Luiz Antônio Simas: Bato tambor, logo existo

Nathalia Zaccaro
david carneiro

por Nathalia Zaccaro
david carneiro

O pensador das ruas e encruzilhadas defende a descolonização do pensamento, a essência da brasilidade e trava parcerias com D2, Teresa Cristina e outras figuras

Primeiro carioca de uma família nordestina, o historiador Luiz Antônio Simas estuda a cultura de rua do Brasil. Carnaval, botequim, futebol, terreiros, rodas de samba. Ele é também compositor, tuiteiro, podcaster e pensador que influencia a cultura popular contemporânea. Esteve presente no último disco de Marcelo D2, no documentário Fevereiros, sobre Maria Bethânia, nos novos trabalhos das cantoras Fabiana Cozza e Jéssica Ellen, entre tantas outras. O corpo encantado das ruas, mais recente de seus 20 livros publicados, foi um dos finalistas do prêmio Jabuti. "Meu trabalho vive numa encruzilhada entre história, literatura, canção popular e poesia", explica.

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"A história que eu estudo é sobre o cotidiano. Eu não sou um historiador dos grandes acontecimentos, dos grandes personagens. Eu me interesso pela história miúda. A história que está aqui na minha esquina. O coroa que tá jogando sueca aqui na rua, ele é um agente da minha história", diz o morador na zona norte do Rio de Janeiro. 

Em tempos de isolamento social e autoritarismo, o historiador propõe que disputemos os espaços públicos e simbólicos em defesa da brasilidade e da democracia. "As culturas de rua estão sob ataque sistemático. A gente tem hoje um governo que opera no campo simbólico colonial, arrogante, racista, heteropatriarcal e que desqualifica os saberes que não são eurocêntricos."

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Trip. Como você imagina que será nosso retorno às ruas?

Luiz Antônio Simas. O que nos espera é uma guerra que pressupõe armas não convencionais. Estou falando de samba, de tambor, de ginga, de praça, de botequim. Eu estou falando de cotidiano. Não sou um historiador dos grandes acontecimentos, dos grandes personagens. Eu me interesso pela história miúda, que está na minha esquina. O coroa que tá jogando sueca aqui na rua é um agente da minha história. Para mim, ele é mais importante que Napoleão Bonaparte.

Você sempre foi um cara conhecido no universo acadêmico e também no samba, mas sua influência tem se expandido. Por quê? As culturas de rua estão sob ataque sistemático. É um ataque à cidade entendida como ponto de encontro em nome da cidade entendida como ponto de passagem de mercadorias. Como tenho um trabalho de longa data sobre isso, ele acaba se destacando neste contexto. A gente tem hoje um governo que opera no campo simbólico colonial, arrogante, racista, heteropatriarcal e que desqualifica os saberes que não são eurocêntricos. Eu proponho que a gente dispute esse território. A minha preocupação é discutir o Brasil. Acho que essa reflexão tem que beber na fonte do que nós somos. Me parece que existe um Brasil oficial institucional que é inimigo radical da brasilidade, entendida como conjunto de modos de inventar a vida que nos caracteriza. Minha intenção é construir um pensamento brasileiro articulado ao presente, à disputa pela rua, pela praça, pelo campo de futebol, pelo terreiro.

Você fala muito sobre a terreirização dos territórios. O que isso quer dizer? Eu não encaro terreiro como espaço fixo de rito religioso. Ele pode até ser isso, mas vai além, é um espaço praticado na dimensão do encantamento do mundo. A Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro,  é uma avenida inóspita, feia, não tem árvores, é um espaço urbano desencantado, um território funcional. Mas quando uma escola de samba se prepara para entrar na avenida, o cavaco dá um acorde, o repique chama a bateria e o desfile começa, você terreirizou aquele espaço, ele foi praticado numa dimensão de encantamento do mundo. O primeiro terreiro é o corpo, encantar a vida começa fundamentalmente pelo encantamento do corpo. Quando começa uma roda de samba numa esquina, quando alguém cospe uma cachaça pro santo, quando um corpo dança soberanamente, você tá terreirizando um espaço e o seu próprio corpo. E a gente terreiriza a cidade.

Outro conceito central é o de encruzilhada. O que ele significa? As pessoas às vezes confundem encruzilhada com labirinto. Porque o labirinto é onde você não sabe por onde sair. E a encruzilhada é um ponto de chegada, tem uma dimensão de transcendência, está ligada à ideia do encontro, do convívio das diferenças. É a possibilidade de você entender que não existe um único caminho, que os caminhos são mais amplos do que a gente imagina. É um local em que a diferença convive. O ser encruzilhado é aquele ser disponível para conhecer o outro, para conhecer a beleza de outras culturas que não são necessariamente a dele. Então a encruzilhada é o lugar da disponibilidade para que as coisas aconteçam e as pessoas se encontrem. E a vida se encante. É absolutamente fundamental. E o Brasil é um país de encruzilhada. É um país encruzilhado por saberes de floresta, por saberes de praias, por saberes do asfalto. As coisas se cruzam e vai se constituindo a cultura. Não precisamos ser eurocentrados, como se filosofia fosse algo produzido exclusivamente pela Europa. Como se a Europa fosse o umbigo do mundo e nós meras ramificações desse centralidade. Penso, logo existo. Sim, evidentemente. Mas ouço, logo existo. Bato tambor, logo existo. Eu vibro, logo existo. Eu jogo bola, logo existo. Eu brinco, logo existo. 

Falando em tambor, como rolou sua parceria com Marcelo D2? Foi interessante porque o D2 me deu um toque perguntando se eu não queria participar de uma série de lives que ele estava fazendo.  Aí comecei a falar de tambor com ele e contei, da minha maneira, um dos mitos da criação do tambor na cultura do Congo e de Angola. Ele achou aquilo fabuloso e me chamou para escrever um texto e fazer uma música. Ele fez uma melodia, muito ritmada, muito puxada, e chamou o Criolo para gravar. O Criolo gravou de uma maneira surpreendente. Ficou muito bonito. 

E a participação no documentário Fevereiros, da Bethânia? Eu fui consultor do documentário, que foi sobre o desfile da Mangueira. É sobre a fé dela e a fé do brasileiro. O diretor me chamou para fazer uma consultoria de conteúdo e eu dei uma entrevista pro filme. Entre Caetano e a turma toda, eu apareço ali falando [risos].

Você também frequentou as famosas lives de Teresa Cristina... A Teresa é minha amiga há muito tempo, há 20 anos. A gente se conheceu na Lapa, quando ela estava começando a cantar no Semente. Ela me chamou para uma live de samba-enredo e outra sobre Exu. Eu sou compositor de 3 músicas da Fabiana Cozza, e ela me chamou pra essa live do lançamento do disco dela também.

Você é conhecido no samba, é músico e compositor. De onde veio essa conexão?
Sou jurado do estandarte de ouro, minha ligação com o samba veio da família. Meu tio teve ala na Mangueira, foi presidente de bloco carnavalesco, minha mãe desfilava. Vim de uma família que nunca passou Carnaval fora do Rio de Janeiro. Uma família que escutava muito samba e muito Luiz Gonzaga. Sou apaixonado por escola de samba desde garoto, um absoluto apaixonado. Igual na macumba. Minha família sempre transitou e construiu sociabilidade em torno do samba e do terreiro.

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O que mudou no Carnaval desde essa época? As escolas de samba entraram numa crise muito séria. Foram perdendo uma característica que é a de construção de sociabilidade. Algumas escolas de samba hoje só existem porque desfilam, enquanto a escola de samba desfila porque existe. Ela é uma instituição de sociabilidade, de criação de rede de proteção social. E, ao mesmo tempo, de produção de beleza, de arte. E as escolas de samba foram se desconectando muito de suas comunidades. Começaram a sair de um espaço da cultura para um espaço raso do espetáculo e do turismo. Acho que as pessoas confundem muito um evento de cultura com a cultura do evento. Isso é decisivo pra mim. A cultura do evento não é orgânica, não cria raízes. O evento de cultura tem uma ligação com a tradição, com a sociabilidade. Mas hoje tem muita gente dentro de escola de samba com preocupação de recuperar esses laços. 

As religiões afro-brasileiras são centrais em seus estudos. O que ainda precisa mudar na maneira como a sociedade olha para essa cultura? Quando a gente pensa umbanda, candomblé e jurema, temos que ter muito cuidado. Sinto que tem muita gente que se manifesta até com uma certa simpatia, mas essa simpatia é um tanto pitoresca. Digamos que um tanto folclórica. Quando na verdade é fundamental reconhecer os terreiros como universos sofisticados de saberes. A gente tem que conversar com a criançada sobre arte indígena, arte africana, afro-brasileira, mas não por conta de uma reparação histórica, mas reconhecendo o manancial de produção de saberes, de arte, de beleza que não devem nada a qualquer cultura, a qualquer outra filosofia. Às vezes sinto que há uma certa simpatia pitoresca demais, é como se a gente estivesse participando de uma experiência inusitada, curiosa. Mas nós estamos falando de um complexo de produção de civilização contemporâneo e ancestral. As pessoas confundem muito o ancestral com o antigo. O ancestral é aquilo que faz sentido para o presente e fará sentido no futuro. É a isso que acho que temos que estar atentos. Evidente que essa simpatia pitoresca é melhor que o horror e a barbárie do racismo religioso, mas temos que dar um passo além para o reconhecimento do potencial civilizatório de altíssima voltagem que envolve esses saberes.

A figura da pomba-gira é frequentemente alvo de preconceitos. O que ela significa pra você? A pomba-gira traz a força da corporeidade da mulher. Aquela que não é domada, não é domesticada por uma lógica em que o corpo é submetido exclusivamente à ordem reprodutiva ou para servir à virilidade do homem. A pomba-gira nos surpreende e nos coloca numa posição de desconforto. Em uma civilização erguida em nome de um heteropatriarcalismo branco, essas pombas operam na dimensão da cura do corpo, é o corpo que cura pela experiência da liberdade da beleza. Nesse sentido, é buscar o protagonismo do corpo da mulher, e isso assombra. A sensualidade e a libido da pomba-gira incomodam muito. A gente tá domesticado numa dimensão que demoniza o corpo da mulher. E a pomba-gira vem transgredir tudo isso propondo uma experiência radical de liberdade ligada à soberania do  corpo. 

Qual o impacto da ascensão das igrejas evangélicas na maneira como a sociedade trata a cultura afro? Reforça a guerra colonial. Que é a cultura de ataque a esses saberes. Mas acho importante ressaltar que o segmento evangélico brasileiro não é homogêneo. Existem protestantes, evangélicos e cristãos afeitos ao diálogo e disponíveis para compreender. E empreender diálogo com esses setores mais progressistas é crucial. Porque no fim das contas eu, como macumbeiro, não quero que o Brasil inteiro vire macumbeiro. Quero que eu possa fazer a minha macumba e a que senhora rezadeira continue sendo rezadeira. Não quero que os evangélicos sumam e o país se assuma candomblecista. Eu só estou querendo que a tiazinha possa bater a umbanda na casa dela e receber a preta velha sem que fanáticos religiosos ataquem aquilo. Mas tem um setor evangélico pentencostal que opera na aniquilação de tudo o que não reza na cartilha deles. Apostam na morte de outras culturas, de outras linguagens. Operam na dimensão do horror, da intolerância, do racismo. Nós estamos assistindo ao processo de teocratização do Estado brasileiro. O racismo não opera só na dimensão da cor da pele, mas no campo simbólico também, na desqualificação dos saberes. 

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Você acha que essa polarização e radicalização que vemos hoje sempre existiu? A polarização agora está muito aflorada, mas isso está na base da formação brasileira. Somos um país formado pelo genocídio indígena, pela escravidão do negro, pela domesticação dos corpos para a lógica do trabalho. Isso sempre esteve ali. Durante muito tempo embarcamos em um imaginário aprazível de que teríamos conseguido construir uma civilização gentil que amenizaria o horror do nosso processo histórico, mas ele vai ganhando outras dimensões. E hoje ganhou uma dimensão gigantesca porque houve radicalização do horror de forma poucas vezes vista na história do Brasil. Sempre houve tensionamento e formação social profundamente injusta e estruturalmente racista, mas o que agora temos é um pus dessa ferida exposta. Por outro lado, como parte do mesmo processo, nas frestas do horror produzimos incessantemente beleza. Beleza que está nos tambores, na dança, no corpo brasileiro. No banho de folha, na sabedoria da mata, na roda de samba da esquina, na gira, na capoeira, na procissão. A brasilidade incessantemente produz, das brechas do horror, a beleza e a arte.

Seu último livro, O corpo encantado das ruas, foi um dos finalistas do Jabuti. Qual a essência desse livro? Tem planos para próximos lançamentos? É um livro que fiz muito vinculado ao corpo encantado da cidade. Que fala do Rio e fala do Brasil inteiro. É uma aldeia que transcende o espaço. Fala desse cotidiano da cidade. Fala muito desses personagens que foram aniquilados pela história da grandeza. Fala dessa lindeza toda e da construção de sociabilidade da cidade. É um livro que fala da quitanda, do botequim, do terreiro. Das crianças que enfeitam a rua para a Copa do Mundo. A rigor, é um livro que fala sobre isso: como a cidade pode ser um espaço de construção de sociabilidade. Ele foi finalista do Jabuti de crônica, o que pra mim é uma alegria. Eu já ganhei um Jabuti com o Nei Lopes na categoria de livro do ano e fui finalista com outro, Coisas Nossas. Até o fim do ano, lanço uma nova parceria minha com Nei Lopes. Pro ano que vem, vou publicar uma biografia do Maracanã. 

Créditos

Imagem principal: Arquivo Pessoal/DOZE Futebol

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