André Meyer transita entre controle absoluto e descontrole total para vencer as provações
André Meyer sempre transitou entre o controle absoluto e o descontrole total. viajante profissional, pioneiro da body art e da suspensão humana no brasil, ele encarou o abuso de drogas, a síndrome de pânico e três encontros com a morte. Mas soube usar sua experiência no underground para vencer a mais mainstream das provações: um reality show do SBT
“No fim do reality show, eu abracei meu concorrente, mas tirei um sarro: ‘Pô, cara, você não conseguiu ganhar do tiozinho aqui?’”
Nos últimos meses, André Meyer enfrenta uma situação bizarra quando anda pelas ruas de qualquer cidade brasileira. Do nada, desconhecidos começam a gargalhar na sua cara. A maioria das pessoas provavelmente reagiria com o clássico “Tá me achando com cara de palhaço?”, mas André apenas sorri e segue seu caminho. Ele sabe que, nesse caso, as gargalhadas são uma forma de reconhecimento, de reverência e talvez até de carma: estava apenas recebendo de volta o que ele havia oferecido aos outros.
No dia 23 de março, Meyer tornou-se o vencedor da segunda edição do reality show Solitários, do SBT. Ao longo de 20 dias, ele e outros oito candidatos ficaram confinados, cada um em um pequeno quarto, enfrentando provas de resistência física e psicológica que fazem Big Brother, A Fazenda ou No Limite parecerem gincana de quermesse.
Na final, Meyer, 41 anos, pioneiro do body piercing no Brasil, enfrentou Helio Yoshida, 23 anos, lutador de kung fu. A prova consistia em permanecer equilibrado sobre cordas pelo máximo de tempo possível; no começo, eram oito cordas; no fim, apenas uma. Depois de ficar mais de quatro horas pendurado, Meyer foi declarado vencedor. E levou o prêmio de R$ 50 mil.
Só uma coisa chamou mais atenção do que a força física e mental ou os dreadlocks e os piercings de Meyer: as gargalhadas que ele soltava nos momentos de maior tensão do programa, como se estivesse tomado pela pombagira. “Foi algo totalmente intuitivo”, ele conta um mês depois da final, no apartamento de seu padrasto, que usa como base em São Paulo. “Depois que acabou o programa é que fui pesquisar a terapia do riso e entendi como ela pode ser importante para combater a ansiedade.”
Meyer atribui sua vitória a dois fatores. Em primeiro lugar, à ashtanga vyniasa ioga, que ele praticava diariamente no confinamento. “Eu aproveitei o programa para divulgar para milhões de pessoas a cultura na qual eu mais acredito hoje e outros preceitos fundamentais para mim, como a meditação, o vegetarianismo, a defesa do meio ambiente.” Segundo, e não menos importante, ele diz que venceu pela experiência. “No fim do programa, eu abracei o Yoshida, dei boa sorte, mas tirei um sarrinho: ‘Pô, cara, você não conseguiu ganhar do tiozinho aqui?’,” conta. “Mas, falando sério, acho que ele ganharia se tivesse a minha idade.”
CARNE DE VACA
Experiência não falta mesmo a Meyer. Sobre ele, vale o clichê: viveu várias vidas – e algumas mortes – em uma. Filho de militar nascido em Porto Alegre, em 1969, mas criado na cultura do skate, do punk e da tatuagem no underground paulistano dos anos 80, Meyer ficou conhecido como o introdutor do body piercing e da body art no Brasil – práticas que importou de uma temporada em Londres no início da década de 90. Abriu estúdio na galeria Ouro Fino, na rua Augusta, e ajudou a transformar o espaço decadente em ponto disputado. Foi um dos responsáveis pela popularização das raves no Brasil (cultura que ele conheceu no berço, em Goa, Índia), fundou o primeiro clube de psytrance no país, produziu freak
shows, e promoveu festas do fetiche, entre muitas outras atividades.
Ao lado de Arthur Veríssimo, repórter excepcional da Trip, foi um dos desbravadores de certo universo oriental desconhecido para a maioria dos brasileiros, povoado por iogues, faquires, sadhus de braços eternamente levantados ou com a genitália desnuda e adornada. “Eu conheci o Arthur fugindo de bala numa balada de São Paulo nos anos 80. Ele é como um irmão mais velho para mim, mas já saí na porrada com ele. Se uma viagem sozinho pela Índia já é difícil, com o Arthur é muito mais.”
Na autobiografia, Lindo de doer (ed. Gaia, 332 págs., R$ 33,90), que será lançada neste maio, ele tenta resumir um pouco sua trajetória, marcada pela “curiosidade por formas alternativas de viver”: “Eu me tornei um profissional de uma atividade que não existia no país. Criei uma forma de me sustentar através da cultura underground, nunca apoiada por nossa sociedade nem por minha família. Não existia curso ou formação acadêmica de piercer, DJ, promoter, designer, estilista ou de várias outras atividades que me sustentaram nessas décadas de extrema mudança comportamental. Funções que agora já são parte das novas gerações, que têm recuperado atividades primitivas e importantes nas sociedades tribais. Exerci ofícios que se tornaram profissão somente no século 21”.
Com esse currículo lotado, Meyer ainda é lembrado por muitas pessoas por conta de um evento único em sua vida, criado especialmente para ser registrado por esta revista, em Oklahoma (EUA), 1999: uma até então inédita (para um brasileiro) experiência de suspensão humana. Na capa, havia a seguinte chamada: “Megapiercing: André, 20 minutos pendurado pela pele como carne no açougue”. Dentro, a reportagem vinha com um lacre e, na primeira página, toda preta, um aviso: “Advertência. As páginas a seguir contêm imagens fortes de perfuração humana, que poderão causar mal-estar e náuseas. Se você não se considera preparado para suportar a dor, evite romper o lacre”. Meyer aparecia nas fotos suspenso por oito ganchos presos em sua pele e ainda segurando em seus braços o americano Alan Faulkner, do grupo Traumatic Stress Discipline, que organizou a sessão.
“Não existia curso ou formação acadêmica de piercer, DJ, promoter e várias atividades que me sustentaram”
“Hoje a suspensão humana virou carne de vaca. Tem até na Virada Cultural. Mas na época foi um choque. Eu recebia cartas de evangélicos me ameaçando por desencaminhar a juventude brasileira. Mas também foi bom para divulgar meu trabalho, fui parar no Luciano Huck, no Serginho Groisman. Eu quis me submeter a esse extremo para minimizar o impacto, para a sociedade, de uma perfuração corriqueira, de um piercing na língua ou no pau, que ainda sofriam muita rejeição na época.”
Ele nunca voltaria a se submeter à suspensão. As cicatrizes desapareceram com o tempo, mas ele acredita que a experiência ficou impregnada em sua memória e, 12 anos mais tarde, o ajudou a tirar de letra algumas das provas de Solitários, como uma em que ficou deitado em uma cama de pregos como um faquir. O que para os outros candidatos era uma tortura para ele eram cócegas.
HELLO KITTY
Olhando para trás, Meyer enxerga sua trajetória como uma alternância entre o controle total e o absoluto descontrole. Em meio a fases de sucesso como piercer e outras atividades, a fantásticas viagens estéticas, eróticas e esotéricas, houve momentos de dureza, de abuso de drogas e de encontros com a morte. Meyer quase sucumbiu à fome na Índia, a uma intoxicação alimentar no Tibete e a um acidente de moto em São Paulo.
O equilíbrio entre extremos foi encontrado na ioga, primeiro na meditação e nos exercícios de respiração, depois nos asanas do ashtanga. “O começo da prática foi como uma desintoxicação. Eu senti a abstinência das substâncias que usei durante anos, de carne e álcool a haxixe e ecstasy. Tive síndrome do pânico, entrei em depressão. Mas com o tempo as coisas foram entrando nos eixos.”
Meyer vê o lançamento da autobiografia (escrita com a ajuda do jornalista Tomás Chiaverini) como o encerramento de um ciclo na sua vida. Ele pretende deixar de ser piercer, seu principal trabalho nos últimos 20 anos, e dar apenas workshops sobre a atividade. Quer atuar mais como DJ (e fazer a trilha sonora de aulas de ioga, por exemplo) e promotor de eventos. Hoje Meyer vive em Florianópolis, entre a lagoa da Conceição e a praia Mole, disposto a levar uma vida “mais solar”. No dia da entrevista, ele estava se preparando para a primeira surf trip de sua vida, para deslizar pelas quilométricas esquerdas de Pacasmayo.
“O começo da ioga foi como uma desintoxicação. senti a abstinência das substâncias que usei por anos”
Três anos atrás, Meyer viveu a maior epifania de sua vida: ele participou do parto de sua filha, Tainá, uma experiência mais intensa que a gangorra sadomasoquista da suspensão humana ou o isolamento público de um reality show. Tainá já dá sinais de que deve seguir os passos de destemor do pai: ao pular de uma mesa em sua escola, ela quebrou a perna pela primeira vez em abril. Meyer, que foi expulso de casa por sua mãe por conta de seus excessos de juventude, preferiu não furar a orelha da filha até agora. “Ela já me pediu um brinco da Hello Kitty. Mas achei melhor ela ter mais idade para decidir se quer mesmo se perfurar. Pode ser um caminho sem volta.”
Agradecimento Mario Kamia