por Alana Della Nina

Stephan Doitschinoff fala de sua ampla pesquisa sobre espiritualidade e sua nova exposição, que traz instalação com Iggor Cavalera

Para o artista Stephan Doitschinoff, 42 anos, o apelo que a religião tem desde os tempos mais remotos e as noções dualistas do que é sagrado e profano são tão fascinantes que permeiam boa parte do seu trabalho. "Muitas constituições de países ocidentais são baseadas na Bíblia. Nossa sociedade ainda é pautada por leis que foram escritas há 2, 3 mil anos. Isso me maravilha e me impressiona", diz.

Sua obra é carregada de referências das artes sacra, devocional e popular, que fazem parte de sua pesquisa há mais de uma década, quando uma viagem ao nordeste brasileiro ampliou seus horizontes e rendeu um de seus trabalhos mais marcantes, o Projeto Temporal, em Lençóis, Bahia.

E a extensa pesquisa do paulista de São Bernardo do Campo se desdobra em diferentes níveis, que vão de ex-votos (oferendas de pedido ou agradecimento a santos de todos os tipos) a plantas psicoativas usadas em práticas ritualísticas.  

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Além de tratar esses temas de forma quase literal, Stephan aprofunda o diálogo, abrindo espaço para diferentes interpretações: sua arte pode ser, ao mesmo tempo, uma conexão com um plano místico e espiritual e uma representação de questões mais atuais, como democracia, pós-verdade, colonialismo e imperialismo.

Se esse tom hermético pode causar certa perplexidade ao espectador mais apressado, para o próprio artista a amplitude de significados não é um problema, já que o ponto forte do seu trabalho são os símbolos que ele mesmo cria: uma espécie de alfabeto imagético criptografado cuja função é justamente despertar reflexões mais aprofundadas – e que não levem, necessariamente, para o mesmo lugar. "Construo meu trabalho a partir de símbolos e ícones autorais, é como se eles fossem meu vocabulário", explica.

A produção de Stephan pode ser conferida na exposição individual Estaremos Aqui Para Sempre, na Janaina Torres Galeria (São Paulo), em cartaz até o início de outubro. Fazendo uso de diferentes suportes – desenhos, pinturas, esculturas, vídeos e instalações –, a mostra reúne trabalhos inéditos do artista ao longo dos últimos cinco anos.

Um dos destaques da exposição, Interventu, traz elementos da instalação do Museu de Arte Moderna da Irlanda (IMMA), em 2017, inspirada na prática votiva e nos ex-votos. Faz parte também da mostra o vídeo-performance Marcha ao Cvltv do Fvtvrv, também exposta no IMMA em 2018, que conta com a participação de Iggor Cavalera, Laima Leyton, Donna McCabe e da escola de samba de Dublin Masamba. Conversamos sobre tudo isso com Stephan:

“Construo meu trabalho a partir de símbolos e ícones autorais, é como se eles fossem meu vocabulário”
Stephan Doitschinoff

 

Trip. Daniel Rangel, curador da sua exposição, disse que sua obra é uma escrita visual carregada de informações criptografadas por uma literatura fantástica imagética. O que são essas criptografias?
Stephan. Até 2011, eu me apropriava de diversos símbolos e ícones de outras culturas e religiões. Em 2012, decidi começar a criar meus próprios símbolos e escrever sobre eles. Então, hoje, meu trabalho é estruturado a partir de símbolos autorais, é como se eles fossem um vocabulário criptografado. 

E como isso é representado na mostra? A exposição Estaremos Aqui Para Sempre é um gatilho para a reflexão. Estaremos quem? Aqui onde? Aí a mente já responde automaticamente, né? Nada é para sempre. Até o sol um dia vai se apagar. Então, o que é para sempre? A alma? Ou é a memória, a arquitetura, a arte, a cultura? Depois que a gente se for, a cultura vai seguir em frente. Não temos controle. Então, o título abraça várias questões presentes na exposição, em três séries bem distintas: Novo asceticismo, Cvlto do Fvtvrv e Interventu. A Interventu gira em torno de algumas práticas espirituais, ritualísticas. A Cvlto do Fvtvrv foca em outras reflexões, como a pós-verdade, a democracia corporativa, o imperialismo. São temas mais urgentes, atuais, mas, de certa forma, criptografados. Alguns dos símbolos são claramente percebidos, outros, não. 

Como foi sua imersão nesses temas? Vou dar um exemplo. Uma das imagens presentes na série Cvlto do Fvtvrv é a lua cravejada de bandeiras. A chegada de Neil Armstrong à lua sempre me trouxe essa reflexão: ao descer no solo lunar, ele vê a Terra de fora, vê que não tem fronteiras, não tem em cima nem embaixo. Ele vê o universo de uma forma muito particular. Aquele poderia ter sido um momento muito específico de expansão de consciência. Mas, em vez de ter uma atitude à altura dessa visão, o que Armstrong faz? Finca uma bandeira. Um símbolo oposto, de conquista. Até porque não é a bandeira do planeta Terra, é a americana. Esse é um dos símbolos, uma das reflexões que uso no meu trabalho, referente ao imperialismo.

“Não vejo o mundo dividido entre bem e mal, Deus e Diabo. Para mim, não existe o sagrado e o profano”
Stephan Doitschinoff

De onde vem seu interesse por práticas e culturas religiosas? Sempre achei bizarro nossa sociedade ainda ser pautada por leis que foram escritas há 2, 3 mil anos. Muitas constituições de países ocidentais ainda são baseadas na Bíblia. Isso me maravilhava e me impressionava. Outra coisa que me fascina são essas afirmações a respeito do que é sacro, o que é profano, o que é sobrenatural. Nunca gostei desses termos. Não vejo o mundo dividido entre bem e mal, Deus e Diabo. Para mim, não existe o sagrado e o profano. Nem o sobrenatural, porque é como se alguma coisa pudesse existir fora da natureza. Se a gente ainda não entendeu algo, não é porque é sobrenatural, é porque ainda não temos conhecimento para isso.

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E sua pesquisa sobre plantas psicoativas? As plantas psicoativas são muito relacionadas a práticas religiosas, ritualísticas. Na exposição, tem a instalação Visão Remota, com livros feitos de parafina, o mesmo material das velas. Esses livros têm imagens de plantas como peyote, ayahuasca, morning glory, o cogumelo Psilocybe Cubensis. Ainda hoje as plantas, extratos e fungos são base de muitos rituais de nações nativas. Quando isso é marginalizado, ou seja, quando uma determinada substância é proibida, toda a cultura de um povo é marginalizada. E é sempre um povo que já é marginalizado, que já teve suas terras tomadas. Além disso, a comunidade científica também acaba sendo impedida de fazer experimentos e gerar conhecimento. Esse tipo de pesquisa sempre me interessou. É uma linha tênue entre espiritualidade, política e questões sociais. Existe, inclusive, uma história muito interessante sobre as plantas e a linguagem.

“Quando uma determinada planta psicoativa é proibida, toda a cultura de um povo é marginalizada”
Stephan Doitschinoff

Qual história? É sugerida pelo Terence McKenna [escritor e etnobotânico], que conta que em algum momento da evolução, anterior ao Homo Erectus, famílias de primatas perseguiam manadas de grandes mamíferos através do rastro de dejetos. Famintos e sem conseguir alcançar a caça, acabavam comendo os cogumelos que nasciam das fezes dos animais. Esse processo da ingestão do Pciloscibe Cubensis, altamente alucinógeno e psicodélico, teria estimulado a necessidade da comunicação e o início da linguagem.

Como foi a experiência de expor no Museu de Arte Moderna da Irlanda (IMMA)? Em 2016, a Rachel Thomas, curadora do IMMA, me convidou para participar da exposição Above, So Below: Portals, Visions, Spirits & Mystics, ao lado de outros artistas que também abrangem a espiritualidade em suas pesquisas. Desenvolvi a instalação Interventu para a fachada do museu. Apresentei para a Rachel essa ideia, que eu já vinha pesquisando, sobre as várias maneiras com as quais as pessoas tentam se comunicar com outras dimensões, com o plano espiritual. Interventu é sobre isso.

Conte como você chegou a Lençóis, onde desenvolveu o projeto Temporal. Até 2006 eu pesquisava muito sobre arte sacra, devocional e popular. E sentia essa pesquisa um pouco limitada, só em livros e museus. Decidi então fazer uma residência auto-imposta e viajar pelo Nordeste pesquisando e participando de procissões, manifestações culturais e religiosas e visitando altares. Eu também tinha vontade de trabalhar com artistas que fazem arte devocional, e me mudei para a Chapada Diamantina para dar sequência a isso. Acabei conhecendo diversas pessoas do Tomba, do Alto da Estrela, que são comunidades da região. Fui convidado a reformar a capela de Santa Luzia e foi uma experiência muito interessante. Vi pessoas ali rezando, com terços na mão, ajoelhados, olhando para as imagens que eu tinha pintado. Foi impactante, percebi que o trabalho ali já não me pertencia mais, tomou outra dimensão. 

Além da exposição, você tem outros projetos? Em julho, passei uma temporada na Inglaterra, trabalhando com a Laima Leyton, do MixHell. Ela vai gravar um disco, que deve sair até o fim do ano, e fui para lá para desenvolver a performance do projeto. Foi uma experiência interessante, antes eu focava só em criar minha própria performance, então foi muito bom trabalhar com ela, que tem uma outra pesquisa, sobre casa e maternidade. Fiz uma série de parcerias com ela e com o Iggor Cavalera nos últimos anos, como na série Cvlto do Fvtvrv, que é um projeto que tem vários desdobramentos, e um deles é a parte musical, os hinos. Vamos lançar um single que vai ser uma mistura de um hino com spoken word. 

Stephan Doitschinoff – Estaremos Aqui Para SempreJanaina Torres Galeria. Rua Joaquim Antunes, 177, cj. 11, Pinheiros. Até 5/10. Entrada gratuita.

Créditos

Imagem principal: Stephan Doitschinoff

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