Ao escrever seu nome num muro de malta Daniel Kuntze deixou registrado que é um animal
Não conheço Daniel Kuntze, nem quero conhecer. Só sei que ele deixou registrado que é um animal ao escrever seu nome em letras garrafais num muro da capital de Malta
Daniel Kuntze é um animal. Talvez ele não saiba, mas provou isso ao deixar escrito, precisamente em 22 de abril de 2011, seu nome na superfície de um muro em Valletta, capital de Malta. Valletta é uma daquelas cidades que têm um pedaço de história escrito em cada esquina. O forte São Telmo resistiu, em 1565, por vários meses à investida dos turcos durante o grande Sítio de Malta – momento épico em que alguns cavaleiros da Ordem de Saint John ajudados por outros tantos malteses enfrentaram 30 mil homens das tropas turcas armadas até os dentes.
Foram os malteses também que anos mais tarde não aguentaram a pilhagem das tropas francesas que Napoleão tinha deixado na ilha em seu caminho ao Egito. Se revoltaram, jogaram o governador pela janela – literalmente – e com a ajuda dos ingleses fizeram da ilha uma fortaleza inexpugnável. Durante a Segunda Guerra Mundial, desde os túneis escavados em seus bastiões, o general Eisenhower, tendo sob seu comando Patton e Montgomery, planejou e comandou a invasão das tropas aliadas na Sicília. Antes disso os malteses suportaram três anos seguidos de bombardeios diários pelas forças alemãs.
Valletta hoje em dia é um lugar adormecido entre os raios de sol escaldantes e o azul do mar Mediterrâneo. Os fantasmas de seu passado se cruzam na rua com os turistas que olham em volta sem vê-los. Os rastros são fáceis de ser identificados. Em uma parede pode-se ler a placa “Napoleão dormiu aqui”, em outra se pode contemplar uma das telas que Caravaggio pintou em sua desastrada passagem pela cidade (1). Em outro lugar, a placa indica onde jazem os restos de Jean Parisot de la Valette, o grão-mestre da Ordem dos Cavaleiros de Malta que comandou a resistência contra os turcos.
ESTUPIDEZ
Em uma das muralhas da ilha, se levanta um monumento aos que tombaram durante a Segunda Guerra Mundial. No topo de uma escadaria um sino enorme está pendurado em uma torre. A construção guarda a estátua de uma figura deitada e que tem na sua base uma placa de bronze onde está escrito, com toda a pompa e circunstância do império britânico, “At the going down of the Sun and in the morning we will remember them” (2). É lá, ao lado da placa, sobre o muro que cerca o monumento (3), que alguém chamado Daniel Kuntze deixou seu nome e a data de sua façanha, escrito em letras de forma. Não tem como não ver. Quando você olha para o forte de Santo Ângelo, do outro lado da Grand Harbour, a assinatura de Kuntze no parapeito do monumento, riscado com força e determinação, é o que mais chama a atenção.
Não conheço Daniel Kuntze, nem quero conhecer. Só sei que ele deixou atestado, em letras garrafais, que ele é um animal. Seu nome, iluminado pelo sol maltês do meio-dia e gravado na dureza do concreto, é o atestado de sua própria estupidez.
1) The Beheading of Saint John Baptiste, a única tela de Caravaggio assinada por ele, está em exibição hoje no mesmo lugar onde foi pendurada originalmente: o oratório da catedral de Saint John em Valletta.
2) Ao pôr do sol e ao amanhecer lembraremos deles.
3) É o Siege Bell Memorial.
*J. R. Duran, 55, é fotógrafo e escritor www.twitter.com/jotaerreduran