O carcereiro parou na porta gradeada do xadrez com sua prancheta e começou a chamar nomes. Era a contagem. Dizia-se que o preso podia tudo, menos faltar nessa hora. Ao fim da chamada, conferiu contando por cabeça, como gado. A contagem batia com a anterior. Ao final, deu uma olhada avaliadora. Parecia tudo bem, embora aquela ansiedade quase imperceptível em responder um pouco rápido demais a contagem. Eles pareciam ter pressa em afastá-lo da porta do xadrez. Era uma atitude estranha. E já não era a primeira vez que o pessoal daquele xadrez chamavam sua atenção pelo nervosismo. O que estariam aprontando dessa vez? Era a ultima contagem da noite, talvez fosse somente o baseadinho que eles fumavam antes de dormir. Mas...
_ Olha lá esse cheiro fedido ai, hem? Se abusar chamo a PM, tá? Eles iam adorar serem acordados de madrugada por causa de vocês, e virão com o maior prazer...
Todos falaram ao mesmo tempo respondendo e protestando ansiosos. É, parecia que havia algo mesmo por ali, pensava o carcereiro, sem saber identificar o que:
_ Não quero nem saber; se ouvir qualquer barulho ou cheiro suspeito chamo a PM mesmo! Não vou permitir vocês "zuarem" meu plantão!!! Também ele estava ficando nervoso agora.
Sob protesto e provocações, o homem sai da porta do xadrez e vai fazer a contagem no xadrez em frente. Olha para trás, desconfiado, pensa em chamar a Policia Militar mesmo sem saber o que estava acontecendo. Alguma coisa errada havia, aqueles caras só viviam dando trabalho e não iam parar agora. O que seria?
Os presos, apreensivos, tentam disfarçar para não ficar pior ainda. Antes de sair do pátio e voltar para a carceragem, o homem da carceragem da mais uma passada nas celas, ressabiado.
_ Esse carcereiro parece que tem um radar...
_ Muitos anos "sacaneando" presos, eles adquirem intuição, percebem as coisas sem precisar ver. Sentem no ar, como nós.
_ Vamos continuar o túnel?
Pergunta o preso mais gordo da cela, parecendo muito ansioso. Nunca estivera na prisão e fora preso por roubar uma bicicleta; na estratificação da cela, ele era quase ninguém. Não possuía conceito algum, fora desafiado, amedrontou-se, acabou apanhando e virando o bobalhão, o faz-tudo do xadrez. Os presos de maior conceito se aproveitavam dele; colocavam para lavar roupa, fazer faxina, cavar buraco...
_ Ô seu idiota, parar porque?
_ O policia parecia desconfiado...
_ Vamos é acabar logo com o buraco para ver se conseguimos vazar na madrugada, antes que ele desconfie mais ainda e chame o choque da PM.
Dunga comandava, era o preso mais antigo e mais experiente naquela prisão. Zézinho, o "tatu", foi tirando o colchão e o buraco apareceu. A parte do banheiro onde tomavam banho estava lotada de terra até o teto. Eles haviam quebrado o piso, afundaram um pouco na terra, fizeram uma "panela" e abriam um buraco na parede da cela que dava para a rua. A parede ela grossa, mas a construção da delegacia era velha e a umidade do solo havia amolecido a parede na sua base. Trabalhavam os tijolos antigos (enormes), cortando-os aos pouco com um pulsão pequeno de ferro tirado do concreto da pia e um porrete curto. O trabalho recomeçou e eles foram se revezando. O gordo sabia trabalhar, mas atrapalhava por não entender algumas coisas básicas. Acabou vazando o buraco para fora, antes do tempo. Ainda era cedo, deviam esperar a madrugada para abrir o reboco da parede do lado de fora, os tijolos já haviam sido retirados.
Um pouco mais tarde, a porta da carceragem se abriu e o carcereiro entrou novamente acompanhado por um homem velho que parecia ser investigador. Como eles estavam vigiando, conseguiram esconder o buraco há tempo. O investigador e o carcereiro olharam o xadrez, tentaram encarar os presos para sentir o grau de nervosismo deles. Perguntaram se estava acontecendo alguma coisa errada, já sabendo qual a resposta. Procuravam uma voz tremendo, olhos fugindo dos olhos deles, sinais de anormalidades. Tudo era possível, mas o medo deles seria uma tentativa de fuga; isso podia prejudicá-los. Foram de cela em cela e voltaram. Algo chamava a atenção deles, mas não ao ponto de abrir o xadrez à noite. À noite, com a delegacia vazia, eles temiam serem "tomados" de assalto pelos presos em processo de fuga. Voltaram para a carceragem "grilados".
Assim que fechou a porta, novamente o gordo inconveniente:
_ E agora?
_ E agora o que, seu bobalhão, vamos embora, porra! É só esperar acalmar um pouco e vazamos daqui!
_ Mas, mas...
_ Mas, mas o que? É isso mesmo.
_ E os policiais?
_ Que é que tem os policiais? Foram para a carceragem e vão dormir daqui a pouco, quando voltarem já teremos ido embora. Pode começar a cavar o emboço, disse o Carioca, que parecia ter alguma voz de comando no xadrez também.
O colchão é retirado novamente e o Gordo é colocado para concluir o trabalho. Ele trabalhava em construções antes de ser preso, embora fosse tão estabanado. Mas a desconfiança de que os policiais pudessem estar esperando do lado de fora começou a tomar conta de todos. Estavam com medo de tomar tiros quando aparecessem do lado de fora da prisão. Sabiam que os policiais estavam desconfiados , mas tinham que aproveitar a oportunidade. Já entrava um ventinho da liberdade pelo buraco, o medo e o entusiasmo se misturavam. Quem seria o primeiro a colocar a cabeça para fora? Carioca disse que ele não. Dunga idem. O risco era de tomar um tiro na cara. Alguém surgiu com o que pareceu a melhor das soluções: o Gordo. Ele nem tinha idéia do que estava sendo comentado. Era trouxa o bastante para ser convencido de que era um privilégio ir na frente dos outros. Sequer desconfiaria que estava sendo jogado no rio como "boi de piranha".
_ Ô Gordo, sai do buraco um pouco.
Ele saiu todo contente pensando que haviam reconhecido seu esforço e iriam revezá-lo. Aquele maior sorriso irritante, a cara e a roupa suja de terra, lá vem ele.
_ Gordo, você, como trabalhou mais que todos, merece e vai ter o privilégio de sair primeiro até que nós aqui. Você é nosso líder agora e vai ter mais chance que nós, vê se aproveita e não volta mais, viu? Você não serve para cumprir pena, é bom demais.
O sujeito, em sua ingenuidade, acreditou e sorriu mais ainda pensando haver conquistado a consideração dos mais velhos do xadrez, com sua disposição de acatar ordens. Estava todo feliz, os caras estavam gostando dele finalmente e iria fugir daquele inferno, nem pensava para onde iria. Só queria sair correndo dali, não importava para onde fosse. Era muito ruim aquilo, vivia com fome e sendo maltratado por todos.
Nem todos do xadrez fugiriam. Alguns tinham medo de arriscar e outros porque estavam para ir embora legalmente. Os que estavam no esquema começaram a se arrumar. Colocaram a roupa e se envolveram em sacos plásticos para a terra do buraco não sujar demasiadamente a roupa. Foram dando o que possuíam para os que ficariam e se preparando para o passo seguinte. Era preciso coragem. Ninguém sabia o que os esperava do outro lado do buraco. O Gordo era o único que parecia feliz, sem medos. Não sabia o que podia acontecer do outro lado da vida.
E chegou a hora. Dunga decidiu, a prisão estava no maior silêncio. Era madrugada e tudo indicava que o carcereiro havia adormecido. O Gordo, já devidamente vestido, abaixou e, em poucos minutos, abriu todo o buraco para a rua. Afoito, já foi embocando com tudo. Ficou apertado, sentiu apertar na cintura, fez força e foi mais um pouco. Depois colocou toda sua força em um arranque, sem medo que as pedras das bordas do túnel o machucassem. E foi então que entalou. Provavelmente fizeram barulho e de repente o Gordo viu três policiais militares se aproximando. Quis voltar, não conseguiu. Quis avisar os companheiros, não deu porque seu corpo estava como uma rolha, tapando o buraco literalmente.
Os policiais chegaram de armas nas mãos, prontos para atirar. Engatilharam na cara do Gordo e mandavam que ele voltasse para a cela, senão atirariam nele. Apavorado e já chorando, pedindo pelo amor de Deus pela sua vida, tentou voltar. Os presos de dentro da cela, sem entender o que acontecia, vendo o gordo ali entalado e tentando voltar, tentavam forçá-lo a sair. Cutucavam suas nádegas gordas com estiletes pontudos, o Gordo gritava a cada espetada. Os policiais sem entender, pisavam em sua cara e chutavam a parte de seu corpo do lado de fora para que ele entrasse. O Gordo gritou tanto que atraiu a vizinhança toda, e logo vieram viaturas da polícia e de reportagem.
Nisso, os presos decidiram puxar o Gordo para dentro, já que ele não passava, para desimpedir a passagem, sem saber o que acontecia do lado de fora. Os policiais, agora mais calmos, perceberam que o preso estava entalado, pois mesmo a poder de chutes e pontapés, ele não conseguia voltar para a cela, decidiram puxá-lo para fora. Os presos pelo lado de dentro puxando pelas pernas e os policiais militares do lado de fora puxando pelos braços, em sentido contrário. Nisso chegam emissoras de televisão que começam a filmar aquela cena inusitada. O Gordo já nem protestava mais, só berrava como um porco quando sendo morto. Ficou vermelho como um pimentão, parecia estar tendo um ataque do coração. Os presos só pararam de puxar o Gordo, quando os policiais entraram no pátio da prisão dizendo que a casa caiu. Tiraram eles da cela a pauladas e os colocaram um pouco em cada uma das outras celas.
O ajudante geral da Delegacia foi chamado às pressas e, pelo lado de dentro, foi alargando o buraco, até que os policiais, do lado de fora, pudessem puxar o Gordo. Foi levado direto para o hospital, estava bastante machucado. Seus dentes da frente foram quebrados, suas coxas e nádegas tinha furos e cortes profundos, estava todo machucado e sangrando na região da cintura. Mas ele continuava o bobo alegre de sempre: mesmo assim ferido queria saber se depois daquilo tudo iriam mandá-lo para casa. Os policiais ameaçavam dizendo que ele iria é para a Penitenciária, onde o filho chora e a mãe não vê. Ele estremecia, mas achava que não, eles cuidariam dele e o soltariam...
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Luiz Mendes
02/09/2014.