Engarrafamento à escandinava

por Lia Hama
Trip #201

Copenhague enfrenta hoje um problema inusitado: congestionamento de bicicletas

Metade dos deslocamentos dos moradores de Copenhague já é feita às pedaladas. Após décadas de política públicas que mudaram a mentalidade e os hábitos da capital dinamarquesa, hoje a cidade enfrenta um "problema" inusitado: os congestionamentos sobre duas rodas

“Andei de bicicleta em São Paulo e senti medo.” A frase veio do prefeito de Copenhague, Frank Jensen, quando visitou a cidade no mês passado para participar do C40 Summit, o encontro dos governantes das 40 maiores cidades do mundo para discutir o combate às mudanças climáticas. De passagem por aqui, o prefeito social-democrata foi convidado para dar uma volta de bike em meio ao caótico trânsito paulistano. Não gostou nem um pouco. E não é difícil entender o porquê. Com terreno plano e mais de 300 km de ciclovias bem asfaltadas e sinalizadas, Copenhague é tida como uma das melhores cidades (se não a melhor) do mundo para pedalar. Basta uma rápida espiada para notar que o ciclismo faz parte do cotidiano do mais de 1 milhão de habitantes da capital da Dinamarca. Ali pessoas de todas as idades – de crianças a grávidas e velhinhos – se locomovem tranquilamente sobre duas rodas. Metade de seus moradores utiliza diariamente as bicicletas para ir à escola ou ao trabalho, incluindo o prefeito Frank. Mesmo no rigoroso inverno local, 80% continuam utilizando a magrela. Até os membros da família real dinamarquesa são vistos pedalando. O uso é tão difundido que a capital agora enfrenta um problema inusitado: o congestionamento nas pistas exclusivas para ciclismo.

“Temos orgulho de dizer que temos congestionamentos de bicicletas e não de carros”, afirma o arquiteto dinamarquês Jan Gehl, 74 anos. Descrito pelo jornal britânico The Independent como “o mais próximo que um urbanista pode chegar de um rock star”, Jan dá consultoria para diversas cidades do mundo todo que desejam seguir o exemplo de Copenhague – ou se “copenhaguizar”. Seu escritório onde ele recebeu a reportagem da Trip abriga arquitetos que demonstram ter conhecimento sobre diversos pontos do planeta – da avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, passando pelo transporte público de Bogotá até as ciclovias de Melbourne. Um dos trabalhos mais conhecidos foi a recente consultoria prestada à prefeitura de Nova York para transformar regiões movimentadas como a Times Square em locais melhores para o convívio de pessoas.

"Na crise do petróleo nos anos 70 começamos a perceber que era mais inteligente retornar à cultura da bicicleta"

Copenhague tem uma vasta experiência nesse assunto, acumulada nos últimos 50 anos. Em 1962, a principal via da cidade, a Stroget, que vivia repleta de carros por todos os lados, foi transformada em um boulevar para a circulação apenas de pedestres e ciclistas. Ao longo das últimas décadas outras ruas foram transformadas em locais onde a entrada de carros é parcialmente ou totalmente vetada. A locomoção por meio de duas rodas se tornou uma prioridade. “Temos uma tradição no uso da bicicleta que remonta à primeira metade do século passado. Durante a Segunda Guerra Mundial ela era o principal meio de transporte. Nos anos 50 e 60, no entanto, houve uma invasão de carros. Ter carro era sinônimo de status. Aí veio a crise do petróleo na década de 70 e começamos a perceber que era mais inteligente promover o retorno à cultura da bicicleta. Locomover-se sobre duas rodas é mais prático, mais barato, faz bem para a saúde e para o meio ambiente”, explica Jan.

Com o aumento da demanda na última década, a capital se transformou em um canteiro de obras voltadas para melhorar a vida dos ciclistas. Para diminuir os congestionamentos sobre duas rodas, ciclovias estão sendo alargadas, mais estacionamentos para bikes estão sendo construídos e há um projeto para criar pistas expressas para bicicletas. Pontes para pedestres e ciclistas são levantadas a toque de caixa. Rotas verdes ao longo de parques e antigas linhas de trem estão sendo acrescentadas à rede de ciclovias, que por sua vez é integrada às linhas de trem e de metrô. Taxistas são obrigados a colocar racks na traseira para carregar as bicicletas dos passageiros. E, para divulgar o know-how adquirido nas últimas décadas ao resto do mundo, a Dinamarca possui uma embaixada do ciclismo inaugurada no início de 2009.

Fácil e rápido
Praticidade é a palavra-chave para entender o que leva hoje tantos moradores de Copenhague a se locomover sobre duas rodas. A vontade de salvar o planeta não é exatamente o que está por trás do uso maciço desse meio de transporte. “Fizemos uma pesquisa com os moradores daqui e apenas 1% apontou a preocupação com o meio ambiente como o principal motivo que os leva a se locomover de bicicleta. 25% disseram que é porque é barato, e a grande maioria, 60%, afirmou que é porque é mais fácil e rápido”, afirma Morten Kabell, membro da Câmara de Vereadores de Copenhague e vice-presidente da comissão técnica e de meio ambiente da cidade.

De fato, as bicicletas estão por todo o lugar na capital dinamarquesa. Os modelos são os mais diversos: há os para levar crianças, os para carregar objetos atrás, os com cestinhas na frente (os preferidos pelas mulheres) e os com garupa atrás. Existem os tipos brancos que fazem parte do sistema público e gratuito de bicicletas. Táxis com três rodas são usados para levar turistas para passear. Crepes com Nutella são vendidos em bikes com uma espécie de balcão em cima. O reduto hippie de Christiania desenvolveu um modelo próprio. Estacionamentos para bikes estão espalhados por todos os lados. O mais impressionante é que as pessoas simplesmente largam suas bicicletas pelas ruas, sem nenhum tipo de corrente para amarrá-las. Na primeira volta de bike que esta repórter deu pela cidade, acompanhada de um jornalista dinamarquês, ficava sempre com a sensação de que, após cada parada, quando voltasse ao local onde deixara a bicicleta, ela já não estaria lá. Mas estava. Incrível.

Chama a atenção o fato de que ninguém coloca roupas de ginástica para andar de bicicleta. A cidade foi o berço do movimento cycle chic, termo criado em 2007 pelo fotógrafo Mikael Colville-Andersen para designar pessoas que andam chiques mesmo em cima de duas rodas. Em seu blog, Andersen começou a postar fotos de moradores da capital dinamarquesa vestidos com roupas moderninhas, homens com ternos descolados e tênis ou mulheres de vestidos e saltos altos. O movimento se espalhou por diversos países, inclusive o Brasil. E o blogueiro Andersen ganhou o apelido de “Sartorialist em duas rodas”.

Bom para o bolso
Capacetes não são obrigatórios para andar de bicicleta na cidade, apesar das inúmeras campanhas do governo para estimular o seu uso. Cerca de um terço das pessoas em Copenhague utiliza o equipamento de segurança. Na avaliação dos especialistas locais, se houver uma lei obrigando o uso do capacete sob pena de multa, metade das pessoas deixaria de usar a bicicleta.

Há também ganho econômico com a prática do ciclismo. “A sociedade ganha dinheiro quando as pessoas andam de bicicleta e perde dinheiro quando elas andam de carro”, afirma o vereador Morten. Segundo os cálculos, para cada quilômetro percorrido de bicicleta, a cidade economiza o equivalente a cerca de R$ 0,4. O valor leva em conta os gastos com problemas de saúde provocados pela falta de exercício, infraestrutura de estradas e estacionamentos necessários para os carros, guardas de trânsito, seguro, gasolina...

"Se construírmos a infraestrutura, mais pessoas que vão usar a bicicleta. Temos que pereceber que influenciamos as escolhas das pessoas"

Por isso, ter carro custa caro na Dinamarca. Os impostos pagos ao governo chegam a 180% de seu valor. Com transporte público eficiente e uma grande rede de ciclovias, mesmo quem tem muitas vezes deixa o carro na garagem. “Minha família tem carro, mas usamos pouco. Há tantas formas de se locomover que muitas vezes não é a opção mais inteligente. Eu vou ao trabalho de ônibus e caminhando. Às vezes fico duas semanas sem dirigir”, conta Jan.

Outra vantagem da bicicleta, aponta o arquiteto, é a possibilidade que ela dá de interagir com a cidade. “Coloco meus netos no banco da frente da bicicleta e vamos conversando: ‘Olha o pássaro! Olha o cachorro!’. Eles preferem andar de bicicleta do que de carro, onde eles ficam entediados”, afirma Jan em meio a risadas. Ele lembra, no entanto, que nem sempre foi fácil pedalar por Copenhague. “Há cinco anos, minha mulher e eu resolvemos comemorar nosso 45º aniversário de casamento andando de bicicleta. Fizemos um percurso de 20 km. Imagine um casal na faixa dos 70 anos de idade fazendo isso! Isso não teria sido possível quando nos casamos. Todas essas conquistas para melhorar a vida dos ciclistas ocorreram nas últimas décadas”, diz.

Jan aponta que foi uma decisão dos governantes da cidade, junto com uma mobilização da população para pressionar por melhores condições para os ciclistas, que levou Copenhague a chegar à situação atual. “Se nós convidamos mais pessoas a andar de carro, ou seja, construimos mais pistas e estacionamentos para carros, então teremos mais carros. Mas se nós convidamos mais pessoas para andar de bicicleta, construindo a infraestrutura necessária para isso, então teremos mais pessoas andando de bicicleta. É fundamental perceber que nós influenciamos as escolhas das pessoas”, conclui o urbanista dinamarquês.

Agradecimentos Embaixada do Ciclismo da Dinamarca
www.cycling-embassy.dk

fechar