Como uma sociedade tão coletivista e metódica consegue se adaptar a um esporte individualista e de improviso?
Meu interesse no Japão é duplo. De um lado, tenho curiosidade pela cultura do surf japonês, por saber como um esporte que é fundamentalmente individualista e renegado se encaixa em uma sociedade construída sobre o coletivo, a obediência, o jogar pelas regras. Do outro, estou tentando me purgar de pecados cometidos no Japão há cerca de duas décadas.
Eu cresci no sul da Califórnia, comecei a surfar aos 12, galguei os rankings amadores e me juntei ao tour da ASP (Associação de Surfistas Profissionais) em 1986. Era a época de Carroll, Curren, Occy, Pottz, um tempo em que o surf estava tentando deixar para trás seu passado duvidoso e dar um passo em direção a seu futuro profissional. Eu fiquei na média – meus melhores resultados foram um par de terceiros lugares; terminei a maioria das minhas temporadas lá pelo 40º lugar e, quando minha carreira chegou a um fim abrupto em 1991, entrei em uma severa depressão. Passei cinco anos vivendo meu sonho e, de repente, fui mandado para o pasto – um aposentado aos 25 anos.
Enchi a cara de cerveja, sabotei uma relação perfeitamente saudável e vaguei por aí durante alguns meses, até perceber que eu amava o surf como uma forma de expressão pessoal e, como não podia mais ganhar a vida pegando ondas, eu poderia ganhar a vida escrevendo sobre pegar ondas. Diferentemente da maioria das publicações, que exige diploma de seus jornalistas, as revistas de surf pedem apenas conhecimento de primeira mão, disposição para dormir em sofás e estar em boa forma.
Pelos 15 anos seguintes eu viajaria o mundo escrevendo para Tracks, Waves, Surfing, Surfer, The Surfer’s Journal, The Surfer’s Path, Adrenaline etc. E, apesar de ter sido uma jornada maravilhosa temperada com sal marinho, recentemente cheguei a um beco sem saída. Eu senti que havia dito tudo que podia dizer sobre o WCT (World Championship Tour), o surfista mais quente do momento, as melhores surf trips. Eu me peguei vendo o surf de uma perspectiva mais distante, antropológica.
Assim, eu me inscrevi para uma bolsa da Fulbright para “melhor entender a cultura japonesa através das lentes do surf”. Eu consegui, então aqui estou, escrevendo em um pequeno nomiya bar em Shibuya, enquanto o proprietário que não fala inglês canta perfeitamente uma música de Jerry Lee Lewis.
A MIOPIA DE NARCISO
Minhas primeiras semanas em Tóquio foram preenchidas com as observações básicas que golpeiam a cabeça da maioria dos gaijins (estrangeiros) em sua chegada: as onipresentes máquinas de bebidas, as revistas que se lêem de trás pra frente, as portas dos táxis que se abrem automaticamente, os sobrenomes que vêm antes dos nomes, o melodioso irasshaimase que é cantado quando você entra nas lojas, a embalagem excessiva para os produtos mais básicos que contradiz o avançado programa de reciclagem japonês, o barulho que eles fazem quando comem noodles, a forma como os japoneses esperam o sinal mudar antes de atravessar as ruas, apesar de ser quatro da madrugada e não haver nenhum carro à vista. Eu não ter tido conhecimento dessas diferenças durante as oito ou nove visitas que fiz ao Japão no fim dos anos 80 evidencia a natureza míope do surf profissional. Lembrava da sopa de missô, do peixe assado e dos vegetais em conserva no café-da-manhã e do fato de as revistas eróticas terem as partes púbicas apagadas, mas acima de tudo recordo do meu narcisismo.
Eu surfei em Chiba, Shonan, Shimoda e Miyazaki. As ondas eram terríveis, mas as pessoas eram fantásticas. Os japoneses são assombrosamente metódicos em sua relação com o surf. Eles carregam chuveiros portáteis, esteiras e cabides para secar seus long johns. Eu vi um cara em Shimoda tirar uma longboard de sua van e colocá-la sobre um suporte só para que ela não tocasse no chão.
Corrija-me se eu estiver errado, mas surfar é inatamente uma atividade do improviso. O fato de Matt Johnson aparecer em Malibu bêbado e sem prancha na seqüência de abertura do filme Amargo reencontro não é uma firula, e sim algo corriqueiro. O fato de Tom Curren ter surfado de forma genial nos anos 90 com pranchas emprestadas diz tudo sobre o surf. Estar despenteado, descalço e seminu sobre uma onda é metade do barato.
Meu amigo Naki, um fotógrafo japonês de surf que vive entre Kamakura, San Clemente e Kauai desde 94, tem um ponto de vista interessante. Ele diz que, por causa da pesada carga de trabalho e do surf inconsistente, há longos períodos de incubação em que vídeos são assistidos, revistas são lidas e a imaginação é alimentada.
“Califórnia é o lugar onde tudo é original e cool. Os japoneses tentam copiar e digerir. É como uma relação entre pai e filho. Nós observamos como os surfistas profissionais andam, passam cera nas pranchas, que carros eles dirigem.”
Ele chega a dizer que os surfistas japoneses são muito mais autoconscientes do que em qualquer outro lugar. Porque eles são formados na mentalidade coletiva, porque “o prego que se destaca acaba sendo martelado”, existe aqui uma mentalidade de rebanho. As revistas de surf do Japão, por exemplo, contêm páginas de
“Como fazer” – como dar uma rasgada, como dar um cut back, como chegar ao lip da onda – e, segundo Naki, elas são estudadas religiosamente. Só depois que alguém tenha dominado o básico dessas regras é que tentará imprimir um estilo pessoal. Eu acho isso fascinante porque contraria completamente minha introdução ao surf. Na Malibu dos anos 70, se você desse qualquer indicação de um esforço metódico e deliberado, seria expulso da água pelas risadas.
VÁLVULA DE ESCAPE
O Japão é um país extremamente sexy, embora de uma maneira muito diferente de, digamos, França, Itália ou Brasil. Você vê muito pouco afeto demonstrado em público. Eu me lembro de quando fui encontrar Gisela no aeroporto de Narita. Ela estava chegando do JFK (aeroporto de Nova York), isto é, em um vôo internacional. Normalmente aquele local onde os passageiros encontram-se com seus amados é um engarrafamento de abraços, beijos e queixos roçando ombros.
Não em Narita. Maridos recebem suas esposas com um aceno, dão um tapinha na cabeça do filho e vão direto para o estacionamento, eficiente e friamente.
Mas, da mesma forma que a filha do pastor é uma gatinha selvagem debaixo das cobertas, a sociedade certinha tem seu lado sombrio. Na sex shop que fica na rua do nosso apartamento, eu me surpreendi ao ver prateleiras inteiras dedicadas a coprofilia, golden showers (o ato de urinar sobre o parceiro) e sadomasoquismo. Eu posso contar sobre o vídeo a que assistimos – os sete executivos que atacam sua vítima vendada com vibradores, a garota com os pés e mãos acorrentados que sofre o prazer/tortura de um consolo roxo gigante com luzes de neon e efeitos sonoros de serra elétrica –, mas seria inapropriado.
Eu posso contar sobre os mangás que mostram ninfas pré-pubescentes com rostos cobertos de esperma, cachorros trepando com enfermeiras, monstros em forma de polvo estuprando grupos de colegiais e, em uma imagem particularmente perturbadora, uma arma/falo no formato de uma navalha. Eu li em algum lugar que os japoneses vêem essas coisas como uma espécie de válvula de escape, um antídoto contra as pressões da rotina. Enquanto os Estados Unidos culpam Marilyn Manson pelos massacres em suas escolas, os japoneses vêem o problema pela luz oposta. Melhor que o sangue seja esparramado nas páginas que na vida real.
E há ainda o chikan, uma maneira distintivamente urbana de extravasar a libido. Em vagões de metrô tão lotados que os condutores de luvas brancas têm que empurrar para dentro cada costela protuberante para que as portas se fechem, filhos-da-puta perversos encontraram uma maneira para explorar a situação. Os chikaners se colam a suas vítimas, estrategicamente esperam pela cascata de corpos a cada parada, contorcem-se até chegar ao orgasmo e escapam pela porta.
PAÍS FECHADO A VÁCUO
O Japão é um país único no sentido de ter permanecido em uma espécie de vácuo por dois séculos e um quarto. Ao observar a maneira como os japoneses adotaram o cristianismo trazido pelos portugueses, e encarando isso como uma ameaça à pureza nacional, o shogum Tokugawa Iemitsu determinou o sakoku (que quer dizer “país fechado”). De 1633 a 1858, os estrangeiros não tinham permissão para entrar nem os japoneses podiam sair. Mas houve um pequeno contato em Nagasaki, em que comerciantes holandeses trouxeram, além de produtos, remédios, literatura, física e astronomia.
Eu fiquei interessado nisso como uma potencial linha de ligação com o surf. Como os japoneses responderam a esse aprisionamento? O que isso faz com um país? É possível traçar um paralelo entre os primeiros europeus e os oficiais da marinha americana que trouxeram o surf ao Japão depois da Segunda Guerra?
Muito do que eu suspeitei se confirmou. No Museu de História e Cultura de Nagasaki, eu aprendi sobre os nampaks, japoneses que ficaram obcecados por tudo que era holandês.
Alguns podem argumentar que o sakoku imprimiu uma espécie de “complexo de outsider” na psique japonesa. Tendo sido apagada por dois séculos, houve a sensação de estar atrás do resto do mundo e a necessidade de alcançá-lo. E, como a devoradora filha do pastor, eles abraçaram o mundo externo, em especial o Ocidente, como uma vingança. Como o escritor Paul Theroux explica, “ao perder sua japonice, eles se tornam ainda mais japoneses”.
SEM POSE, COM BAIRRISMO
O que é animador, o que é um agradável distanciamento da pose e da atitude que permeiam a cena do surf na Califórnia, é a inocência e o entusiasmo dos japoneses. Várias vezes via garçons ou barmen com marcas de bronzeado de uma roupa de surf ou com uma tatuagem com motivos praianos e perguntava: “Você é um surfista?”. Invariavelmente, seus olhos se iluminavam e eles confirmavam de forma entusiasmada, como se de repente tivessem 10 anos.
Do outro lado da moeda, há o bairrismo. Pelo que me disseram, ao adotarem todos as facetas e nuances da cultura do surf, os japoneses incluíram o bairrismo na lista. Isso não soa fora de contexto? A ironia de abraçar essa importação encantadora e ao mesmo tempo criar uma espécie de fosso em volta dela... Mas claro que a hipocrisia também é parte do espectro do surf. Parte da condição humana.
PECADOS DA JUVENTUDE
Então voltemos aos velhos pecados.
É 1989, eu sou um jovem, barulhento e esnobe surfista profissional – assim como a maioria dos meus companheiros. Um conhecido fotógrafo desse tempo, Cap’n Fun, chega ao Marui Pro em Chiba com duas malas cheias de roupas dos anos 70 que ele conseguiu em um brechó de San Diego. Estamos falando de colarinhos gigantes, calças boca-de-sino, sandálias com salto plataforma, colares com glitter, boás de pena, perucas coloridas.
Meia dúzia dos melhores surfistas do mundo e mais este que vos fala se reúnem no quarto do hotel de Cap’n Fun, viram cervejas e escolhem suas roupas – quanto mais abominável melhor. Então nos dirigimos ao 7-Eleven local, compramos um par de garrafas de Jack Daniels, talvez 20 cervejas, sacos de batatas chips, bolachas de arroz e outras laricas. Nós entramos no metrô para Tóquio com uma arrogância que lembra Alex, Pete, Georgie e Dim em Laranja mecânica.
Nossa primeira transgressão foi passar a mão em um aparelho de som de um par de colegiais sorridentes, colocá-lo em um volume ensurdecedor e usá-lo para abastecer nossos ridículos movimentos de dança. Daí nós roubamos um extintor de incêndio e perseguimos uns aos outros nos corredores. Aí uma cerveja é derramada, outra, outra e outra, e o chão fica parecido com um rinque de patinação.
O que gira a faca da culpa cravada no meu estômago é a lembrança do rosto dos passageiros: eles apenas sorriam. Nosso comportamento era tão detestável que eles simplesmente não tinham os meios (nem as palavras) para lidar com ele. Eu ainda posso ver o executivo de cabelo grisalho olhando por cima de seu jornal, fingindo uma pequena risada sempre que eu flagrava seus olhos perturbados.
Quando chegamos a Tóquio, um surfista ranqueado no top 30 havia vomitado pela janela, um concorrente ao título mundial quase foi cegado pela espuma de um extintor de incêndio, o vagão havia sido completamente evacuado por passageiros de saco cheio e um rio de fluidos duvidosos e latas de cerveja corriam para a frente do vagão a cada parada.
Desnecessário dizer que os policiais estavam esperando por nós. Mas fomos espertos. Cap’n Fun marcou um ponto de encontro (“McDonald’s na esquina da Roppongi Dori!”) e nós nos espalhamos como os estilhaços de uma bomba. Acabamos em um club da moda chamado Lexington Queen, onde nos fizemos de bobos na pista de dança, ofendemos modelos americanas e nos alimentamos com Jack Daniels e Coca-Cola. Racionalizamos a história como se estivéssemos brincando de Robin Hood: os funcionários e clientes do Lexington Queen eram pretensiosos e caretas, nós éramos relaxados e autodepreciativos; portanto, defensores da liberdade.
NOVA LIBERDADE
Mas isso foi duas décadas atrás. Tendo passado os últimos quatro meses conhecendo o Japão com um olhar mais maduro, vejo as coisas de forma bem diferente. Em sua ordem e controle, um novo tipo de liberdade emerge. Crianças de 10 anos podem andar sozinhas pelo metrô. Mulheres podem andar por becos escuros à noite. Gaijins sem noção, que não falam japonês, podem cruzar o país em trens-bala, aparecer em cidades desconhecidas e saber que haverá uma refeição quente e uma cama para dormir. O Japão parece saído de um conto de fadas. Em que outro lugar do mundo isso pode acontecer?
GUARDA-CHUVA GRÁTIS
Eu estou andando em um viela escura e estreita no meio de um temporal quando, de repente, sinto um guarda-chuva sobre minha cabeça. Olho para o lado e lá está a metade masculina de um casal para o qual acenei no 7-Eleven com um sorriso caloroso no rosto.
“Para mantê-lo seco”, ele diz.
“Obrigado.”
“De onde você é?”, pergunta sua simpática namorada.
“Nova York.”
“O que você está fazendo aqui?”
“Estudando.”
“Você tem onde ficar? Amigos?”
“Sim, estou hospedado com minha mulher.”
“OK, só queríamos ter certeza de que você tem amigos.”
“O japonês pode ser difícil para os estrangeiros”, acrescenta o namorado.
“Foi muito gentil da sua parte”, eu digo e, quando nos despedimos, tento devolver o guarda-chuva, mas o casal insiste para que eu fique com ele.
Isso é o Japão. Você sai de casa à uma da madrugada procurando sorvete e volta com novos amigos e um guarda-chuva de graça.
Agradecimento especial: Fulbrigh Japan