Ricardo e Vânia (e Chico)

por Alexandre Makhlouf

Chico Felitti, autor do livro sobre Ricardo Correa da Silva, o ”Fofão da Augusta”, conversa com a Trip sobre as dores de mergulhar em uma história de prostituição, esquizofrenia e (muito) preconceito

"Oi! O Fofão está no Hospital das Clínicas. Amputaram o dedo dele, que estava gangrenado. Ele tem surtos, quer bater em todo mundo e tem que ser amarrado porque arranca todos os acessos. E não diz coisa com coisa." A mensagem, recebida pelo jornalista Chico Felitti no domingo de Páscoa de 2017 – vinda de uma mulher que ele nunca tinha visto na vida, mas por algum motivo tinha na lista de amigos do Facebook –, foi o ponto de partida para que ele, um ano e meio mais tarde, se tornasse o autor de Ricardo e Vânia: o maquiador, a garota de programa, o silicone e uma história de amor (Ed. Todavia).

Ricardo, conhecido como Fofão, ganhou esse apelido graças aos muitos mililitros de silicone industrial injetados no rosto ao longo de mais de uma década. E era figurinha conhecida de quem frequentava a região da avenida Paulista e da rua Augusta, em São Paulo. Conhecida inclusive do próprio Chico, que sempre passava por ele e, com o passar do tempo, sentia mais e mais vontade de contar essa história.

A primeira parte do livro, que conta a trajetória de Ricardo, nasceu a partir de uma matéria no Buzzfeed Brasil. "Eu não ia fazer mais nada além disso, porque achei que qualquer continuação poderia beirar o sensacionalismo. Achei que já era uma história contada de maneira decente, preservando a dignidade de uma pessoa. Só que no meio do caminho apareceu a Vânia", conta Chico.

LEIA TAMBÉM: Amara Moira, doutora em literatura e ex-prostituta, reflete sobre nossos corpos e os padrões que são impostos à existência

Vânia Munhoz, a quem ele se refere, foi namorado de Ricardo quando ainda era Vagner, antes da transição de gênero. Enquanto apurava essa primeira reportagem, o nome apareceu muitas vezes – foram quase dez anos de relacionamento entre os dois, que frequentavam todas as baladas da época e injetavam silicone no rosto um do outro, o que levava muita gente a acreditar que eles eram irmãos gêmeos –, mas Vagner, nunca. "As informações eram todas desencontradas. Diziam que ele tinha virado ela, que tinha morrido, que tinha mudado para Paris", lembra.

Foi logo depois da publicação da matéria, em outubro de 2017, que mais uma vez o celular de Chico brilhou com uma mensagem de outra desconhecida. "Eu conheço a bicha de Paris." Chico respondeu: "O Vagner?". "Agora é Vânia", respondeu a mulher, que, durante dias, fez a função de pombo correio enviando áudios de Vânia para ele. "No começo, o intuito foi zero profissional. A matéria já estava publicada, eu queria saber quem era aquela pessoa", explica. Foi graças a Chico, aliás, que Ricardo e Vânia se reencontraram. Via Skype, quando ele estava internado no Hospital do Mandaqui, em São Paulo, pouco antes de morrer, em dezembro daquele mesmo ano.

Vânia, hoje com 55 anos, saiu do Brasil em 1989, ainda Vagner, e começou a se apresentar como drag queen em um cabaré parisiense logo que chegou, adotando o codinome de Babette. A montação levou a uma reflexão maior, sobre seu gênero, e iniciou a transição. Logo depois, entrou para o mercado do sexo. "Ela meio que revolucionou esse mercado na França porque foi a primeira a fazer anúncio em revista de sexo hétero, dizendo o que ela tinha a oferecer. Ganhou muito dinheiro, ficou milionária, viajou o mundo e, hoje em dia, está tentando parar", diz Chico. Durante todos esses anos, o nome de dançarina Babette foi substituído por Kara, Rara, Vênus, Venusia e alguns outros usados por ela nos inúmeros anúncios. "Era um jogo de marketing. De tempos em tempos, ela mudava a identidade, mas nunca a idade – durante quase 30 anos, ela teve 28 anos. O rosto dela era tão difícil de reconhecer que ela dizia ter sempre a mesma. Ela é uma mulher fascinante. Foi aí que eu fiquei convencido de que valia a pena fazer o livro. Era outra história. Eu, inclusive, faria um livro só dela. Mas, felizmente, as coisas estão ligadas", lembra o jornalista.

A dor do autor

Mais do que contar uma história, Chico faz justiça a Ricardo e a todo o assédio ao qual ele foi submetido, especialmente em seus últimos anos de vida. Os relatos de agressividade e perfil violento que muitos afirmam que ele tinha. "Muita gente reclamou que eu peguei leve, não relatei esse perfil agressivo dele. Cheguei a receber uma mensagem de um advogado dizendo que eu era um 'Gugu alfabetizado', ganhando dinheiro e audiência com a exploração da miséria humana", ri, enquanto lembra a crítica. Mas, sim, Ricardo tinha episódios de violência – com o próprio Chico, inclusive, de quem ficou próximo no último ano de vida. "Em um de seus surtos, ele quebrou uma garrafa e saiu correndo atrás de mim. Então, sim, é verdade. Mas como culpá-lo por isso? O Ricardo virou meio patrimônio público. Com ele, era o contrário da celebridade. Eu já fiz matéria com a Regina Casé e a acompanhei por um dia. As pessoas sabem quem é, mas existe uma barreira invisível, quase ninguém vem falar com ela. Com o Ricardo, era o contrário: ele chegava, as pessoas sabiam quem ele era e já vinham até ele com zero respeito. Pelo espaço dele, por quem ele era. Eu ficava com ele várias tardes na Paulista. Carros passando e gritando 'vai, bichona' era a coisa mais leve que ele ouviu quando eu estava junto. Assédio 100% do tempo."

A proximidade ao biografado, tão boa para o texto, não surtiu o mesmo efeito no biógrafo. Desde a morte de Ricardo, Chico continua se correspondendo com muitos dos amigos e também com Vânia, com quem conversa todos os dias. A relação extrapolou o profissional. "Não sei dizer o quanto isso afetou a minha saúde mental, mas sei que mexeu comigo. Acho que a única coisa que preciso ter em relação a isso é honestidade. Reconhecer que eu não era que nem ele, não vivi o que ele viveu. Então, por mais que afete, não dá pra dizer que eu sei o que ele passou. Essa é minha grande crise de viver essas histórias."

LEIA TAMBÉM: Gabriela Loran, primeira atriz trans da Malhação, fala sobre transição de gênero e preconceito

A morte de Ricardo também mexeu muito com Isabel Dias, mãe de Chico, que acompanhou o autor em boa parte da apuração para a conclusão do livro – inclusive nas idas para Araraquara, cidade natal de Ricardo, e Paris. "A matéria do Buzzfeed termina dizendo que, até então, ela nunca tinha contado pra ele, mas ela também se tratava no HC e, às vezes, saia do médico dela e atravessava o hospital para visitá-lo." Chico lembra que eles se davam muito bem e que o baque foi realmente grande. A morte de Ricardo trouxe à tona para ela, portadora de uma doença raríssima no coração, a inevitabilidade do fim da vida. "Depois de mais de um ano, sessões de análise e consultas no psiquiatra, o que curou mesmo foi ter adotado um cachorro", conta Chico, sorrindo. Cachorro este que estará na capa do próximo livro de Isabel, que Chico editou, sobre como o resgate do bichinho, na verdade, a resgatou da depressão.

Chico, Isabel, Vânia e muitas outras pessoas vão se reunir no dia 21 de fevereiro, uma quinta-feira, no Cabaret da Cecilia, em São Paulo, e no dia 22, sexta, no Buraco da Lacraia, no Rio, para o lançamento oficial do livro. É a primeira vez em muito tempo que Vânia virá ao Brasil. "Ela sempre manteve contato com a família, que sabia da transição, mas não que ela trabalhava com sexo. Ela está muito animada, é uma show-woman. E acho que está animada também por essa segunda saída do armário. Ser prostituta é ainda mais estigmatizado do que ser trans", completa Chico.

Créditos

Imagem principal: Divulgação

fechar