O Alemão que saiu de uma fria

por Caio Ferretti

A história de Rodger, que se envolveu com cocaína e caiu no submundo dos presídios do Rio

O plano de Rodger Klingler tinha tudo pra dar certo. Pelo menos ele achava que sim. Afinal, era véspera de Natal, os aeroportos estavam lotados, e nenhum agente da Polícia Federal ia perder tempo revistando as bagagens de todos os passageiros que estavam embarcando. Além do que, o negócio era extremamente lucrativo, valia a pena arriscar. Rodger não hesitou. Encheu o forro de uma jaqueta com 1 kg de cocaína comprada no Rio de Janeiro e fez as malas para voltar à Alemanha, sua terra natal, onde venderia tudo com lucro garantido.

Na época, dezembro de 1984, Rodger estava com 20 anos e era mais um gringo fissurado pelo Rio de Janeiro. Tinha como certa a idéia de um dia morar em Copacabana. Em sua terceira visita ao país, porém, o objetivo da viagem não era turismo, era negócio. Deu errado. Rodger foi descoberto quando estava prestes a embarcar para Alemanha e acabou conhecendo um Rio de Janeiro bem diferente: o das cadeias. Foram quase 5 anos (entre dezembro de 1984 e setembro de 1989) convivendo com clima sempre pesado dos presídios Água Santa, Galpão e Lemos de Brito.

Nesse período, Rodger passou por diversas rebeliões, presenciou incontáveis assassinatos, conheceu chefes do Comando Vermelho, do Terceiro Comando e sentiu a intensidade da guerra entre as facções, transou com travestis e revoltou-se com a corrupção policial. Sobreviveu a tudo para contar sua história no recém lançado livro “Memórias do Submundo – um alemão desce ao inferno no Rio de Janeiro”. Morando na Alemanha e proibido de entrar no Brasil, Rodger conversou por telefone com a Trip e, sem papas na língua, contou capítulos pesados de sua experiência.

"Sabe o que eu gostaria? Gostaria de ler meu livro nas penitenciarias. É um sonho meu. Ler algumas páginas na Água Santa, ou na Lemos de Brito. Voltar lá com o livro na mão e ler na frente de todo mundo."

Você acredita que seu livro pode virar filme?
Eu espero. Até entrei em contato com o José Padilha, gosto muito do trabalho dele. Temos uma coisa em comum, eu acho, porque nos filmes do Padilha ele dá voz aos fracos. Esse meu livro também, ele chama atenção às condições do sistema carcerário. Eu acompanho isso há vinte anos e nada mudou, ou até piorou. Acho que o Brasil não merece isso, esse combate contra o tráfico poderia ser feito com muito mais inteligência, porque só com violência não se resolve nada. Tratando os presos como animais, deixando morrer nas enfermarias por falta de antibiótico, você vai piorar as coisas.

E você conhece os filmes do Padilha?
Sim, conheço. Conheço aquele “Ônibus” [“Ônibus 174”], “Tropa de Elite”...

Como foi seu contato com ele?
Olha só, o contato foi feito através da revista Caros Amigos. Numa mesma edição saiu uma resenha do meu livro e uma entrevista com ele. Eu pedi à jornalista que fez a entrevista para passar meu livro pra ele, mas ainda estou aguardando uma resposta. Ainda não houve um contato pessoal.

No livro você conta que seu discurso em frente à juíza no dia do julgamento foi muito bom. O quanto isso te ajudou?
Isso é relativo. Se eu fosse com US$ 10.000 na mão eu não ficaria esse tempo todo preso, sairia após seis meses. Eu vi pessoas sendo presas com toneladas de cocaína e após três meses foram transferidos para Bangu, porque em Bangu conseguiam cadeia semi-aberta. Então, no Brasil, a questão é dinheiro, infelizmente. Eu não sei se minha pena foi justa. 20 anos depois eu te digo o seguinte: pra mim foi o melhor que podia acontecer, porque eu estava viciado na droga. Se eu não fosse preso não posso imaginar onde estaria agora.


Você se envolveu com a cocaína no Rio na década de 80. Você acha que era um negócio fácil de acontecer naquele tempo?
Facílimo. Bastam duas pessoas: uma que quer, outra que dá. Eu neguei muitas vezes, me ofereceram no início. Quando eu cheguei da Alemanha eu era muito contra as drogas. Mas várias vezes me ofereceram e uma das vezes não resisti e aí já era. Comigo foi assim.

Depois de sair da cadeia você usou cocaína de novo?
Não, que isso...

E voltou ao Brasil alguma vez?
Voltei a Curitiba uma vez, há uns cinco anos. Mas há um ano e meio tentei entrar de novo no Brasil, dessa vez por São Paulo, pra assinar meu contrato com a editora do livro, e não me deixaram entrar. A razão disso é que o sistema dos computadores nos aeroportos foi totalmente renovado e agora eles têm registros de até 50 anos atrás. E como eu fui expulso... Falaram: "Se você entrar no país você vai preso". Peguei o avião seguinte e voltei pra Alemanha. Foi surpresa pra mim.

Não existe um prazo para acabar essa restrição?
Eu fiz um pedido ao Ministério da Justiça há uns dois anos, foi confirmado o recebimento, mas você sabe, no Brasil, sem advogado, você espera a vida inteira pra receber uma resposta. Graças a Deus um jornalista paraibano gostou muito do meu livro e está me ajudando, tenho esperança de entrar no Brasil ainda este ano.

"A cadeia é um lugar fechado e você não tem pra onde fugir, tem que mostrar atitude ali dentro. Eu, por exemplo, preferia perder a minha vida do que ser a menina de um vagabundo."

Pra fazer o quê?
Sabe o que eu gostaria? Gostaria de ler meu livro nas penitenciarias. É um sonho meu. Ler algumas páginas na Água Santa, ou na Lemos de Brito. Voltar lá com o livro na mão e ler na frente de todo mundo.

Como você acha que seria recebido?
Com certeza bem, porque eu daria uma voz a eles, eu que estou lutando para que essa situação mude. Esses criminosos que não têm nada a ver com o Comando Vermelho ou com o Terceiro Comando sempre são envolvidos em guerras que eles não têm nada a ver.

Em algum momento você pensou em se aliar com alguma facção, achou que isso seria necessário pra sua sobrevivência?
Claro que recebi ofertas, mas sempre fui firme. Dizia: "Olha, eu não tenho nada a ver com essa política de vocês aqui. Sou um estrangeiro, não sei das coisas, quero fazer minha cadeia e não saber de porra nenhuma". E me deixaram em paz. Eu vi muitos gringos se envolverem com essas coisas e muitos não vivem mais. A cadeia é um lugar fechado e você não tem pra onde fugir, tem que mostrar atitude ali dentro. Eu, por exemplo, preferia perder a minha vida do que ser a menina de um vagabundo.

Ser o quê?
A mulher de um vagabundo, se você compreende o que eu quero dizer [gargalha].

E tentaram te fazer de menina?
Não. Uma vez houve uma coisa parecida. No Capão um cara chamado 43, porque tinha 43 anos de cadeia, falou pra mim que eu ia ter que pagar pela luz da cela. Eu disse: "Se ninguém paga, eu também não vou pagar. E se você vai me matar por isso, pode fazer agora". Em vez de perder minha personalidade eu prefiro morrer.

Dentro desse assunto de te fazerem menina tem a história do travesti. No livro você conta vários momentos íntimos de uma relação que teve com um travesti. Não te constrange?
[muitos risos] Eu sabia que você ia me perguntar isso [risos]. Olha, não me incomoda, não. Ela limpou minhas roupas, era doce comigo. Foi legal, porra [risos].

E você tem filhos hoje?
Tenho sim. Uma filha de 13 anos.

Ela leu o livro?
Não. Ela sabe que o pai foi preso por causa de cocaína, mas eu não quero que ela leia aquelas coisas aos 13 anos. Ela vai ler um dia, mas não agora. Acho que é um pouco jovem para isso.

Então você considera que algumas partes são pesadas para ela?
Sim, por exemplo isso que você falou do travesti [gargalha]. Ela vai perguntar: "Ô pai, o que é isso?"

Você acha que nos presídios brasileiros o detento se apega mais ao crime?
Claro, com toda certeza. Olha, Caio, os únicos momentos em que a cadeia não está sob tensão é quando as drogas entram. Quando entram, eu tô falando da maconha, da cocaína, todo mundo fica em paz. A coisa fica perigosa quando a cadeia está sem drogas.

Mas então é melhor que tenha drogas lá dentro?
Claro que não, mas com esse sistema que se encontra agora, tenho que dizer que é melhor dar a droga porque assim eles ficam calmos.

Então você considera a questão carcerária daqui ainda precária?
Até pior. É uma vergonha, né? Mas para que isso mude é preciso uma revolução. Acho que só uma nova geração pode resolver. Talvez seja melhor fechar todas as cadeias e liberar todos. Mas é claro que isso é uma fantasia. Eu só sei uma coisa: não se pode trancar gente nas cadeias e só aguardar do lado de fora, porque do lado de dentro o preso faz o que quer. Se um criminoso tem o dia inteiro pra pensar... Por exemplo, não quero dizer que na Alemanha é melhor, mas nesse sentido progredimos muito mais. Aqui você entra na cadeia e é obrigado a trabalhar cinco dias por semana - e recebe um dinheirinho por isso. Pelo menos assim você fica ocupado e não pensa em merda.

Porque você acha que conseguiu se salvar dos presídios brasileiros? Como gringo você era uma presa fácil, não?
Eu acho que tive sorte, vi muitos colegas meus morrerem à toa e comigo poderia ter acontecido a mesma coisa. Passei por muitas situações em que eu imaginava que minha hora estava chegando. Aliás, esses momentos são rotina, você se acostuma com a idéia de morrer a qualquer momento, porque quando tem a lombra [rebelião] tudo pode acontecer. Quando invade, a PM não sabe se você é amigo ou inimigo, gringo ou não gringo, atiram em qualquer coisa que se mexe.

Você ficou com algum trauma por conta dessas cenas?
Quando eu cheguei na Alemanha recebi um tratamento psicológico nos três primeiros meses. Eu tinha pesadelos, suava a noite toda... Mas como ainda era jovem, depois de seis meses minha rotina voltou ao normal.

Que tipos de pesadelos?
Eu via as cenas na minha cabeça. Via quando os presos atacavam a si mesmos cheios de facas, quando 20 animais atacavam outros 20 e não sobrava ninguém. Ou quando a polícia de choque entrava e atirava em todo mundo, via os mortos. Ou depois de uma lombra, a cadeia cheia de sangue, eles fazendo a faxina e todo aquele sangue correndo abaixo... Essa coisas se passavam na minha cabeça.

Dos três presídios que você passou aqui qual foi o mais assustador?
Cada presídio tinha um jeito especial, cada um tinha uma crueldade típica. O Lemos de Brito, por exemplo, era um complexo em guerra entre o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. Eu ficava na ala do Terceiro Comando, mas os presídios ficavam a uma distância de dez metros um do outro. Muitas vezes eles [os presidiários do Comando Vermelho] atiravam na gente. Se eu tivesse que escolher um pior seria o Lemos de Brito, porque o Comando Vermelho queria tomar o poder dessa ala em que eu estava.

"Olha, não me incomoda, não [o relacionamento com um travesti]. Ela limpou minhas roupas, era doce comigo. Foi legal, porra."

 

Você passou por muitas situações de corrupção policial?
Muitas. A maior foi quando eu estava numa sala da Polícia Federal [no aeroporto] e eles queriam saber de onde era a mercadoria. O delegado pegou o pacote e junto com os parceiros cheirou na minha frente a minha mercadoria. E depois da cheirada disse: "Boa mercadoria, gringo". Ele me dizia: "Se você me contar onde pegou essa mercadoria pega o próximo avião para Alemanha".

E você acreditava nisso?
Claro que não. Eu falei: "Então pode me prender". Ele não quis aceitar, bateram em mim, etc. Mas eles viram que eu não ia falar nada, e como sou estrangeiro eles têm que se responder por mim ao consulado alemão. Não podem bater tanto quanto batem em um brasileiro, porque eu vi brasileiros saindo da Federal literalmente quebrados, sem dente... Horrível.

O delegado te pediu dinheiro também?
Não, ele não tocou no assunto dinheiro porque só encontrou comigo US$ 1.200, que me roubou também. E eu fui pego com 1 kg de cocaína, mas a juíza me colocou só 500 gramas, porque o delegado desviou as outras 500 gramas. Até foi bom pra mim, porque 1 kg seria pior.

Você acha que esse livro, com as histórias que tem, pode passar uma imagem negativa do Brasil para os alemães?
De jeito nenhum. Olha só, em nenhum momento eu falo mal do Brasil. Eu só sou contra aquilo que você provavelmente também já sabe há muito tempo. Eu só falo no livro aquilo que muitos já pensam.

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