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por Ricardo Calil
Trip #200

O governo holandês vem criando barreiras legais para combater os coffee shops

Por 35 anos, a Holanda foi a Meca dos usuários, ativistas e estudiosos da maconha. Mas o governo conservador vem criando barreiras legais para combater os coffee shops – como um novo projeto que proíbe o acesso de turistas. Já houve 1.400 casas vendendo Cannabis e haxixe no país; hoje são 650 – e o número deve cair ainda mais

“Hoje é um dia péssimo para visitar Amsterdã”, avisa Jason den Enting, gerente da rede de coffee shops Dampkring. Ele se referia às hordas de torcedores de futebol que inundaram a cidade depois que o Ajax, maior time local, ganhou o campeonato holandês naquele domingo de maio, deixando um rastro de barulho, sujeira e intimidação. “Você sabe como as pessoas lá fora ficam agressivas quando bebem. Mas aqui dentro todo mundo está sempre tranquilo.” No Dampkring e outros coffee shops de Amsterdã, álcool e tabaco são proibidos, o que afasta a maioria dos torcedores. Em compensação, os clientes da casa podem escolher entre dezenas de variedades de maconha de diversos tipos e origens, por preços que vão de 4 a 13 euros o grama, além de haxixe marroquino e afegão.

Ao saber que a entrevista seria para uma revista brasileira, o gerente do Dampkring logo lembra: “Seu ex-presidente esteve aqui”. Jason não está viajando. Durante as gravações do documentário Quebrando o tabu, Fernando Henrique Cardoso visitou uma das três casas da rede. “Ele falou com meus chefes para saber como funciona nosso sistema.” E o que ele achou? “Eu diria que ele se manteve neutro. Ele queria mais ouvir do que falar. ” FHC não é a única celebridade que passou pelo Dampkring nos últimos anos. Nas paredes do balcão de venda de maconha, há fotos de George Clooney e Brad Pitt com os donos da rede. Eles estiveram ali para gravar uma cena de Doze homens e outro segredo (2004). “O filme queria passar o feeling da cidade. E vir a Amsterdã sem entrar em um coffee shop é como ir a Roma e não ver o papa”, compara Jason. Para o registro: dos famosos citados, apenas Brad Pitt experimentou o produto principal da casa, em companhia do diretor Steven Soderbergh, segundo o gerente do Dampkring.

Nos últimos 35 anos, a Holanda foi a meca dos usuários, ativistas e estudiosos da maconha. Pessoas de todo o planeta peregrinavam ao país para consumir a droga sem se preocupar com a polícia ou para entender seu avançado, embora ambíguo, modelo de negócio, no qual a compra e o consumo em coffee shops são tolerados, mas não legalizados. Mas, enquanto os olhos do mundo se voltam para a Califórnia e outros Estados americanos onde o plantio e a venda de maconha medicinal foram devidamente regulamentados, os coffee shops da Holanda enfrentam uma crise histórica, um momento de apreensão.

No dia 27 de maio, o governo holandês anunciou um projeto para proibir o acesso de turistas aos coffee shops. A medida poderia levar ao fechamento de dezenas de casas, já que os estrangeiros representam mais da metade dos frequentadores desses estabelecimentos. A ideia é transformar os coffee shops em clubes fechados, apenas para holandeses cadastrados, com o objetivo de reduzir o turismo de drogas. Segundo o governo, a medida deve começar a valer no final deste ano nas províncias sulistas de Limburg, Noord Brabant e Zeeland, e no ano que vem para o resto do país.

Porta-voz do Bond van Cannabis Detaillisten, maior sindicato de coffee shops da Holanda, Michael Veling tenta evitar o alarmismo. “A imprensa exagera. Por enquanto, é só um projeto. E eu acho que não irá para frente”, afirma. “Ninguém sabe como eles pretendem colocar a ideia em prática. Clubes privados não podem ser inspecionados pelo governo. Seria mais fácil banir turistas no país inteiro, na porta de entrada! Além disso, o governo federal teria que limitar o poder das prefeituras, que têm autonomia nessas questões. Não vai acontecer”. Mas Veling sabe que o governo conservador tentará inventar novas maneiras para minar o negócio dos coffee shops.

O DEMOCRATA CRISTÃO
O primeiro coffee shop do país – o famoso Bulldog, instalado na antiga sede da polícia de Amsterdã – foi aberto em dezembro de 1975. Nos 20 anos seguintes, essas casas se reproduziram em progressão geométrica: em 1995, havia 1400 no país, 430 apenas em Amsterdã. Mas, então, o governo passou a exigir uma licença para a venda da maconha, o que significava arcar com uma carga de 52% de impostos. Em 2001, o número de coffee shops já havia caído para 700 no país e 230 em Amsterdã.

Quando a situação parecia estabilizada, a onda conservadora europeia alcançou a Holanda. Em 2007, uma coalizão de partidos liderada pelos democratas cristãos chegou ao poder com uma bandeira fácil: o fechamento dos coffee shops. Foi como se José Maria Eymael se tornasse o primeiro-ministro do país reconhecido como um dos mais liberais do mundo – e que tem a menor taxa de consumo de maconha da Europa, com cerca de 5% de usuários entre moradores de 15 a 65 anos.

No poder federal, os democratas cristãos começaram a pressionar as prefeituras e câmaras municipais para combater os coffee shops. E conseguiram algumas vitórias: hoje são 650 casas na Holanda, menor nível desde a década de 80. No final deste ano, todas elas terão que renovar suas licenças. E existe um temor generalizado de que o governo aproveite a chance de um golpe ainda mais duro no negócio.

Em Rotterdã, segunda maior cidade da Holanda, foi aprovada uma lei que proíbe o funcionamento de uma casa desse tipo a menos de 250 m de uma escola. Com isso, 19 coffee shops foram fechados. “A medida não foi muito inteligente”, diz Veling. “Os estudantes não compram nos coffee shops, porque não podemos vender para menores de 18 anos. Eles conseguem um produto vagabundo dos traficantes na rua, financiando uma atividade criminosa.”

Depois dessa, o governo conservador se voltou para os principais clientes: os turistas. Em Roozendal e Bergen Op Zoom, na fronteira com a Bélgica, os coffee shops tiveram que encerrar suas atividades, sob a alegação de que atraíam turistas baderneiros. Em Maastricht, a prefeitura aceitou testar o projeto de proibir a entrada de estrangeiros, mas a ideia foi logo descartada, porque os índices de criminalidade subiram.

“Os governos não entendem que algumas pessoas vão sempre querer usar drogas. Então é melhor que elas possam consumir produtos de qualidade, em lugares que pagam impostos. O problema é mais embaixo: os países vizinhos tinham que mudar suas leis para que seus habitantes não precisassem cruzar a fronteira por um baseado”, diz Mark Jacobsen, dono do coffee shop The Rookies.

RASPADINHA DE MACONHA
Embora a Holanda tenha sido nas últimas décadas o posto mais avançado na luta pela regulamentação das drogas, seu modelo foi criado em um limbo legal, cheio de zonas cinzentas. Os coffee shops podem vender maconha, mas não poderiam comprar. Porque o cultivo da Cannabis é proibido no país – assim como a importação de outros locais. Por anos, as autoridades faziam vista grossa. Mas não o atual governo conservador.

A coalizão democrata cristã descobriu outra maneira de minar o sistema: destruir as plantações de maconha. E, para tanto, encontrou um parceiro e um método curiosos. Com o apoio de uma companhia local de energia (os growers são grandes consumidores ilegais de luz), a polícia distribuiu uma espécie de raspadinha com aroma de maconha entre os moradores do país. A ideia é que eles conheçam o cheiro para denunciar os plantadores. Segundo o francês David Duclos, diretor do Cannabis College de Amsterdã, cerca de 50 plantações vêm sendo destruídas por dia – o que causou um imediato efeito negativo. “Os coffee shops tiveram que comprar maconha de fontes menos confiáveis. O governo mais uma vez beneficiou os mafiosos.” Para os ativistas, a solução é simples: em vez de perseguir, regulamentar as plantações. Mas seria necessário convencer os governos de outros países da União Europeia – missão difícil em tempos de maré conservadora.

Perguntado se acha que a Califórnia tem hoje um sistema mais avançado do que o da Holanda, Duclos hesita. “Eles encontraram uma maneira de legalizar o plantio, mas tiveram que recorrer à história da maconha medicinal, que pode ser um pouco hipócrita. Aqui na Holanda, acreditamos em outra coisa: fumar ou não maconha é uma questão de liberdade individual, como comprar um tomate na feira.”

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