Diretora árabe-americana foi à Palestina retratar uma cena hip hop árabe em crescimento
Filha de pai sírio de mãe palestina, Jackie Saloum nasceu nos Estados Unidos. Essencialmente árabe e americana por rotina, a diretora do documentário Slingshot Hip Hop, viveu durante a adolescência as contradições de pertencer a duas culturas. De um lado, a família, do outro, o dia-a-dia de uma garota tentando se encaixar no padrões adolescentes norte-americanos.
Mais tarde, quando estava na faculdade, Jackie percebeu porque tinha vergonha de ser árabe: seu povo era sempre retratado negativamente, como "terroristas, bárbaros", ela conta. Resolveu fazer o filme para mudar o estereótipo sobre os árabes e mostrar que os palestinos fazem outra coisa além de entrar em conflito com os israelenses.
"Lá, [em Israel] não se trata de ocupação física, mas mental."
Para os rappers palestinos trata-se de enaltecer sua cultura e história, de colocar na mesa o lado da história que não é mostrado nos noticiários, tomados pelo exército israelense e pelos terroristas exaltados. Artista plástica de formação, Jackie encontrou no filme uma maneira de ficar mais próxima de suas raízes e de desvelar uma cena musical desconhecida.
Depois de quatro anos e meio de viagens à Palestina e Israel e muitas horas de edição, Slingshot Hip Hop [que começou a ser filmado em 2003] estreou no Festival de Sundance em 2008. O filme veio parar em São Paulo agora, como parte da programação do festival de documentários musicais In-Edit. Por telefone, Jackie Saloum falou à Trip sobre o filme e a vergonha de ser árabe nos Estados Unidos.
Como surgiu a ideia do documentário?
Um dia eu estava ouvindo a rádio pública e eu escutei uma música chamada "Quem é o terrorista?" ["Meen Erhabi", em árabe, da banda de rap palestina DAM]. Isso foi em 2002. Fiquei muito animada [com o fato de que] palestinos estavam fazendo hip hop. Eu procurei no Google e descobri que havia um movimento na Palestina, com muitos rappers. Baixei a música. Fiz um vídeo para uma aula na faculdade com imagens da Intifada. As pessoas aqui não veem o outro lado, elas geralmente veem o lado israelense. Eu queria que as pessoas vissem outras imagens, juntei todas as que eu tinha de documentários e traduzi as letras das músicas [do árabe] para o inglês. Foi supreendente ver as reações das pessoas. Elas diziam "Eu não tinha ideia de que isso estava acontecendo", "como posso me informar melhor?". Algumas pessoas ficaram muito emocionadas. Quando eu perguntei às pessoas o porquê de afetá-las tanto, a resposta foi "porque é hip hop, vem do coração e esses garotos estão apenas se expressando". Não é visto como propaganda política.
As pessoas para quem você mostrou o vídeo eram americanas?
Sim, americanos normais. Pus o vídeo na internet. Logo, as pessoas começaram a usá-lo em aulas para falar sobre a Palestina. Um dos meus professores disse: "Você deveria fazer um documentário sobre isso, vai atingir mais gente". Eu nunca tinha feito um filme, mas pensei: "Eu já fiz um vídeo, consigo fazer um documentário longa-metragem". Eu e um primo estávamos indo e voltando da Palestina para ver nosso parentes no oeste. Ele topou participar e filmar. Tenho uma amiga Palestina que me colocou em contato com Mahmoud Shalabi, um dos rappers. Fomos para lá em 2003, encontramos com ele, com DAM, Abeer, todos os rappers que vivem em Israel. Pensei que só demoraria um ano, eu não sabia o quanto seria difícil. Demorou quatro anos e meio. Nós estreamos em 2008, no Festival de Sundance.
"Quando eu era mais nova, tinha vergonha de ser árabe. Isso é muito comum entre os árabe-americanos de primeira geração."
Você tinha outro trabalho além desse?
Eu havia acabado de me formar na faculdade. Disse aos meus pais que ia à Palestina fazer o filme e eles disseram, "não, arranje um emprego!". Eu tive que morar de novo com meus pais durante um ano porque fiquei sem dinheiro. Eles têm uma sorveteria, então fui trabalhar lá durante o dia. A produção foi ajudada pela sorveteria dos meus pais [risos]. O filme não teve grandes financiadores. O dinheiro veio da comunidade. Organizaram eventos para levantar fundos, amigos rappers americanos fizeram uma coletânea chamada Free the P, com hip hop e spoken word de vários lugares do mundo. Todo o dinheiro foi doado para o filme. Sem a ajuda da comunidade, dos cartões de crédito [risos], dos rappers da Palestina (que filmavam enquanto eu não podia estar lá), o filme não teria saído.
Como foi crescer nos EUA sendo descendente de árabes? Você sempre se sentia árabe?
Mais porque meus pais são muito severos, eles não me deixavam fazer as coisas que os americanos podiam fazer. Isso era um lembrete de que eu era árabe. Mas não se tratava de outras pessoas me fazendo lembrar disso. A minha questão era a maneira como a mídia retratava árabes e o efeito que isso tinha em mim. Quando eu era criança, tudo o que eu via na televisão era negativo, sempre nos mostrava como terroristas, bárbaros, até não-humanos em alguns filmes.
Como você se sentia?
Quando eu era mais nova, tinha vergonha de ser árabe. Isso é muito comum entre os árabe-americanos de primeira geração. Eles não querem que as pessoas saibam que são árabes. Meus primos mudavam o nome, não legalmente, mas pediam para não chama-los pelo nome árabe, inventavam outro. Eu era considerada sortuda porque me chamo Jacqueline e meus irmãos e primos receberam nomes árabes. Era mais fácil fingir que eu não era árabe. Quando meus amigos vinham em casa, eu falava para a minha mãe maneirar no sotaque. Isso acontecia quando eu era criança, minha mãe dizia: "Você deveria ter orgulho de quem nós somos, temos uma grande cultura". Eu achava que tínhamos uma comida boa e só. Não via nada postivo em ser árabe porque não haviam exemplos: músicos, atores. Nos noticiários só aparecia o que de ruim os palestinos haviam feito. Superei isso. Naquela época, eu só queria me encaixar, era a única árabe da minha escola.
Você diria que o filme é uma tentativa de oferecer esses modelos que você não teve quando estava crescendo?
Claro. O filme veio de algumas motivações minhas, como mostrar um lado diferente do Oriente Médio, mostrar que a maioria dos palestinos é como os que são mostrados no filme. Acho incrível o que esses rappers estão fazendo, eles estão mudando sua sociedade e influenciando uma nova geração de garotos que crescem no gueto a se envolver com arte, a aprender sobre a sua história.
É disso que falam as letras?
Sim, é o objetivo principal para um grupo como o DAM, que mora em um gueto fora de Tel-Aviv; crescendo ali, você não aprende nada sobre sua cultura, aprende história sionista. Você aprende que é só um árabe-israelense. O que eles fazem com a música é falar sobre a história palestina, a poesia, os artistas. Os jovens aprendem sobre sua história através da música. Muitos jovens começam a fazer rap por causa deles, eles fazem muitos workshops em Gaza. Também fazem muitos paralelos entre a luta dos negros aqui nos EUA e a luta deles lá. Foi assim que o hip hop começou lá. Começou com o DAM. Eles deram bola para a MTV. Até que eles viram um clipe do Tupac Shakur e o gueto parecia o deles. Traduziram a letra e eles se identificaram em muitos níveis. Aí eles começaram a gostar de mais coisas, de Public Enemy, começaram a ler sobre a luta dos negros, descobriram Malcolm X, os Black Panthers, Martin Luther King. Mas estou falando dos palestinos que moram em Israel, que são tratados como cidadãos de terceira classe, eles vivem entre os israelenses, têm passaporte israelense. Lá, não se trata de ocupação física, mas mental. Os que moram em Gaza são diferentes, eles crescem sob uma dura ocupação militar. Eles sabem sua história, sabem de onde vieram, de onde são, têm orgulho pelo que são. A música deles não fala sobre tanto sobre a história.
Vai lá: Slingshot Hip Hop no In-Edit 2010
26 de março, sexta-feira, às 19h
Galeria Olido (Avenida São João, 473, Centro, São Paulo; telefones: 3331-8399 ou 3397-0171)
R$ 1
Saiba mais: ouça a trilha sonora do filme no Myspace oficial