Depois de anos morando no exterior, voltar ao país significa encontrar um eco distante, uma sensação indefinível, uma imagem do passado prestes a desaparecer
São cinco da manhã, minha mala está pronta. Um táxi me levará ao aeroporto de Heathrow, onde embarcarei para o Brasil. O tema de minha vida é a ida. Ida sem volta. Tenho que me flagrar nesta hora.
Contando os minutos para sair de casa, percebo que, com o passar dos anos, o Brasil para onde volto foi ficando cada vez menos real – uma entidade sem corpo geográfico, cultura e economia. O país é só um eco distante e borrado. Uma sensação indefinível. Uma ansiedade surda. Sem guerras nem cataclismos, um dia desses periga o Brasil desaparecer de vez. Não consigo flagrar nada.
***
São oito da noite e já estou há nove horas esperando a conexão que me levará a São Paulo. Longe dos olhos, longe do coração, o mundo todo. Entre os passageiros que esperam entediados no portão de embarque, muitos rostos brasileiros: o casal de faxineiros de Dublin que leva o filhinho de poucos meses para conhecer os avós em Goiânia, o traveco paraense que à casa torna falando com sotaque italiano e carregando um chiuaua no colo, dois dekasseguis de Limeira que fi zeram escala em Paris e aproveitaram para ver o Louvre, uma família de judeus ortodoxos voltando de Israel para Higienópolis, a verdadeira terra prometida. Que bom que o Brasil é qualquer nota.
No jornal Libération uma matéria sobre o boom econômico brasileiro. Poços de petróleo, álcool, commodities, carros blindados e helicópteros privados. O Brasil de Lula parece um jovem que entrou na faculdade, arrumou namorada, ganhou um carro zerinho do pai e pela primeira vez na vida se enxerga como homem.
***
São dez da manhã e escrevo no quarto de hóspedes da casa dos meus pais. Eles estão velhinhos e amanhã eu faço 47 anos. Por toda parte móveis, cheiros e objetos que reconheço. Estou espalhado por toda parte, não me enxergo em nada. Que saco! Será que nunca vou sair da adolescência?
***
Dois dias depois e ainda não consegui dormir. Li não sei onde que, quando as primeiras ferrovias foram construídas nos Estados Unidos, os índios navajos, depois de pegarem um trem e alcançarem seu destino, ficavam por horas parados na estação esperando que seus espíritos que ficaram para trás também chegassem e se reunissem aos seus corpos. Meu espírito está no meio do Atlântico.
Só comendo pãozinho na chapa com queijo Polenguinho e um pingado na padoca eu e a nação nos reencontramos e começamos a fazer algum sentido. Como é bom voltar pra casa.
*HENRIQUE GOLDMAN, 46, cineasta paulistano radicado em Londres, está de volta a seu país para filmar a história de Jean Charles, o brasileiro morto pela polícia inglesa. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br
Contando os minutos para sair de casa, percebo que, com o passar dos anos, o Brasil para onde volto foi ficando cada vez menos real – uma entidade sem corpo geográfico, cultura e economia. O país é só um eco distante e borrado. Uma sensação indefinível. Uma ansiedade surda. Sem guerras nem cataclismos, um dia desses periga o Brasil desaparecer de vez. Não consigo flagrar nada.
***
São oito da noite e já estou há nove horas esperando a conexão que me levará a São Paulo. Longe dos olhos, longe do coração, o mundo todo. Entre os passageiros que esperam entediados no portão de embarque, muitos rostos brasileiros: o casal de faxineiros de Dublin que leva o filhinho de poucos meses para conhecer os avós em Goiânia, o traveco paraense que à casa torna falando com sotaque italiano e carregando um chiuaua no colo, dois dekasseguis de Limeira que fi zeram escala em Paris e aproveitaram para ver o Louvre, uma família de judeus ortodoxos voltando de Israel para Higienópolis, a verdadeira terra prometida. Que bom que o Brasil é qualquer nota.
No jornal Libération uma matéria sobre o boom econômico brasileiro. Poços de petróleo, álcool, commodities, carros blindados e helicópteros privados. O Brasil de Lula parece um jovem que entrou na faculdade, arrumou namorada, ganhou um carro zerinho do pai e pela primeira vez na vida se enxerga como homem.
***
São dez da manhã e escrevo no quarto de hóspedes da casa dos meus pais. Eles estão velhinhos e amanhã eu faço 47 anos. Por toda parte móveis, cheiros e objetos que reconheço. Estou espalhado por toda parte, não me enxergo em nada. Que saco! Será que nunca vou sair da adolescência?
***
Dois dias depois e ainda não consegui dormir. Li não sei onde que, quando as primeiras ferrovias foram construídas nos Estados Unidos, os índios navajos, depois de pegarem um trem e alcançarem seu destino, ficavam por horas parados na estação esperando que seus espíritos que ficaram para trás também chegassem e se reunissem aos seus corpos. Meu espírito está no meio do Atlântico.
Só comendo pãozinho na chapa com queijo Polenguinho e um pingado na padoca eu e a nação nos reencontramos e começamos a fazer algum sentido. Como é bom voltar pra casa.
*HENRIQUE GOLDMAN, 46, cineasta paulistano radicado em Londres, está de volta a seu país para filmar a história de Jean Charles, o brasileiro morto pela polícia inglesa. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br