Cérebros, não balas

agora o soldado não é mais um cumpridor de ordens, mas alguém com discernimento para identificar ameaças e oportunidades

Principal referência da cultura corporativa, o exército mudou: agora o soldado não é mais um cumpridor de ordens, mas alguém com discernimento para identificar ameaças e oportunidades 

por RICARDO GUIMARÃES*

 

Caro Paulo,

 

Você sabe que o exército foi e é a referência para a formação da cultura organizacional que temos nas empresas. A estrutura hierárquica, a disciplina, as metas, os manuais, a carreira, o comando e o controle como princípio de gestão, tudo isso veio da primeira organização que existiu entre os homens. Até as igrejas, que já existiam antes das empresas, tiveram sua cultura dese-nhada a partir da máquina do exército.   

O resultado é que mesmo organizações criativas pautadas por valores humanos como a nossa Trip beberam dessa herança para se estruturar, se gerenciar e atuar no mercado. Conseqüentemente, nós como trabalhadores e dirigentes nessas empresas fomos preparados para dar certo nessa cultura. Desde a educação que vem de casa, passando pelas escolas, universidades e MBAs, até a integração dos funcionários nas empresas, tudo é um proces-so de preparação de indivíduos obedientes, hábeis e valentes que se colocarão a serviço da corporação que os reconhecerá por meio de promoções ao longo da vida.

Essa educação nos diz que os interesses da organização
prevalecem aos dos indivíduos, que é importante vestir a camisa da empresa, que não se deve levar seus problemas pessoais  para o serviço e que o manual é tudo o que você precisa saber para cumprir suas obrigações e se dar bem. Quer dizer, o indivíduo, produzido e "manualizado" como uma peça de engrenagem, deve se encaixar na estrutura e cumprir ordens sem fazer muitas perguntas.

Mesmo quem nunca esteve dentro de uma dessas estruturas já foi vítima dessa cultura quando ouviu do funcionário da empresa a triste escapada da responsabilidade pessoal: "Desculpe, estou apenas cumprindo ordens".

O mundo mudou. Muito se fala e se escreve sobre a necessidade de transformar o comportamento das empresas e das pessoas. Mas nos últimos tempos nada foi mais significativo e dramático do que a mudança percebida pelo exército. Por isso achei genial a reportagem sobre as guerras de hoje que a revista The Economist publicou com o título de "Brains not bullets" (Cérebros, não balas).

A tese é óbvia: considerando a velocidade com que o cenário muda atualmente, a vitória da guerra não é do mais forte, mas daquele que é mais ágil na atualização da sua estratégia. Isso tem a ver com tecnologia de comunicação. Eles explicam: o soldado que está na linha de frente usa um capacete com vários sensores conectados à central da estratégia. Ele deve identificar ameaças e oportunidades e comunicar à central, para que esta possa atua-lizar a estratégia e fazer ajustes em suas táticas. Isto é, se esse soldado não estiver lá no campo com seu cérebro funcionando em condições de discernir o que é relevante - e, entre o que é relevante, identificar o que é ameaça e o que é oportunidade -, a guerra está perdida.

A partir dessa constatação questiona-se a maneira como um soldado é preparado para trabalhar no exército hoje. Ele não pode mais ser concebido como uma peça de engrenagem - uma bala! - que é um artefato fabricado com a precisão necessária para se encaixar numa função e funcionar segundo o manual sem fazer perguntas. A bala, que por definição não tem cérebro, é utilizada pelo cérebro de quem tem o comando da engrenagem na mão. Bang! Vá lá e cumpra as ordens ou as metas.

 

PODER PARA A PONTA

Hoje, se um soldado não conhece e não aderiu à causa que a guerra serve e se não conhece a estratégia e as metas, ele não tem condições de discernimento para colher informações relevantes e repassar para a corporação. Não pode ser apenas uma bala que cumpre ordens. Tem que ser um cérebro. E não é apenas um cérebro que processa informações de maneira automática como um computador. Mas um cérebro com habilidades críticas, opinativas, intuitivas, capaz de ver contexto e significado nas informações e nos fatos disponibilizados.

O Departamento de Defesa dos EUA escreveu um texto importante sobre essa mudança e deu o título de "Power to the edge" (Poder para a ponta). Não existe alternativa se o objetivo é vencer: power to the edge! Mas dar poder e autonomia para pessoas que são acríticas, não compartilham as mesmas causas, não têm discernimento e só têm habilidade para cumprir metas pode ser um tiro no pé. Pode vencer uma batalha aqui outra lá, mas com o tempo perde a guerra. "Brains not bullets."

Finalmente a guerra presta algum serviço a favor da huma-
nização da sociedade, com a vantagem de começar pela
redefinição da nossa relação com o trabalho. Que os nossos soldados corporativos adotem esse novo grito de guerra:
Brains not bullets!

 

Abraço do amigo que vive em pé de guerra com o trabalho que diminui o homem.                  

 

Ricardo.

 

 

 

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