, chamada Quotable Cards (www.quotablecards.com). Ler aquelas  expressões no dia-a-dia é um prazer que me acorda para a vida.

Origem EUA. Tempo de surf 3 anos. Onde surfa? Em Venice Beach, na Califórnia. Surf como desaceleração Pegar onda é algo que acalma os nervos e a ansiedade gerada pelo trabalho. Apaga meus incêndios e me deixa em êxtase. Limite de velocidade A correria dos nossos tempos pode ser temperada individualmente. Sempre há a possibilidade de sair fora e relaxar. Desperdício de tempo Qualquer coisa no sofá entre às 9h e às 21h. Quando sente pressa? Procuro me comprometer apenas com coisas que me desafiam: ser artista, aprender a surfar, viajar para longe. Isso me apressa. Nesse momento, estou num barco no meio do nada (escrevo do meu BlackBerry). Conexão sem fio Com a arte, os amigos, a família e as atividades outdoor. Efeitos da crise Pela primeira vez, divido meu espaço com dois roommates. Nunca fui tão feliz.

Origem EUA. Tempo de surf 6 anos. Onde surfa? Em Montauk, NY. Surf como desaceleração Procuro a natureza sempre que possível. O surf me ensina a ser mais paciente, por ser difícil de aprender. Você precisa respeitar seus limites e avançar aos poucos. Conexão sem fio Com a jardinagem, os animais, as relações verdadeiras, a arte e a música. A crise lhe afetou? Não muito, pra ser sincera. Mas sei como gastar meu dinheiro: de preferência, com um produto que seja melhor para o meio ambiente, para a sociedade e para a economia local. Desperdício de tempo Maquiagem, roupas caras e a escalada da ascensão social. Melhor período do dia Adoro a luz do fim de tarde. Mas as manhãs são ótimas porque o dia inteiro está à frente. Panela de pressão A corrida dos ratos.

Origem EUA. Tempo de surf 11 anos Onde surfa? Em Rockway Beach, Long Beach Island e New Jersey. Surf como desaceleração O surf me traz de volta ao zero. Todo surfista sabe o que é algo difícil de explicar: pegue onda e então dê uma volta à noite. Pergunte às pessoas o que fizeram naquele dia. Pense no que você fez. Na maior parte das vezes, nem sei o que dizer. Com o quê você está conectado? Com música, arte, pessoas, ovos e queijo. Desperdício de tempo Mentira. O que lhe deixa com pressa? Celulares. Melhor do ano Mudar para Nova York. Estou exausto e completamente feliz ao mesmo tempo. Valeu cada centavo.

Origem EUA. Tempo de surf 6 anos. Comecei a surfar num acampamento para meninas surfistas no México. Surf como desaceleração É uma excelente forma de livrar-se das chateações no fim do dia. Nunca senti algo parecido. Desperdício de tempo Assistir TV. Melhor do ano Surfar no Havaí pela primeira vez. A crise lhe afetou? Que crise? Conexão rápida Recuso-me a mandar mensagens de texto e perder tempo com celular, facebook e twitter. Acho que não facilitam a vida; esses brinquedos tecnológicos acabam roubando nosso tempo. Quem pode passar horas com essas coisas provavelmente não está fazendo o trabalho que deveria.

 

Em busca do tempo perdido

ENTREVISTA COM JONI STERNBACH

Apesar do pique slow motion de suas imagens, Joni Sternbach é rápida no gatilho. Professora de arte na Universidade de Nova York, há anos pesquisa antigas técnicas fotográficas e desenvolve projetos ousados. Para realizar os retratos de Surfland, por exemplo, teve de levar um estúdio portátil para a praia, além de equipamento, material químico e guarda-chuva. A ferrotipia, técnica utilizada pela fotógrafa, foi criada por volta de 1850. Depois do clique, os produtos químicos devem ser aplicados à mão, expostos e desenvolvidos sobre uma placa de ferro molhada. Durante o processo, é preciso ficar imóvel e fazer silêncio absoluto. Com toda a parafernália, foi impossível passar despercebida. “Os surfistas me acharam”, brinca ela, que sem esforço convenceu várias figuras da Califórnia e da região de Montauk, NY, a participarem da empreitada. Um ano depois, Sternbach exibe hoje 47 fotografias no Peabody Essex Museum, em Massachusetts. A seguir, o bate-papo com Joni.

Por Ana Maria Peres

De onde vem seu interesse pelo surf?

Tenho fotografado pessoas na praia há quatro anos. Os retratos de Surfland foram uma evolução de meu trabalho anterior, sobre detalhes do mar e do céu. Por este motivo, tive de retornar diversas vezes para o mesmo local, em Ditch Plains, na região de Montauk. Os surfistas compõem a paisagem de lá, de forma que encontraram um caminho para entrar nas minhas fotografias e na minha vida. 

Você já conhecia alguns dos personagens retratados?
Nenhuma alma. Simplesmente armei acampamento na praia com a câmera, mais a caixa escura, e esperei que aquela instalação despertasse algum interesse. Deu certo.

Assim como a fotografia, a praia subverte o tempo?
Sim. Você pode estar lá por horas e ter a sensação de que uma vida se passou, ou achar que o relógio estava em fast-foward. Na praia, estamos despidos de nossa rotina e imersos em outro aspecto da vida, chamado tempo livre.

Como descobriu a ferrotipia?
Por meio do fotógrafo John Coffer, um mestre da ferrotipia que vive no norte do Estado de Nova York. Ele mantém um estilo de vida do século 19, sem eletricidade e conveniências modernas. A ferrotipia pode ser atribuída à lei de Murphy: se algo tem chance de dar errado, com certeza dará. Várias coisas podem acontecer durante o processo, incluindo problemas com a química ou com o calor. Na hora de fotografar, você tem de estar preparado: talvez chova, role uma ventania e estrague tudo. O processo todo é lento e demanda horas.

Com esse projeto, você quis provocar uma discussão sobre o ritmo non-stop atual?
De certa forma, sim. Utilizei uma técnica que é a antítese da fotografia digital. A natureza inerente desse processo inclusive desperta para a questão da velocidade do tempo. Além disso, as fotos exibem uma desaceleração, pois poderiam ter sido produzidas há 150 anos.  De toda forma, creio que estamos correndo contra o tempo, mas o desperdiçamos com bobagens.

Vai lá: A expo Surfland fica em cartaz até o dia 9 de outubro, http://pem.org

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