O xerife de Camburi

Conheça a história de Fredê, o paulistano que largou a metrópole para cuidar da Mata Atlântica

Surfista sério, ambientalista respeitado, figura clássica do litoral norte de São Paulo: conheça a história de Fredê, o paulistano que largou a metrópole para cuidar da Mata Atlântica

Edson Marques Lobato dirige seu jipe vermelho com uma prancha presa à traseira acenando quase o tempo todo. Cumprimenta boa parte das pessoas que cruzam seu caminho. Fredê, como é conhecido, tem menos de um metro e 80 de altura, cabelos brancos ganhando território entre as entradas já aparentes. Aos 52 anos mantém a forma atlética, mesmo depois de perder uma dezena de quilos nos últimos meses. Os pelos do peito já são completamente grisalhos e a testa do surfista tem mais de meia dúzia de ondas desenhadas, em formato de M, que praticamente duplicam quando ele tensiona o rosto bronzeado.

Biólogo crescido no Butantã, zona oeste de São Paulo, é parte da primeira geração de paulistanos a enfrentar o “selvagem” litoral norte. Pega onda na região há cerca de 35 anos, mas há 17 trocou a poluída metrópole por uma casa de dois andares feita de madeira em Camburi, praia de São Sebastião. “A minha decisão de sair teve três pilares: você tá parado no trânsito, o ar é ruim e a água é ruim”, lembra. “Porra, brother. Que caralho é esse?” No endereço confortável, em um refúgio de Mata Atlântica, vive com a mulher, Angela, 44 anos, o filho Kauai, 10, e com a cadela rajada Naomi, ou Naná, 5, uma mistura de pit bull com labrador. “Fredê é uma pessoa adorável, além disso é um grande surfista e um homem que batalhou e batalha muito pela Mata Atlântica”, comenta o arquiteto Carlos Motta, outro desbravador célebre da região e dono de uma casa em Camburi desde os anos 1980.

Seu apelido é reconhecido em todo o litoral como sinônimo de preservação. É o “Fredê do parque”, o “Fredê de Camburi”. Responsável por levar o termo sustentabilidade pra região, trabalha há três décadas numa incansável luta pelo meio ambiente. Nos anos 90, funcionário padrão da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) na cidade de São Paulo, criou o Projeto Praia Limpa. As sacolinhas eram distribuídas e os banhistas, que não tinham o hábito de recolher seu lixo, passaram a manter o local em ordem. A Rede Globo abraçou a causa, ajudou a promover e empresas aproveitaram os saquinhos plásticos para divulgar, suas marcas. Desanimado com o ritmo casa-trabalho que assumiu na capital, e somando a isso a morte precoce do irmão um ano mais velho num acidente de moto, resolveu mudar de ares em 1995. “Meu irmão morreu, meu trabalho tava uma merda, minha ex-namorada me enchia o saco. Decidi largar tudo e vir pra cá”, conta sem a menor sombra de arrependimento.

Instalado na casa que já havia comprado anos antes, passou a se dedicar à criação do Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo São Sebastião, um dos sete apêndices da unidade de conservação com 30 mil hectares. “O parque é estadual, mas o patrimônio é local”, era o mantra que o aproximava da comunidade. Fredê se tornou uma espécie de xerife, respeitado pelos moradores e temido por quem tentava dar o “gato” na lei. Passou a incomodar na mesma proporção com que cuidava do meio ambiente. “A lei ambiental de São Sebastião prevê a demolição sumária. Isso facilita muito o processo.” Mas também aumenta a possibilidade de arrumar inimigos. Os problemas mais frequentes eram os caçadores, palmiteiros e as construções ilegais, todos combatidos compulsivamente. “Eu derrubei muita casa de bacana, contrariei muitos interesses.” Alguns que até colocaram em risco sua segurança. “Já sofri ameaças, me ligaram, mandaram recado, mas nunca abaixei a cabeça. A gente entrava no mato e não tinha essa de ser pobre ou rico. Era pá-pum-pá, derrubava casa de caçador, casa de bacana, o que fosse irregular.” Mas, além de “derrubador”, atuava também como mediador de conflitos, muitas vezes avisando e conscientizando a população dos problemas que ela causaria desmatando, matando os animais ou construindo ilegalmente. “O Fredê é um cara do mar e tem muita preocupação com a natureza. Ele dedicou muitos anos à preservação daqui”, comenta Wagner Pupo, shaper que no último ano fez pelo menos cinco pranchas para o amigo.

 

"Tirar o Fredê do parque estadual é como perder o Neymar para o futebol da Sibéria", compara o Secretário do Meio Ambiente de São Sebastião, Eduardo Hipólito

 

Volta, Fredê
Os últimos meses não foram fáceis. Em setembro, Fredê foi destituído do cargo e recolocado na Cetesb sem explicações muito claras – oficialmente, ele foi apenas um entre vários gestores demitidos ou transferidos para atender a “uma nova estratégia administrativa para agilizar processos”, como diz o comunicado da Fundação Florestal. Nem o atual gestor do parque, Gustavo Freitas Cardoso, soube explicar para nossa reportagem os motivos da mudança: “Não tenho informações administrativas suficientes”, diz. “Mas gostaria de ter.” A boataria dava conta de que sua saída teria sido motivada por um flagra quando estava surfando em horário de trabalho. Ao falar da acusação, o M na testa de Fredê duplica: “Há quatro anos esse cara [prefere não mencionar o nome] fez uma foto minha e de uma amiga na praia com a prancha. Sem hora, sem nada. Olha que louco, nesse mesmo dia eu estava reunido com 20 monitores do ecoturismo. São denúncias vindas da mesma pessoa e sem cabimento algum”.

Mas, se não foi por causa do surf, foi por quê? Fredê não sabe a resposta e diz que isso é o que mais o incomoda. “Fiquei mal, não conseguia dormir, tomava tarja preta. Estou de licença médica, emagreci pra caralho, mas, tudo bem, vai passar. Volto para a Cetesb no início do ano e pretendo continuar com o trabalho.”

Em 28 de setembro, um dia depois de sua recolocação, uma moção de repúdio endereçada ao secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Bruno Covas, foi aberta e popularizada como “Volta, Fredê”. Até o fechamento desta edição eram 587 assinaturas. “Foi um Neymar que a gente perdeu para o futebol da Sibéria”, compara o secretário do Meio Ambiente de São Sebastião, Eduardo Hipólito. “Fredê criou operações que integravam setores que não se falavam. O novo gestor vai precisar de, no mínimo, cinco anos para retomar alguma coisa do que ele vinha fazendo. Foi uma falta de consideração absurda.”

Também frequentadora de Camburi, a atriz Maria Fernanda Cândido é outra que sai em defesa de Fredê: “Falar da questão ambiental hoje é praticamente uma obrigação, mas realizar o trabalho que ele fazia há quase 18 anos é prova de que é um sujeito especial, inovador, comprometido. É um homem de visão, que já demonstrava lá atrás essa consciência do mundo”. Ao ser indagado se o retorno é possível, Fredê é enfático e usa um clichê: “Eu nunca digo nunca”.

Serra no mar
Surfista da velha guarda, Fredê visitou com sua prancha Indonésia, Costa Rica, Peru e Havaí, onde ficou um ano antes de montar o parque em São Sebastião. Ele circula pelas praias da região desde a época em que os caiçaras moravam perto do mar. Viu a criação de casas espaçosas com gramados aparados e vegetação impessoal dominando a orla. “A primeira vez que vim pra cá eu tinha uns 16, 17 anos. A onda aqui era mais tubular. Eu dropava umas ondas grandes só pra ver aquele negócio fechando, imagina! Quebrava a prancha, mas só de ver essa serra colada aqui...”, lembra. “Aqui é a serra no mar, e não Serra do Mar.” Indagado sobre a última vez que sentiu o gosto salgado da água, responde: “Graças a Deus foi ontem, cara. Tinha dois metros de onda”.

E o apelido “Fredê”, de onde vem? “Antigamente existia um jeito polido de dizer ‘vá se foder’ que era ‘vá bundar com Frederico’. Eu tava jogando futebol e tinha um moleque folgado, já tinha dado uma nele. Uma hora, ele pá! [bate com a mão direita fechada na esquerda espalmada] Virou um ‘porra’, ‘caralho’... e ele falou ‘vai bundar com Frederico’. Eu falei: ‘O quê?’. E parti pra cima. A galera achou que eu fiquei bravo com o Frederico. Sabe como é moleque, né? Frederico, Frederico... Virei o Fredê até hoje.”

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