Gabriela Loran quer uma TV mais plural

por Carol Ito

”É importante que uma atriz trans interprete uma personagem trans porque é muito fácil cair em estereótipos”, diz a primeira transexual a atuar em Malhação

Para viver a personagem Priscila na atual fase de Malhação, a atriz Gabriela Loran contou com as próprias experiências e memórias. Aos 24 anos, a carioca é a primeira transexual a atuar na série da Globo, que está no ar desde 1995. Ela interpreta uma professora de dança trans que dá aulas de stilleto (uma aula de dança sob o salto alto).

Malhação – Vidas Brasileiras, escrita por Patrícia Moretzsohn, segue a reformulação de 2017  da série iniciada pelo roteirista Cao Hamburger (O Ano em que meus pais saíram de férias) para dialogar com temas espinhosos da atualidade, como intolerância religiosa, gordofobia e transfobia. “Para a sociedade, em geral, a mulher trans é marginalizada, um fetiche sexual. Estar na televisão e dar um passo para desconstruir isso é uma questão de sobrevivência”, explica Gabriela.

A atriz cresceu em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, e se mudou para a capital para estudar teatro, aos 20 anos. Na infância, o banheiro era o lugar em que podia ser quem gostaria, a Gabriela, que cantava e dançava na frente do espelho. Fora dele, enfrentou preconceitos e chegou a pensar em suicídio aos 14.

Ela também comanda um canal no YouTube, o Afronática, em que fala sobre transição de gênero, transfeminismo, negritude e beleza de forma bem-humorada. À Tpm, Gabriela Loran fala sobre a atuação na série, militância e combate ao preconceito.

Tpm. Como você chegou a Malhação?
Gabriela Loran. Antes de fazer o teste, li o texto da personagem e pensei: “Sou eu”. Entrar no universo foi muito tranquilo. Quando a gente tem uma série que fala sobre intolerância religiosa, gordofobia e aceitação, os preconceitos começam a ser desconstruídos. E é importante que uma atriz trans interprete uma personagem trans porque é muito fácil cair nos estereótipos. A referência que a gente tem na mídia de travesti é a que se prostitui, que grita pela rua, daí vem a importância de ter uma Priscila, porque na minha época não tive esse modelo. É uma atriz trans interpretando uma personagem trans numa profissão de respeito, uma dançarina.

Como a sua atuação ajuda a ampliar a discussão sobre transgêneros? 
Eu não quero que a discussão fique só entre nós, trans e LGBTs. O Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo e mais acessa conteúdo pornográfico com pessoas trans. O homem que me xinga na rua é o que chega em casa, liga no site pornô e se masturba vendo trans. Ocupar esse espaço é importante, mas não quero ser a única. Ainda é desconfortável porque chego num cenário onde a diretora é cis, todo mundo é cis. Tem que ter cinegrafista trans, diretor trans, incentivar [a presença de transgêneros] nesse sentido também.

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Conte mais sobre a Gabriela antes de Malhação.
Desde criança, tenho a veia artística muito forte, via personagens na TV e queria copiá-las. Antes de ser atriz, fiz curso técnico em segurança do trabalho e pensava em cursar engenharia ambiental, mas desisti. Cursei teatro na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e comecei a entender quem eu era, aprendi sobre o corpo e comecei a me entender de dentro pra fora.

Como você percebeu que era uma pessoa trans?
Quando eu era criança, não sabia que era uma pessoa trans, não tinha acesso à informação, mas é uma coisa que me acompanha desde então. São sonhos, comportamentos, o corpo fala demais com a gente, né? Mas somos ensinados a ignorá-lo. O banheiro sempre foi minha válvula de escape, porque lá eu podia ser eu, chorar sem minha mãe ver. Dançava na frente do espelho, botava a toalha na cabeça, era a Gabriela, de fato. Teve um momento, com uns 14 anos, que achei que o suicídio seria um alívio, porque sofria muitos embates no mundo fora do banheiro. Subi num balde, e botei o varal de casa em volta do pescoço. Cheguei a ficar pendurada, mas consegui apoiar o pé de novo. Depois me arrependi e pensei: “Não posso ser vencida pelo mundo”.

Como foi seu processo de transição? 

“O homem que me xinga na rua é o que chega em casa, liga no site pornô e se masturba vendo trans.”

Eu faço acompanhamento no IEDE (Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia). Depois que comecei a tomar hormônio, meu corpo mudou. Toda a gordura corporal é realocada, comecei a ter mais quadril, celulite, algumas pessoas perdem a libido. Além da reconfiguração corporal, você começa a trocar o guarda-roupa, é como nascer de novo. Ser trans é muito difícil, mas considero uma existência linda. É empoderador saber que você passou por um monte de problemas mas tá viva, resistindo. A parte constrangedora é que a pessoa que te entrevista [no acompanhamento] e decide se você vai passar pelo tratamento ou não é cis. Você precisa levar fotos suas da infância, escrever, ser questionada. Até penso em estudar psicologia, montar um escritório que atenda mulheres trans e suas famílias, porque não temos referências. Se sua família te apoia, o mundo lá fora pode cair. Sou muito privilegiada em relação a isso, mas muitas pessoas não.

No canal no YouTube você comenta sobre a passabilidade trans, quando as pessoas identificam transgêneros como cis. Como é isso? 

“Teve um momento, com uns 14 anos, que achei que o suicídio seria um alívio, porque sofria muitos embates no mundo fora do banheiro.”

É passar na rua e as pessoas não percebem que você é trans, é uma questão de sobrevivência no Brasil. Conheço pessoas que têm passabilidade 100% e não querem que ninguém saiba, não querem militar, e eu super respeito. Mas se posso mudar minha realidade, vou fazer isso. A pessoa que não tem passabilidade é a que mais merece respeito, porque ela não sofre tanto quanto eu.

Você se considera feminista?
Sou transfeminista. Sinceramente, sou uma mulher trans, mas não vivo muita coisa que uma cis vive. Não menstruo, não tenho útero. Existem pautas do feminismo as quais não tenho lugar de fala.

Costuma receber muitas mensagens nas redes? Tem que lidar com haters
Nas minhas redes sociais, recebo mensagens maravilhosas, mas vi os comentários depois de que uma entrevista minha foi publicada, li coisas horríveis. Ao mesmo tempo, vejo que é ótimo ter haters, significa que sua mensagem está chegando onde não chegava antes.

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Créditos

Imagem principal: Sofia Teixeira

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