Expor para acolher

por Camila Eiroa

Jovens youtubers, influenciadores e ativistas digitais debatem o HIV abertamente na internet para acabar com a discriminação no Brasil

Você, que não é soropositivo, já imaginou a dificuldade de expor a presença do vírus no seu corpo para a sociedade? Ainda que o Brasil seja referência mundial no tratamento do HIV, não é fácil lidar com o preconceito e, pior, ter que enfrentar situações humilhantes em pleno consultório médico. “Já cai na mão de dois médicos muito preconceituosos. Um deles me disse que eu não deveria me expor, que falar isso para as pessoas não era uma coisa legal. Fiquei chocado!”, conta Gabriel Comicholi. Aos 22 anos, ele vive com o HIV há dois, e decidiu quebrar o silêncio e o tabu por trás da doença com um canal do YouTube. Assim nasceu o HDIÁRIO, que discute abertamente a AIDS; da descoberta à medicalização e rotina.

“Entre 2007 e 2017, foram notificados 194.217 casos de infecção pelo HIV no Brasil. Só em 2016 foram notificados 37.884 casos*”
Boletim Epidemiológico de HIV e AIDS de 2017

Além de Gabriel, outros influenciadores resolveram abordar o assunto. É o caso de Daniel Fernandes, do canal Prosa Positiva, e de João Geraldo Netto, do canal Super Indetectável, que faz parte da Rede Mundial de Pessoas Vivendo e Convivendo com HIV​. A vontade de falar sobre o tema é comum a todos, bem como a certeza de que é preciso derrubar o estigma acerca do HIV.  “Mesmo com todos os avanços que temos hoje em relação ao tratamento e qualidade de vida, ainda temos a AIDS ativa levando ao óbito. É necessário a conscientização de prevenção, não necessariamente utilizando o medo. Quanto mais somos informados e dialogamos sobre determinados assuntos, mais crescemos”, acredita João.

Basta fazer uma pesquisa no YouTube para ver a infinidade de vídeos que têm a doença como tema principal. Além de dúvidas como qual a diferença entre HIV [Vírus da Imunodeficiência Humana] e AIDS [Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que se manisfesta após a infecção pelo HIV], muitos usuários da rede social aproveitam para contar, em primeira pessoa, como foram seus processos de descoberta e o que mudou em suas vidas após o diagnóstico. Neste dezembro vermelho, mês de conscientização e prevenção da AIDS, Trip conversou com os criadores do HDIÁRIO, Prosa Positiva e Super Indetectável para saber quais as motivações para levar essa discussão à frente e a importância de um movimento que pretende naturalizar o diálogo sobre a doença.

Leia abaixo.

Gabriel Comicholi

22 anos, criador do HDIÁRIO. Descobriu o vírus há dois anos.

Por que você acha difícil as pessoas fazerem o exame que detecta o HIV? Porque rola preconceito. O HIV ainda é um assunto tratado com muito tabu, e isso faz com que as pessoas tenham medo. É claro que ter o vírus não é uma coisa boa, mas as pessoas precisam entender que é muito melhor descobrir do que não saber.

O preconceito é o maior impedimento para tratar o HIV? Sem dúvidas! Hoje eu encaro o HIV muito mais como um problema social do que um problema de saúde, e isso não significa banalizar o assunto. Precisamos encarar os fatos reais e atuais do HIV, hoje não se vê mais tantas pessoas morrendo por conta do HIV como era no passado. Elas morrem pelo preconceito, pela negação da doença. É preciso ter mais amor próprio nesse momento para driblar o preconceito e fazer o tratamento correto.

“A melhor maneira de acolher alguém nessa situação é se mostrando aberto a um diálogo sem preconceito, sem estigmas”
Gabriel Comicholi

Existe preconceito por parte dos médicos também? Como foram as suas experiências? Existe e muito! Certo dia um médico disse que eu não deveria me expor. Claro que isso me deixou muito chocado, ainda mais vindo de um profissional de saúde. A dica que eu dou para um portador do vírus, ou de qualquer problema que precise de ajuda médica, é procurar um bom profissional, uma pessoa que você se sinta a vontade e confie. E lembre-se: médico não é Deus. 

O que muda nos relacionamentos depois do diagnóstico? No meu caso nada mudou, depois da descoberta eu “fechei as portas” por um tempo, para entender essa nova condição e depois que entendi e me aceitei, tudo continuou igual. Continuo transando, amando, sentindo.

As pessoas que têm HIV precisam de acolhimento? Qual a melhor maneira de a sociedade fazer isso? É uma das maiores necessidades de uma pessoa que descobre o vírus. Hoje, com o canal no YouTube, eu tento sempre separar uma hora do meu dia para responder pessoas e conversar com quem precisa. Tem gente que não tem como falar sobre a doença com a família ou amigos, e isso faz com que ela se isole e sofra cada vez mais. A melhor maneira de acolher alguém nessa situação, é se mostrando aberto a um diálogo sem preconceito, sem estigmas.

“A taxa de detecção da AIDS apresenta queda gradativa nos últimos anos no Brasil. De 2015 para 2016 houve uma queda de 5,2% dos casos*”
Boletim Epidemiológico de HIV e AIDS de 2017

Por que criar o canal no Youtube para falar disso na internet? Por ser uma real necessidade da nossa sociedade. Acho que todo assunto que é um tabu,  precisa ser debatido, e debatido de forma natural e humanizada. Os números do HIV no Brasil só sobem, e isso é uma consequência do assunto ter sido esquecido nos últimos anos. Mas falar sobre isso requer coragem, jogo de cintura, e o principal: é preciso se assumir ignorante no assunto. O HIV muda constantemente, todos os dias existem novas descobertas, tratamentos, termos... Não se pode ficar um dia ser ler e pesquisar se não a onda te leva.

Vai lá:  youtube.com/GabrielComicholi

Daniel Fernandes

33 anos, criador do Prosa positiva. Descobriu o vírus há 6 anos e meio.

Por que você acha difícil as pessoas fazerem o exame que detecta o HIV? Primeiro que não acredito que alguém vai fazer o exame sem sentir medo nenhum. Até porque, ninguém está preparado para receber aquele “reagente” no resultado. Levando em consideração que muitos vem me pedir ajuda pelo receio do que as pessoas vão pensar sobre o motivo de estarem ali fazendo o teste, percebo que o maior medo é o de ser rejeitado. Caso o resultado seja positivo, o medo se torna o de ficar sozinho.

O preconceito é o maior impedimento para tratar o HIV? É um dos facilitadores para ignorar a doença. Não só os preconceitos externos, mas os internos também! Quando a pessoa não se perdoa, e fica “mastigando” a culpa pelo acontecido, a adesão pelo tratamento também terá problemas. Até porque, o tratamento vai além de tomar o seu medicamento todos os dias.

“O importante, para esse acolhimento, é não tratar a pessoa como doente”
Daniel Fernandes

Existe preconceito por parte dos médicos também? Como foram as suas experiências? Acredito que sim. Não todos, mas há alguns relatos de pacientes que não se sentem bem com seus médicos. Desde que me descobri reagente, já morei em 3 estados. Pernambuco, Rio Grande do Sul e Goiás. Senti diferença em cada região. Desde o momento de levar o diagnóstico na consulta até os exames. Pode até não ser preconceito, mas dá a entender que muitos profissionais da saúde não estão preparados ou não sabem lidar com nossa patologia. Aqui no Recife não tenho do que reclamar da minha médica. Mas já tive consultas em outros estados onde a infectologista mal olhava na minha cara, por exemplo.

O que muda nos relacionamentos depois do diagnóstico? Nada! Ninguém deixa de ser melhor ou pior pós diagnóstico. Eu continuo sendo o mesmo Daniel de antes. Talvez hoje eu me sinta mais humano. Aprendi a ter mais alteridade. No quesito namoro, sexo, intimidade, os cuidados são os mesmos.

As pessoas que têm HIV precisam de acolhimento? Qual a melhor maneira de a sociedade fazer isso? Há a necessidade sim de um acolhimento, porque a notícia é um baque. Na hora você nunca pensa nas atualidades, mas sim nas referências que vemos em filmes: aquela realidade do boom da AIDS na década de 80. Hoje sabemos que quanto mais cedo a pessoa descobrir a sorologia e aderir ao tratamento, além de estar indetectável, o vírus fica controlado. O importante, para esse acolhimento, é não tratar a pessoa como doente.

“De 2006 para 2016, houve uma queda de 11,9% na taxa de mortalidade por AIDS*”
Boletim Epidemiológico de HIV e AIDS de 2017

Por que criar o canal no Youtube? A ideia de fazer algo em prol de nós, positivos, vem desde a minha descoberta. Porém, minha mãe não sabia da minha sorologia e eu não me sentia a vontade de expor. Quando voltei a morar em Goiânia em 2015, passei a sentir o que é ser rejeitado por viver com o vírus. E em todos os casos, isso só aconteceu pelo pouco nível de conhecimento das pessoas sobre o assunto. Foi então que surgiu a ideia de fazer um canal para abordar o tema, além da minha vivência e da participação de outros soropositivos e profissionais. A convite da ONG Gestos, pude sair um pouco do lado virtual e ir para o real, atuando como ativista no GT Jovem. Aos poucos estou podendo tirar o Prosa do hiato e trazer novidades para o canal.

Vai lá: youtube.com/ProsaPositiva

João Geraldo Netto

35 anos, criador do Super Indetectável. Descobriu o HIV em 2008, infectado já há seis anos

Por que você acha difícil as pessoas fazerem o exame que detecta o HIV? Eu acho que o problema é o mesmo que envolve qualquer questão estigmatizada pela sociedade. O HIV é uma infecção que tem um peso muito grande, ter o vírus está ligado à imoralidade, por exemplo. São todos os preconceitos criados desde que a doença existe. Isso acaba trazendo para a infecção um peso maior do que de fato ela tem. Hoje a gente sabe que qualquer pessoa que faz sexo pode ter HIV, mas o peso histórico deixa tudo mais difícil. E também não é exclusividade do HIV sentir medo, né? Qualquer doença infecciosa carrega isso. E também carrega o questionamento de: será que alguém vai me querer "desse jeito"?

“Enquanto a sexualidade for um tabu na nossa sociedade, não vamos conseguir falar de infecções sexualmente transmissíveis com liberdade”
João Geraldo Netto

O preconceito é o maior impedimento para tratar o HIV? Com certeza! Só que na verdade não é pelo HIV, o preconceito é pela sexualidade. Tudo que envolve sexo, na nossa sociedade, gera um preconceito por conta do tabu. Enquanto a sexualidade for um tabu na nossa sociedade, não vamos conseguir falar de infecções sexualmente transmissíveis com liberdade. As pessoas estão cada vez mais conservadoras e não tem como falar de HIV sem falar de sexo, entende?

Existe preconceito por parte dos médicos também? Como foram as suas experiências? Sempre costumo falar que não temos problema de políticas públicas, o problema é quem executa essas políticas. Aí que atravanca tudo. O que adianta o Ministério da Saúde fazer uma política de acesso incrível se quando os trans, por exemplo, chegam no SUS são chamados pelo nome de registro? Isso inclui os médicos, claro. É impressionante a quantidade de pessoas que chegam relatando preconceito de profissionais de saúde. Pior do que você pegar uma pessoa ignorante, é ver um profissional, que tem o papel de ajudar o outro, cometendo um ato de discriminação.

O que muda nos relacionamentos depois do diagnóstico? Bem, isso depende. A primeira coisa que muda é que a gente fica sempre com medo de infectar nosso companheiro. Isso me perseguiu por quase 15 anos, só consegui me ver livre do peso de transar quando saíram alguns estudos falando que uma pessoa indetectável não transmitia o HIV. Por mais que usasse camisinha, era sempre aquela coisa meio estranha, sabe? Até que de fato eu descobri que, tomando os remédios direitinho, eu não infectava meu companheiro. Isso me trouxe muita tranquilidade.

As pessoas que têm HIV precisam de acolhimento? Qual a melhor maneira de a sociedade fazer isso? Eu acho que o acolhimento é a parte principal do diagnóstico, até para a pessoa aceitar a infecção. Se a pessoa é mal atendida na hora do teste, como ela vai encarar o tratamento? Tudo está diretamente ligado ao acolhimento. A maioria das pessoas que entram em contato comigo querem simplesmente conversar, por medo de compartilhar com a família e não serem acolhidas como já acontece anteriormente na rede de saúde.

“A faixa etária predominante dos infectados é dos 20 aos 34 anos*”
Boletim Epidemiológico de HIV e AIDS de 2017

Por que criar o canal no Youtube? Quando me descobri positivo fui na mesma hora procurar conteúdos na internet e não achei nada. Não tinha ninguém falando sobre isso! Pensei: pô, está aí uma demanda reprimida, né? É importante ter esses canais justamente para derrubar o estigma que a doença tem, construídos lá na década de 80, no início da infecção. Hoje a gente precisa trazer a informação e mostrar que o momento atual é muito diferente, que as pessoas infectadas não são mais sentenciadas à morte. Vivemos em uma era tecnológica em que pessoas anônimas podem ter voz na internet e hoje, felizmente, as pessoas falam mais livremente sobre o HIV. Esse movimento de as pessoas se assumirem é muito importante. A gente não precisa se envergonhar, estamos ali para que as pessoas não enfrentem preconceitos.

Vai lá: youtube.com/SuperIndetectável

* Dados do Boletim Epidemiológico de HIV e AIDS de 2017

Créditos

Imagem principal: Heitor Loureiro

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