”A agitação da megacidade me fez sentir vivo, mas aos poucos tudo foi se revelando desumano”
Quando preso, meu sonho era ter capital suficiente para comprar um sítio em uma cidade pequena do interior de São Paulo, construir uma casa de muitos quartos para receber meus amigos. Queria viver longe da capital, de seus odores, cores e horrores. Pensava em viver de escrever. Queria uma vida simples, doce e afetuosa. Acreditava que possuía capacidade e sensibilidade para tanto. No fundo, depois de quase a vida toda em desamor, tudo o que eu queria era amar e ser amado. E achava que não seria difícil. Imaginava que, se eu amasse, seria amado igualmente.
Mas o que sabia eu da vida ou de mim mesmo? Ao sentir o cheiro da gasolina queimada, soube que estava em minha cidade e que eu a amava como ela era, muito mais do que a qualquer sonho. A emoção foi de pertencimento: aqueles cheiros, aqueles carros e aquelas multidões me fizeram falta. Nem sequer me lembrei dos meus desejos de mato, sossego e paz. A agitação da megacidade me fez sentir que estava vivo. Aquela parafernália de cores, de objetos, de luzes e de gente fazia o coração bater muito mais rápido. Era empolgante, à primeira vista, ver como tudo havia se modernizado e evoluído. Ficava meio abobado andando pelas ruas, bebendo tudo com os olhos.
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E quando conheci os shoppings, então? Um mundo construído ao gosto, tudo bonito, brilhante e colorido. As mulheres lindas, encantadas, eu me perdia ao olhá-las: nunca foram tão belas. Não conseguia ficar parado, precisava olhar, olhar, olhar... Os carros estavam mais bonitos, de linhas mais agressivas, parecendo feras. As roupas, mais reveladoras e ajustadas aos corpos. A diferença é que as pessoas pareciam mais indiferentes, olhando para a frente, para o alto, e jamais para o lado.
Tudo plástico
Aos poucos tudo foi se revelando desumano e cansou muito mais rapidamente que encantou. Logo, nada daquilo tinha mais importância, os shoppings viraram rotina, as multidões nas ruas, impedimentos, e o que parecia bonito provou-se artificial. Nada daquilo possuía a profundidade do primeiro olhar. As pessoas não eram melhores, ao contrário; estavam mais individualistas e solitárias. Havia uma capa que escondia outra capa de uma superficialidade estupidificante. Aos poucos fui me descolando daquela situação tão inadequada à minha natureza.
Aproximei-me dos cães. Fui criado com uma cachorra, minha mãe a ganhou quando eu nasci. Durante a infância, Dinda foi minha melhor amiga. Ia comigo até para a escola e esperava eu sair. Meu pai precisava fechar a casa para me bater, pois ela avançava nele. O que mais me doía era quando ele terminava de me bater e ia espancar a cadela. Havia passado mais de três décadas distante de cachorros e, de repente, fui conviver com quatro em uma casa. Eles entenderam que eu só tinha amor por eles e me aceitaram de pronto. Em poucos dias, era como se tivessem convivido comigo desde sempre. Apaixonei-me pelos cães. Eram grandes e fortes. Cezar, o mais velho, um fila tigrado, era enorme e poderoso. Tinha mais de 70 quilos, parecia um mastim e me amava profundamente. Ao chegar na casa, eu tinha que ir abraçá-lo e fazer carinho antes de qualquer coisa. Senão ele ficava chorando feito criança. Eles morreram e nós os enterramos com o coração na mão.
Hoje temos três cães, que recolhemos das ruas, e eu e minha companheira alimentamos um sonho: ter um sítio, como aquele idealizado quando preso, e pegar cães jogados na rua para criar. Quero viver simples, ao ar livre com meus amigos, lendo e escrevendo livros. Conviver com árvores, plantas, animais e, principalmente, cães. Meus filhos em breve estarão vivendo suas vidas; terei cumprido minha missão de ser um dos que levaram a sociedade para dentro dos presídios e poderei me dedicar a esse meu ideal em paz.