por Henrique Goldman
Trip #231

Henrique Goldman: Me deparei com outro tipo de racismo, que até então eu não conhecia

Quando vi dois negros muito altos e fortes subirem no meu vagão, num trem noturno no zimbábue, resolvi trancar a porta da cabine. Meu coração disparou quando percebi que eles começaram a bater na porta

Em 1995, fui ao Zimbábue gravar um documentário sobre Sita, um vilarejo perto de Chipingue, nas montanhas na fronteira com Moçambique, habitado pela etnia shona. Desde a década de 70, período da guerra civil moçambicana, o vilarejo estava isolado do resto do mundo porque todas as estradas da região tinham sido minadas. O documentário retratava Mambo, o líder da tribo, e o impacto que os anos de guerra causaram na vida dos habitantes. A guerra tinha acabado havia pouco, mas acreditava-se que os soldados que retornavam às suas casas estavam sendo perseguidos pelos espíritos vingativos de suas vítimas, que causavam doenças, acidentes e maldições em seus lares. Em casos assim, o Mambo chamava Japissa, uma bruxa, que, ao chegar às casas amaldiçoadas, entrava em transe, negociava com os espíritos e expurgava o mal.

Eu fui um dos primeiros muiungos (homem branco, no dialeto shona) a chegar a Sita desde que o lugar fora isolado. Muitas crianças e jovens da região nunca tinham visto um homem branco e fugiam apavoradas ao me ver. Aos poucos, foram se acostumando com o meu brancor e, fascinadas, me seguiam aonde eu fosse, observando minha câmera como se fosse um objeto chegado de outro planeta e tocando os pelos dos meus braços alienígenas, coisa nunca antes vista.

Com todo o ódio que sentia pelo racismo, tudo nesta minha primeira viagem à Africa me fazia pensar na cor da pele como o elemento mais fundamental na relação entre homens. No Brasil, não era assim. Nunca tinha me sentido tão branquelo. Apesar de ser meio alto e moreno, percebi que todos em Sita me confundiam com um voluntário italiano baixinho, loiro e de olhos azuis. Afinal éramos os dois muiungos na área. Lembrei que, para nós, os chineses também parecem todos iguais.

Num fim de semana, decidi ir a Harare, a capital, assistir a um jogo de futebol entre Zimbábue e Gana. O apartheid já havia sido abolido havia quase dez anos, mas mesmo assim o estádio lotado continuava dividido de acordo com a cor da pele dos torcedores. A divisão era clara e gritante: a maioria dos torcedores negros ficava separada de uma fatia pequena de mulatos e outra menor ainda de brancos. Voltei para a estação, onde pegaria o trem de volta para a fronteira do Moçambique, sentindo o maior orgulho da presumida democracia racial brasileira.

PRECONCEITO ENRUSTIDO

Foi na estação de trem que me deparei com outro tipo de racismo, que até então eu não conhecia, de um homem tóxico e preconceituoso: eu mesmo. Foi assim: o trem noturno que ia de Harare até Mutare era uma linda relíquia dos tempos do colonialismo britânico. As cabines da primeira classe eram cobertas de madeira de lei, prata e cristal. Na ida, tinha me sentido como um caçador rumo a um safári num antigo filme do Tarzan, com o Johnny Weissmuller no papel principal. Estava louco para dormir numa daquelas cabines novamente.

Mas, à meia-noite, quando cheguei à estação, percebi que minha cabine era num vagão bem mais novo, de fórmica com luz de neon, sujo e feio. Como a plataforma e o trem estavam totalmente vazios, me instalei na cabine que queria, num vagão antigo. Foi quando percebi dois homens negros muito altos e fortes me encarando na plataforma. Eles ficaram ali me olhando e começaram a caminhar em minha direção. Fiquei nervoso. Pareciam bêbados. Com certeza queriam me roubar. E eu ali sozinho no trem completamente vazio. Quando os vi subir no meu vagão, resolvi trancar a porta da cabine. Meu coração disparou quando percebi que eles começaram a bater na porta. Fiquei ali congelado. Não abri. O trem começou a andar e eles continuavam a bater na porta. Com certeza, os negros iam me roubar e me assassinar. Meu corpo ficaria jogado na cabine ensanguentada e só seria descoberto quando chegássemos ao destino final.

Depois de um tempo, os dois assassinos desistiram de bater na porta. Sentei aliviado. Mas quando estava quase adormecendo começaram a bater na porta novamente. Desta vez, era o chefe do trem. Abri a porta. Ao lado do chefe do trem, estavam os dois gigantes negros. O chefe do trem me explicou que eu tinha ocupado a cabine reservada por aqueles dois cavalheiros. Meu medo racista ficou mais do que evidente para todos. Mas, de perto, os dois africanos nem pareciam tão mal-encarados. Eram gente fina. Talvez, vivendo naquela atmosfera tão racista, eles até tenham perdoado o meu preconceito enrustido. Diziam para o chefe do trem me deixar em paz. Podiam ficar em outra cabine qualquer.

Envergonhado, eu reagi do jeito mais patético. Fiz de conta que não entendia inglês direito. Disse que era brasileiro e fiz até uma piadinha sobre o Pelé que nem quero lembrar, para não ficar me torturando. O constrangimento estragou a viagem. Só queria, com este relato, lembrar ao leitor e a mim mesmo o quanto o mal é insidioso. Tantas vezes, ao tentar combatê-lo no mundo, deixamos de enxergá-lo dentro de nós.

*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles.

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