Há 18 anos a terapeuta Bel Cesar ajuda pacientes terminais a se despedir com serenidade
Marcelo era um cara irônico, o típico gente boa. Nem a convivência com a Aids por oito anos abalou seu alto-astral. Mas era inevitável. Uma noite, sua mãe ligou do hospital, esbaforida. Quando a terapeuta de Marcelo chegou, ele já não podia falar e sua expiração estava mais longa. Ela pediu então que ele piscasse, caso pudesse escutá-la. “Só pra tirar um sarro, ele arregalou os olhos. Comecei a rir e falei: ‘Pô, cara, até quando você está morrendo?’. Aquilo quebrou o gelo. Fizemos então algumas visualizações e rezei mantras, acompanhada pelas pessoas em volta. Em poucos minutos, ele faleceu.” Quem atendeu ao chamado às pressas nessa noite fatídica foi Bel Cesar, psicóloga, musicoterapeuta e budista que, há 18 anos, se especializou em conduzir pacientes terminais a uma morte serena. Marcelo foi seu primeiro, mas muitos vieram depois, e Bel sempre ajudou-os, tornando realidade a máxima “Descanse em paz”.
Isabel Villares Lenz Cesar nasceu numa abastada família paulistana de seis irmãos. Seu avô materno, Luiz Dumont Villares, sobrinho de Santos Dumont, fundou a indústria de elevadores Villares no começo do século passado. Teve uma educação presbiteriana. “A espiritualidade fez parte da minha casa. A força de transformação sempre mexeu comigo, aprendi a olhar pra frente.” Desde cedo, teve contato com a música clássica. Aprendeu a tocar flauta e piano, assistia a concertos no Teatro Municipal. Na adolescência, decidiu trabalhar com musicoterapia e então aos 19 arrumou as malas e foi a Salzburg, na Áustria, estudar educação musical. Nesse período aparentemente tranquilo, a morte assombrou sua vida. O pai fora diagnosticado com leucemia. “Soube pouco antes da viagem. Mas minha família sempre deu força para irmos atrás do que acreditamos. Tinha que seguir”, diz ela. Morou fora dois anos e, quando voltou pela primeira vez, durante as férias, o pai estava no hospital, em estado grave. “Pude acompanhar seus últimos meses. E presenciei o instante em que ele parou de respirar.”
Mas não foi com a morte do pai que veio a inspiração para sua atividade. Dez anos mais tarde, em 1988, Bel ficou cara a cara com a própria morte. “Foi um episódio intenso. Tive muito medo de morrer e vi que não há sensação pior e mais solitária do que essa.” Foi tão forte que, mesmo com duas longas sessões de entrevista, a terapeuta não se sentiu à vontade para falar o que lhe aconteceu. Mas cravou: “Foi aí que bateu a vontade de ajudar as pessoas”.
Decisão tomada, a chance de pôr a ideia em prática veio apenas três anos mais tarde, conversando com um vizinho. Ele propôs a Bel que acompanhasse seu irmão, Marcelo, nosso colega de humor inabalável citado no começo do texto. Ao encontrá-lo, falou: “Olha, não sei como vai ser este trabalho, mas acho que a gente pode se ajudar”. Foram oito meses de encontros, noites em hospitais, exercícios de visualização e meditação. “Fui descobrindo sobre o que ele queria falar, como na terapia. O melhor deste trabalho é não ter a menor vontade de transformar a pessoa, porque aí ela se sente aceita.”
“O senso comum afirma que, a certa altura, não tem mais o que fazer. Não acredito nisso. Digo que sempre dá para ajudar a pessoa a se sentir menos sozinha e, assim, partir melhor”, diz. Para conseguir tal proeza, segue a intuição. “Não existe algo certo para dizer a alguém que está morrendo. Cada relação é única.” Apesar das saias justas, Bel gosta do que faz. “Se a natureza é cíclica, por que a nossa vida não seria?”
Pílulas de Katmandu
ara a terapeuta, no fundo, todos nós queremos ficar por aqui. “Até a pessoa que se mata não queria morrer. Queria, sim, outra vida. Quando a gente diz que não tem medo da morte, é a mesma coisa que dizer ‘não sinto raiva’. Coloca o objeto da raiva na sua frente para ver se não sente! Com a morte, é a mesma coisa: quando ela surge, imobiliza.” O que fazer, então? “Você tem de parar de lutar contra o que está vivendo. Se nego a realidade, fico atolada. Morremos como vivemos. Se você costuma levar sua mente pra cima, no fim ela irá também.”
Nessa última frase, desponta um traço determinante na vida e no trabalho de Bel, o budismo. A expressão “mente pra cima” se explica por aí. Segundo o budismo tântrico, a morte só ocorre depois que a mente “sutil” deixa o corpo. E a melhor porta de saída seria o topo da cabeça, pois conduz a um renascimento afortunado. Por esse motivo, após a parada do coração do paciente, Bel dá um puxão de cabelo e passa na cabeça algumas pílulas dissolvidas num creme. Produzidas em Katmandu e abençoadas por seu mestre, as tais pílulas contêm ingredientes considerados sagrados, como a água de lugares especiais. Ela também reza, faz gestos sobre o corpo e finaliza com um sino, visando atrair a mente “para cima”. Convida ainda a família a se reunir em volta da pessoa e dedica algumas palavras finais. “O ritual faz falta em nossa cultura. Nessas horas, fica uma coisa do tipo: ‘E agora?’. Se você consegue gerar um ambiente tranquilo, é melhor pra todo mundo.”
Mais: Bel é a mãe do lama Michel Rinpoche, que aos 8 anos teve uma visão nas grutas de Ajanta e Ellora, na Índia, durante uma viagem, em 1989. Naquele momento, o lama Gangchen Rinpoche, mestre de mãe e filho, afirmou que o menino havia feito uma regressão. Quatro anos depois, um estudo de como teriam sido as grutas 200 a.C. descreveu um lugar idêntico à visão de Michel. A partir de então, o lama Gangchen o reconheceu como a reencarnação de um mestre tibetano. Michel é filho de Bel com o também budista Daniel Calmanowitz, com quem teve ainda uma segunda filha, Fernanda. Bel também é fundadora – e por 16 anos esteve à frente – do Centro de Dharma da Paz Shi De Choe Tsog em São Paulo.
"Perguntei à família qual assunto ele gostava de conversar. Todo mundo riu e disse: Dinheiro!"
Em seu terceiro casamento, Bel Cesar mantém um projeto em Itapevi, interior de São Paulo, ao lado do atual marido, o consultor ambiental Peter Webb. Em 2004, juntos inauguraram o Sítio Vida de Clara Luz. No local, além de realizarem cerimônias budistas, retiros, plantios coletivos e outras atividades, construíram uma casa destinada a se tornar um Hospice, instituição para abrigar pacientes terminais que oferece cuidados paliativos e espirituais. Por enquanto, só um dos quartos está pronto para receber um paciente, com estrutura para instalação de aparelhos e vista para as árvores. Embora esse tipo de lugar seja comum nos Estados Unidos, na Europa e em outros países, no Brasil não é legalizado. “A gente precisa de médicos que topem brigar pela ideia.” Por questões burocráticas e falta de consciência geral, o projeto ainda não foi posto em prática.
Apesar da forte ligação com a religião, Bel não gosta que seu trabalho seja interpretado como uma ode ao budismo. “Meus pacientes não procuram o budismo. Eles querem se conhecer. O budismo me ensina a ser espontânea e autêntica”, diz a psicóloga, que atende a outros tipos de casos em seu consultório, em São Paulo. “Não sou esotérica. Sou pé no chão. Meu trabalho se baseia numa experiência direta, não sou a favor de dar um possível significado a coisas que não vivenciei.”
Músicas judaicas
Apesar do empenho, é claro que às vezes Bel baqueia. No ano passado, aos 77 anos, sua mãe fez um transplante de medula por conta da leucemia. “Ela está ótima agora. Mas ver pai e mãe sofrer é duro. Minha mãe foi de um exemplo. Só agradecendo”, ela diz, chorando.
Lidar com o luto de seus próprios pacientes também não é fácil. “Aquilo mexe comigo por dias, preciso trabalhar meu mundo interno o tempo todo.” Pergunto como consegue se recompor de tanta porrada. “Atendo um paciente terminal por vez, pois demanda uma energia extra, tenho de sair correndo a qualquer hora”, afirma. “De toda forma, durmo bem. Agora estou fazendo estudos sobre o stress e reconheço a enorme importância de uma boa noite de sono.”
Mesmo convivendo com a morte no dia a dia, Bel coleciona situações em que se sente recompensada. Lembra, por exemplo, de um senhor judeu, em estágio muito avançado de câncer. “Os parentes me chamaram porque ele estava com insônia, irritado. Nunca havia pensado na espiritualidade. Perguntei a eles sobre qual assunto ele gostava de conversar. Todo mundo riu e disse: ‘Dinheiro!’.” Sem saber o que dizer, Bel entrou na sala. “Oi. Estou aqui porque meu trabalho é ajudar pessoas que estão passando pela sua situação. Caso queira saber alguma coisa ou conversar.” Grogue devido à morfina, ele lhe ofereceu papel e caneta, mas não disse nada. “Me senti altamente inadequada, tive de respirar fundo para não sair correndo.” Depois de um tempo, ela lhe informou que estava indo embora.
“Posso voltar outro dia?”, perguntou.
“Quais são seus honorários?”, respondeu, em voz alta.
“Isso combino depois, com sua família”, argumentou.
“Não, minha filha, aqui quem combina tudo sou eu!”
“Tá certo. Custa X.”
“Tudo bem, pode voltar.”
Na segunda vez, mais consciente, ele virou-se em sua direção: “E, você, quem é?”. “Estive aqui na semana passada, o senhor estava sonolento. Não sei como te ajudar, mas estou aqui.” Aos poucos, o silêncio deixou de ser constrangedor. “Ele jamais iria se abrir comigo, mas eu colocava uma música, fazia relaxamento.” Um dia, Bel teve uma ideia: gravou um CD com músicas hebraicas infantis. No dia seguinte, uma pessoa da família disse que o homem havia deixado o álbum no repeat e que estava calmo. Após uma semana, faleceu. “Ele disse a uma amiga de infância que a única coisa que o fazia aceitar a morte era o fato de que iria encontrar sua mãe, que costumava cantar aquelas músicas pra ele.”