O que há em comum entre o World Trade Center e os vizinhos de Silvio Santos?
Vendo televisão nos últimos meses do ano passado lembrei muito de uma peça de teatro que eu li na adolescência, Huis Clos [em português, Entre Quatro Paredes], escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre. Nela, os personagens aparecem subitamente trancados numa sala onde não há nada. Ninguém tem a menor idéia do que está fazendo ali. Ao longo da história, os personagens tentam entender sua condição. E o que acontece é basicamente aquilo que sempre acontece quando se obriga homens ou ratos a viverem entre quatro paredes. Muito atrito, muito conflito.
No final, quando a convivência já está quase impossível, um dos personagens tem um lampejo e descobre que todos estão no inferno. E não há nem enxofre, nem fogo, nem mesmo um diabo. Só há outras pessoas. 'O inferno são os outros', diz ele. Lembrei disso percebendo que, no meio do século passado, Sartre chegou à mesma conclusão que Mari Alexandre.
Para o espectador brasileiro, as duas grandes estrelas da TV de 2001 foram imóveis. O World Trade Center e a Casa dos Artistas. Dois imóveis bem diferentes. Um tinha mais de cem andares. A outra é quase térrea. Um se projetava do centro para o topo do mundo. A outra fica aqui na esquina. Um apareceu desabando. A outra foi reformada para aparecer. Um foi alvo de um plano para atrair as câmeras. A outra foi alvo de um plano para esconder as câmeras. Um foi cenário de uma situação tão real que parecia forjada. A outra foi palco de uma situação forjada para parecer real.
Apesar das várias diferenças na superfície, esses dois campeões de audiência reafirmaram em diversos tons a mesma mensagem, justamente a de que 'o inferno são os outros'.
No episódio do WTC, o grande satã global veio voando de fora, de outra cultura, quase que de outro mundo. Na CDA, o diabinho local dormia no quarto ao lado. Ainda assim, a sensação que eles geraram é muito parecida. Num mundo hipermidiatizado, não há mais ilha de sossego, não há porto seguro. Se as câmeras não vão até o inferno, o inferno vai às câmeras.
Fofoca: Avó das mídias
Estou exagerando um pouquinho, é claro. Afinal, aqui nós também estamos na mídia, este espaço de exageros. Além de não poder negar que como qualquer espectador tive uma curiosidade mórbida pelas imagens dos horrorosos atentados de NY, não tenho a menor vergonha de dizer que adorei assistir a muitos episódios da Casa dos Artistas.
É uma aula de diversão popular e de gramática televisiva. É um programa que lida direta e explicitamente com a avó de todas as mídias, a fofoca. E que, além de entreter hipnoticamente, deixa escapar dicas preciosas sobre a linguagem intencional de um show televisivo. São toques que vão desde o posicionamento das câmeras até referências didáticas sobre a necessidade de editar a vida real e transformá-la numa outra realidade muito mais estereotipada.
Em vários momentos do espetáculo, os participantes diziam frases reveladoras como 'não adianta você querer vir com papo-cabeça, porque os caras vão sempre mostrar seu lado de gostosa burra' ou 'o Silvio nunca vai querer tirar o Frota porque toda novela precisa de um vilão' ou 'não adianta eu rir que eles só vão me mostrar chorando'.
Para o grande público, a metalinguagem fácil da Casa dos Artistas foi muito instrutiva, exatamente o oposto daquilo que aconteceu depois dos atentados de 11 de setembro, quando a máquina militar americana fez tudo o que pôde para deixar muitos acontecimentos reais longe das câmeras.
As duas estrelas imóveis da TV de 2001 ajudaram a deixar ainda mais claro que a mídia é um espaço bélico. Tanto as imagens do WTC quanto às da CDA configuram um palco virtual perfeito para um teatro de operações e exercícios de guerra. Três personagens da vida real saíram ganhando pesado, até agora.
George Bush ganhou uma conjuntura internacional de sonho para continuar exercendo seu unilateralismo direitista na guerra da globalização.
Osama bin Laden não precisou nem morrer para realizar o grande sonho de se transformar no supremo mártir da guerra santa do fundamentalismo islâmico.
E aqui, em nível local, Silvio Santos viu materializado como nunca o sonho de ultrapassar a Rede Globo na guerra da audiência.
Não preciso dizer o que acho de Bush e Bin Laden, dois líderes de correntes ideológicas obtusas, feitas uma para a outra. Sobre o Silvio Santos, quero me estender um pouquinho mais. Depois da Casa dos Artistas, as conversas de salão foram inundadas por clichês do gênero 'eu tiro o meu chapéu para este homem' ou 'é um vencedor' ou 'agora ele acaba de vez com a Globo'.
Como diria o José Simão, ai que preguiça. Se nós estivéssemos na revista Exame, eu também elogiaria o SS. É um grande empresário, tudo bem. Aqui na TRIP, convém não esquecer que o nosso 'vencedor' sempre fez sua cama explorando as camadas mais tacanhas da vida humana ou simplesmente importando modelos estrangeiros de entretenimento barato, como novelas mexicanas ou reality-shows norte-americanos.
Quase nada além disso. Não vou nem entrar no mérito do suposto plágio da Casa dos Artistas, que está sub judice. O fato é que nunca houve no SBT um esforço sustentado para criar alguma qualidade. Se alguma contribuição foi nesse sentido, ela certamente foi não intencional.
É bem diferente da postura da Globo que, em contraponto à sua inegável arrogância e histórica tendência à manipulação, tem uma política contínua de criar e exportar bons produtos de cultura de massa. Quem há de negar que foi a Globo que levou aos quatro cantos do Brasil e do mundo o talento solar de nomes como Guel Arraes, Luis Fernando Carvalho, Pedro Cardoso e Regina Casé?
Ainda que nem de longe imaculada, é uma postura bem diversa daquela do SBT, que sempre pautou sua expansão com um único lema bordado em sua bandeira: 'Topa tudo por Dinheiro'.
Baú da infelicidade
Mesmo gostando de assistir à Casa dos Artistas ou ao Show do Milhão, não creio nesta história ingênua em que um David de Niterói vence o Golias do Jardim Botânico. Não me comove este falso mito do selfmademan do Baú, que vai destruir o Big Brother Global.
Acreditar nessa balela é quase como achar que Osama bin Laden iria construir um mundo melhor destruindo o império norte-americano. 'Peraí, você está exagerando de novo. E não dá para negar que o SS é, pelo menos, um ótimo comunicador', me diria algum fã renitente. Claro, ele é um ótimo comunicador. Mas de um tipo de comunicação caretésima em que o apresentador de TV não passa de um vendedor turbinado das lojas Tamakavy. Um tipo de comunicação que só faz reiterar a visão sucessocêntrica do mundo que impera nas últimas duas décadas, ou pelo menos que imperou até 11 de setembro.
Saudosos os tempos em que Chacrinha era a sombra luminosa de SS e enchia as telas com seu dadaísmo tropical. É triste notar que o Velho Guerreiro não tenha deixado um só herdeiro legítimo nas telas brasileiras e que os filhotes do SS hoje pululem, vendendo produtos e pessoas.
E não é que eu esteja defendendo um banimento Taleban para o estilo Silvio Santos na TV. Apenas que ele fique em seu devido e limitado lugar. Não podemos aceitar como modelo vitorioso de entretenimento um homem cuja principal reflexão cultural é 'quanto vale o show?'.
Assim, ficaria inevitável que a TV, que deve ser um espaço múltiplo de expressão, se transformasse de vez num camelódromo eletrônico. É por isso que, além do Sartre, eu também lembrei muito de um professor de cursinho que, apontando a tabela periódica, sempre perguntava: 'Por que o Silvio é o maior químico do Brasil?'. E ele mesmo respondia: 'Porque ele conseguiu transformar o domingo em merda'. Espero que a façanha não se estenda aos outros dias da semana.
Direito de resposta
O colunista reponde às críticas dos leitores no fórum abaixo
Em todo coluna que escrevo na Trip, recebo vários emails. Eles variam muito de nível.. Vêm discordâncias construtivas, agradecimentos, pedidos de estágio, críticas mais amargas, votos de admiração e, também, sempre em minoria, mensagens de baixo calão. Desta vez o bando da quinta categoria se excedeu.
Isso aconteceu com certeza porque eu fiz uma crítica contundente ao seu líder máximo, o chefe da baixaria de massas nacional, ele mesmo, o patrão do Ratinho, o criador do 'Topa tudo por dinheiro'. Costumo ignorar as manifestações desse pessoal. Mas o volume de boçalidades emitido por eles desta vez foi tão alto que eu ouvi. E olha que a frequência da ignorância não faz parte do meu dial.
Mas desta vez foi tanta gente junta que, infelizmente, eu ouvi sim uma lamúria simiesca, um mantra infeliz e ansioso que aparentemente tentava me xingar. Atrás dos impropérios rasos e sem imaginação, baboseiras do tipo 'bundinha', 'bichinha', 'borboletinha', eu vislumbrei suas verdadeiras intenções.
Como são regidos pela idéia do 'quanto pior, melhor', eles clamam por uma resposta rasteira. O uga uga autodestrutivo deseja uma resposta dura. Eles pedem que alguém os agrida, como numa tarde de domingo no SBT. Fica claro pelo nível das, hum, opiniões, que eles, macacos de auditório da baixaria nacional, querem uma resposta em mesmo nível.
Fica óbvio que os súditos do Sílvio, neste silvo coletivo, estão apenas implorando para apanhar. E como estou sempre a serviço do leitor, vou responder aos anseios deles. Mas quero antes deixar claro mais uma vez que esta mensagem se dirige apenas à turma do fundão, do fundo do poço. Tenho certeza de que os grunhidos emitidos lá em baixo vêm de uma minoria barulhenta, de uma claque desinformada de jovens fundamentalistas do espetáculo que botou as manguinhas de fora.
Do outro lado, a todos aqueles que expressaram suas críticas com respeito e inteligência, a todos aqueles que concordaram comigo ou ainda a todos aqueles que preferiram não colocar suas opiniões ao lado de tanto baixo nível, vai meu cordial abraço. Aos outros, vai a resposta. Com uma linguagem bem simples, para que eles entendam.
1-'Leitor de Sartre na adolescência'
Eu realmente não devia ter dito que li Huis Clos na adolescência. Soa cabotino e provocativo para um ouvido complexado. Não era a intenção. Só quis dizer que li o livro faz tempo e me lembrei dele vendo a Casa dos Artistas. Mas a reação irada revela, além do preconceito, o desconhecimento de sempre.
Se dessem um pulo até a livraria mais próxima, eles perceberiam que Huis Clos (Entre Quatro Paredes), apesar de escrita pelo Sartre, é uma peça facílima, escrita numa linguagem que tem poucas palavras a mais que o vocabulário da própria Mari Alexandre. Não precisa ser nenhum Harold Bloom pra entender.
2- 'O Ataque Vingativo'
Na cabeça espaçosa e arejada deste pessoal, eu sou uma espécie de advogado da Globo. Teve um aí que até disse que eu estava atrás de um convite para trabalhar na emissora, coisa que eu venho recusando quase que anualmente desde 1991. É óbvio que eu também acho que a Globo tem zilhões de defeitos e eu poderia dedicar dez colunas a criticá-los. Não o faço porque durante três décadas, centenas e centenas de artigos - meus inclusive - já o fizeram.
Neste momento da história da TV, o ataque vingativo à Globo pode dar força a um adversário muito pior, a baixaria. Prefiro deixar esta função para os que cultuam o óbvio. Além disso, quem realmente leu a coluna acima percebeu que eu também chamei literalmente a Globo de 'arrogante' e 'manipuladora'. Não são exatamente as palavras certas para quem está pedindo emprego.
Mas o que importa é que, diferente do bloco monolítico controlado a mão de ferro pelo SS, a emissora do Jardim Botânico tem várias facetas e facções, que inclusive concorrem entre elas. Algumas destas facções acreditam e já provaram várias vezes que é possível produzir cultura de massas com qualidade.
Numa eventual vitória do padrão SS, elas serão as primeiras vítimas. A Globo em si, sobreviveria e bem. Só que bem pior, em qualidade, como demonstram todas as manobras que fez para responder aos ataques do SBT.
3- 'Qualidade na Globo e SBT'
Quem tem mais de dois neurônios entendeu que o objeto da minha defesa não é a Globo, mas a qualidade dos programas. Se na atual programação do SBT eu enxergasse alguma intenção de produzir qualidade, não hesitaria em elogiar, como aliás já elogiei a própria Casa dos Artistas.
A grande diferença entre a Globo e o SBT é que na Globo a qualidade e originalidade intencional da programação é uma minoria. Mas no SBT ela é uma exceção rara. Em toda história da emissora da Vila Guilherme, eu só lembro de dois nomes (nem programas): Jô Soares e Bóris Casoy.
Foram inclusive muito mais tentativas frustradas de agradar o mercado publicitário do que um investimento sustentado em aumentar o nível da programação. Tanto que nem estão mais lá. Na Globo, eu poderia encher algumas páginas mas só vou citar alguns aleatoriamente: Programa Legal, Brasil Legal, Casseta&Planeta, O Auto da Compadecida, A Invenção do Brasil, Agosto, Grande Sertão: Veredas, Os Normais, TV Pirata, Brava Gente, Malu Mulher etc, além do canal Futura, do GNT e mesmo de várias novelas como Gabriela, Vale Tudo e as Filhas da Mãe.
Claro que quando elogio estas produções, faço dentro dos parâmetros da cultura de massas. Dentro destes parâmetros são programas excelentes. E são dezenas e dezenas. E não me refiro ao 'padrão Globo de qualidade' que pode ser uma idéia tão careta quanto o estilo SS de comunicação. Me refiro diretamente ao talento criativo de tanta gente a quem a Globo já deu voz.
Citei quatro na coluna acima, mas poderia ter falado em dezenas e dezenas de nomes na história da emissora, de Nelson Rodrigues Jorge Furtado, de Oduvaldo Viana Filho a Hermano Viana, de Fernanda Montenegro a Fernanda Torres. Quem eu poderia citar no SBT de mesmo peso? É claro também que a Globo é também a emissora que elegeu o Collor, que exibe Malhação, Fantástico, No Limite e outras porcarias.
Preciso ser a milionésima pessoa a lembrar disso? Mas qual a vantagem de substituir o Collor pelo Maluf de quem o SBT vem fazendo uma propaganda constante? Ou de substituí-lo pelo próprio SS, de quem vira e mexe lembram a candidatura? E qual a vantagem de substituir Malhação pela Maria do Bairro, ou pelo Ratinho, ou pelo Gugú, ou por qualquer outro do formidável cast do SBT?
Antes de festejar a derrota do monopólio Global, é preciso pensar no que o está derrotando. Se o desafiante ao trono fosse a TV Cultura eu estaria batendo palmas. Infelizmente, o desafiante é algo que tem mostrado absolutamente nada a acrescentar, só a subtrair.
4- 'Qualidades da Casa dos Artistas'
Graças a uma conjunção de fatores inesperados, além de uma direção hiper competente, a Casa dos Artistas teve momentos de altíssima qualidade. É verdade que para fugir à acusação de plágio, SS substituiu as pessoas comuns de Big Brother pelas sub-celebridades de plantão. Quem vê nisso um 'toque de mestre' deve achar também que o Otávio Mesquita e o Athayde Patrese são gênios da comunicação.
A maior parte dos programas nacionais de TV está infestado por estas mesmas sub-celebridades. Não há genialidade nenhuma em colocá-las também na Casa inventada pelos holandeses do Big Brother. O que há é apenas uma esperteza de mercado que nada têm a ver com os bons momentos que eu vejo no programa e que elogio na coluna acima. São momentos que independem da intervenção do 'mestre'.
A única vantagem direta do SS neste caso, é no domingo pelo fato dele ser melhor vendedor e manipulador que a Marisa Orth e o Pedro Bial. Neste sentido, é bem melhor comunicador.
5- 'Produto Exportação'
Tem leitor aqui em baixo se achando de uma ironia finíssima em dizer que eu defendo um 'produto exportação'. Puxa, vocês descobriram meu lado Sargentelli. Parabéns. Olha, dá preguiça, mas vou tentar explicar a estas mentes silvestres qual é a importância de se exportar produtos de entretenimento popular.
A pessoa precisa estar muito enterrada em alguma esquina do Itaim Bibi para não perceber que estamos vivendo uma guerra mundial cultural em que a potência hegemônica, os EUA, bombardeia planejadamente os países periféricos com seus bons e maus programas de entretenimento.
Vários países já tomaram providências legais para se proteger deste ataque, valorizando a produção nacional. Entre eles estão a França, a Alemanha, a Espanha, o Irã e muitos outros.
O Brasil, com a retomada do cinema, também aponta para este caminho. Na outra ponta, já faz tempo que a Globo vem produzindo e exportando entretenimento popular. Bilhões de pessoas assistem às novelas e minisséries, programas brasileiros, bons ou ruins, como os americanos, mas sempre saídos de dentro de cabeças brasileiras.
Por mais superiores que vocês possam se achar a estes programas, convém não esquecer que junto com eles vão canções de gente como Caetano Veloso, Dorival Caymmi ou Paralamas, além do talento de incontáveis atores brasileiros. Precisa ser muito rastaquera para não perceber que numa época de globalização de mão única, a preservação e divulgação das identidades nacionais são fundamentais.
Não conheço nenhuma emissora internacional que tenha comprado os direitos de exibição do 'Show do Milhão' , do Topa Tudo por Dinheiro' ou da 'Dança da Galinha Azul' do SBT, inclusive por que quando compram, fazem isso direto com os grandes gênios que inventaram estes formatos em outros países. O SBT é tão ruim, tão ruim, que a maioria das porcarias que exibe nem é inventada aqui. Além de não exportar nada, de não fazer absolutamente nada pela cultura do país, é especialista em importar o que existe de pior.
6- 'Por fim...'
A única coisa boa que eu vejo na gritaria que esta coluna provocou é uma vontade de discordar daquilo que é dito na mídia. Afinal, se a mídia tem hoje o virtual monopólio da crítica, ela acaba isenta das críticas. Pena, que tantos tenham se manifestado com um nível de linguagem tão baixo quanto as opiniões que defendem.
Se gasto este tempo na resposta, é em respeito aos outros leitores, aqueles que escreveram aqui ou me enviaram diretamente inúmeros emails expressando opiniões que aceitam complexidades, que vivem contradições.
Muito diferentes do maniqueísmo chinfrim dos macacos de auditório que acreditam que a vida é uma pelada entre o Bem e o Mal, a CDA contra o BBB, o Silvio contra a Globo e, pior, que acreditam que esta pelada pode ter um vencedor.