Conheça a Igreja Africana Ortodoxa de São John Coltrane, um ritual único e cheio de notas
Depois de criar a luz, a terra, os animais e os homens, Deus nos deu o saxofone. Para que John Coltrane trouxesse um evangelho musical e uma família chamada King fundasse uma igreja de San Francisco. A Igreja Africana Ortodoxa de São John Coltrane - um ritual único, sincero e cheio de notas para trazer almas para o jazz e para Jesus
“Com trombetas e som de cornetas, exultai perante a face do Senhor, do Rei”
Salmos, 98:6
Um baterista suado rufa e dá com tudo no prato de condução enquanto um pianista acima do peso castiga o teclado em síncope e o saxofonista de longos dreadlocks e exóticas vestes segura um harmônico agudo por 10 s no que, sem muita dúvida, é a melhor jam session de San Francisco. O ar está esfumaçado, uma platéia multirracial estala dedos, grita, bate palmas, e mulheres negras dançam de olhos fechados diante da banda. Descrição perfeita de um mundano bar de jazz – mas Jesus, assim como o diabo, está nos detalhes.
A fumaça é de incenso, as vestes do saxofonista são de um sacerdote, as dançarinas são senhoras devotas e os gritos, infalivelmente, são de “aleluia”. Fora o fato de que o relógio marca meio-dia em um domingo de sol. Hora da missa semanal na igreja ortodoxa mais freestyle do planeta. A Igreja Ortodoxa Africana de São John Coltrane. Louvado seja Jazz.
O templo em si não tem a descrição de uma típica casa de Deus. Uma sala anexa de centro comunitário, com porta e paredes de vidro escurecidos, carpete barato e fileiras de cadeiras de auditório. O ar sacro da igreja vem das enormes telas penduradas. Um Jesus negro, uma Virgem Maria negra, crianças angelicais, uma árvore e duas imagens de São John Coltrane. Em ambas o santo segura um saxofone que expele fogo sagrado – a visão original que inspirou o bispo King a fundar sua congregação. Prestai atenção.
Há 43 anos o jovem saxofonista Franzo King entrou com sua esposa em um club de San Francisco. Esperavam assistir a uma grande performance, mas, no gargarejo do palco, suas vidas foram transformadas. Sentiram na alma o poder sagrado do sax tenor de John Coltrane. Franzo viu os olhos do jazzman varados de luz em um rosto que parecia esculpido na pedra. Era alguém não humano mas divino. E de seu sax um evangelho sem palavras tomava o ar, e o som tão forte, místico e atraente quanto o fogo. Uma aparição.
Entendo o surto de Franzo... John William Coltrane vinha em uma bem-sucedida busca espiritual. Tinha 38 anos, e havia anos longe da birita e da heroína dos anos 50. Livre como seu som, tocou no islã, na cabala, na meditação, na astrologia, no hinduísmo, no cristianismo. John domou sua alma, sua técnica, e produziu o jazz mais poderoso já ouvido. O show a que o casal King assistiu foi em 1965, Coltrane acabara de gravar um disco. O LP da gravadora Impulse era uma oração em gratidão a seu despertar espiritual. Reconhecendo qual o tipo de amor Deus tem por nós: supremo. A Love Supreme, o título do álbum.
Marina e Franzo já eram parte de um rebanho cristão, de fé pentecostal. Mas agora o caso é outro. Os King sabiam que aquele não era um mero músico virtuoso, mas Deus em pessoa. Eles buscaram na obra do saxofonista seus pensamentos e palavras. Pulverizaram o nome do meio de Coltrane. William virou Will-I-Am, uma afirmação do caráter divino de John. A hipérbole era literal... tanto que, assim que levantou algum dinheiro, o casal fez o que qualquer arrebatado faria: foi pregar.
Em 1971, quatro anos depois da morte de Coltrane, Franzo e sua companheira, Marina King, deram o primeiro serviço no One Mind Temple Evolucionary Transitional Body of Christ. O nome mezzo cristão mezzo hippie era bem adequado àquele começo de década, mas a doutrina só seria consolidada em 1982. Quando a One Mind... começou era mais uma jam forte, aberta e salpicada das falas do reverendo King exaltando Coltrane e seu som como a própria Verdade, como Deus que pisou na Terra. Foi um arcebispo de Chicago, de passagem por San Francisco, que tirou a peculiar seita do underground da fé.
Sax Appeal
Seu nome era Alexander McGuire, criador da Igreja Ortodoxa Africana, tradicional congregação cristã negra, fundada em 1921 para protestar contra a discriminação racial sofrida nas comunidades pentecostais de Chicago. Quando visitou a missa de Franzo King, McGuire deu sua bênção. Promoveu nosso reverendo a bispo e rebaixou Coltrane da condição de Deus à de santo. King adotou a batina e a liturgia mais formal de McGuire. A One Mind... se tornou a divisão do oeste da Igreja Ortodoxa Africana. E orgulhosamente tomou São John Coltrane como padroeiro.
Qual o milagre de Coltrane, bispo? “A sua ascensão”, responde, “em unir-se com Deus em si através do poder de sua música. Acreditamos que, quando ele se livrou do vício das drogas, sua revelação e seu despertar espiritual se tornaram um evangelho em A Love Supreme. Quem tem o coração aberto reconhece o caratér sagrado daquela mensagem”. Se o leitor não é catequizado em jazz moderno, A Love Supreme é considerado a obra-prima de Coltrane, um álbum intencionalmente construído como uma prece, uma busca pela perfeição e pela pureza espiritual traduzida em quatro partes. As mesmas composições que, todo domingo, a banda de reverendos executa e improvisa em cima. O mesmo disco que Waneka King, filha do bispo e ela mesma reverenda, transmite semanalmente pela KPOO, a única rádio de propriedade afro-americana da Califórnia. Um programa de quatro horas dedicado à música de São Coltrane e à palavra de Deus.
OS KING SABIAM QUE AQUELE NÃO ERA UM MERO MÚSICO VIRTUOSO, MAS DEUS EM PESSOA
Waneka é a “gerente” da igreja, cuida dos contatos, da comunidade durante a semana e é a espetacular baixista da banda. Ela quem sorri antes de responder, cheia de dedos, se acha que o papa reconheceria um dia São John Will-I-Am Coltrane como um santo pra valer. “Nem todos aceitam fácil essa idéia, eu sei. Mas nós sabemos que nosso padroeiro foi um homem conectado com Deus através da música. Eu gostaria de saber o que João Paulo II teria a dizer sobre isso, mas Bento 16 já seria incrível se canonizasse Madre Teresa.”
Pela qualidade do jazz e pela peculiaridade da igreja, é espantoso que o quorum não seja maior. De 15 a 20 pessoas comparecem a cada serviço. Mas o rebanho do jazz é fiel. Um casal branco de Nova York bate cartão, e os pés, diga-se, participando dos serviços, sapateando profissionalmente em um tablado de madeira do lado da banda. Senhores na casa dos 60, na estica de paletó, colete e chapéu, soltam seus aleluias quando um solo chega ao auge. E a família estendida do bispo King faz mais do que volume – é o coração da igreja, cantando passagens bíblicas em complexas melodias afrojazzísticas, batendo pandeiros e, eventualmente, passando a sacolinha. Nada de couvert artístico, o dinheiro serve para manter a igreja em ordem e para caridade na vizinhança.
Duas horas e meia depois do primeiro tema é a hora da palavra. Franzo King, suado de tocar saxofone e bateria ao longo da missa, vai ao púlpito improvisar sua pregação. A data é especial, deveras, o primeiro domingo pós-eleição presidencial. E bispo King, logo após uma prece, sai solando verbalmente.
Os Estados Unidos da Babilônia
Como sua igreja, King tem um pé no mundano que atrai também o descrente. Seu estilo é uma mistura de MC com pregador, uma marra arrastada e meio irônica que me fez pensar que ele criou algo como o “Pimp my Church”. Toda sua fala foi sobre o presidente eleito: “Quero falar sobre o Obama...”. “Aleluia!”, “Oh, yes!”, “Thank yoooou, Lord!”, gritam os fiéis. O bispo está feliz, evidente. Mas não muito interessado na esperança política, na “change” do slogan ou na queda do muro racial da América. O bispo quer saber é o que Deus pretende com o Barack no poder. “Muita gente está comemorando cedo demais, amém?” “Aleluia!”, respondem. Bispo segue: “A América está achando que estamos redimidos. Que o reino dos céus é nosso. Mas aqui, meus irmãos, é a Baaaaabilônia!”. “Tá certo!”, alguém grita. “Falou e disseeeee”, canta outro. King sorri: “Como o irmão Bob Marley disse, a Babilônia vai queimar!”. Não que nosso bispo queira o mal da América, não senhor, mas ele ainda vê o saldo vermelho na consciência americana. Vai King: “Coorporações não tem país, não tem bandeira. Eles estão na cadeira da presidência há muito tempo. E vocês acham que eles vão deixar Obama governar se ele não tiver algum tipo de poder divino agindo para ajudar?”. Palmas e chocalhos explodem. “O país está com a espada sobre a cabeça. Qual é a mudança, qual é a esperança? A minha é que Deus vire a mesa dessa nação. Que acabe com a loucura desse país! Não acham que tem maluco demais por aqui?”, diz em tom jocoso o bispo saxofonista.
Ele fala sobre arrependimento, fala sobre a crise que vai assolar o mundo nos próximos anos. E de como Jesus, quando voltar, “vai estar bravo. Ah, vai estar beeeeem bravo, aleluia!”. Um saxofonista sopra um fraseado. “Tem muito arrependimento para ser feito nesse país, e eu quero ver como Deus vai usar esse rapaz Obama. Eu quero ver se Obama está pronto para o plano de Deus.” Silêncio na paróquia após a estranha desconfiança do bispo.
Ele percebe, para logo os consolar. “Mas vocês sabem, meus irmãos, que uma pessoa é tão boa quanto a música que escuta...”, King pausa como um bom saxofonista antes de fechar seu solo, “e eu sei, e tenho minhas fontes, que Obama escuta São John Coltraaaaane!”. “Aaaaaaleluia!”, delira a congregação e o presente repórter, enquanto o baterista de batina ataca o prato de condução, Waneka dedilha o baixo, o bispo pousa a Bíblia no púlpito. De cocuruto vermelho, espanca um pandeiro velho e mother Marina King canta um gospel de beleza violenta. Arcebispo Franzo Wayne King apanha o sax tenor. Fecha o olho, dá um berro e exulta a Palavra pela boca de um saxofone, na face do Senhor. E na de São John Will-I-Am Coltrane.