Caramuru: ”Governos e empresas, mesmo que sejam transparentes, precisam guardar segredos”
Há quase um ano, a Trip publicou uma bela entrevista com Julian “WikiLeaks” Assange, feita pelo redator-chefe Lino Bocchini. Quando soube do tema da presente edição, imediatamente me lembrei de uma frase dita por Assange na ocasião: “Transparência é para os governos e as grandes corporações, privacidade é para os indivíduos”. Uma bela frase, forte e de impacto, mas que já na época me incomodou. É por isso que, com o tema do anonimato sobre a mesa, resolvi voltar a ela. Como toda frase de impacto, a de Assange condensa muita coisa, mas, ao fazê-lo, acaba por sofismar um debate complexo que está hoje, como há um ano, na ordem do dia.
Você pode lamentar que existam governos; pode exigir que sejam transparentes; mas, se eles existem, mesmo transparentes, precisarão guardar alguns segredos. Isso está na lógica da existência do Estado, e não existe nem nunca existiu nenhum país, no mundo, por mais democrático, que possa ter aberto mão disso. Por quê? Lord Palmerston, que foi primeiro-ministro britânico na época da rainha Vitória, no apogeu do império, também disse uma bela frase: “Países não têm amigos permanentes, têm apenas interesses permanentes”. Ao proteger certos segredos, os governos muitas vezes estão menos preocupados em esconder coisas de seus cidadãos do que em ocultá-las de seus inimigos ou mesmo aliados. Isso faz parte do jogo, goste-se ou não, e não foram Bush II ou Obama que inventaram. O que uma democracia deve fazer é fixar um prazo para que qualquer segredo seja tornado público. Não confundir com nosso direito de checar as contas públicas e saber como está sendo gasto o dinheiro dos nossos impostos. Isso é transparência. Mas abrir os e-mails que o governo troca com as embaixadas é outra coisa, é espionagem, que pode até mesmo, no limite, levar a uma guerra.
Espionagem e sabotagem
Você pode lamentar que existam empresas, pode exigir que sejam transparentes, mas, se elas existem, e mesmo transparentes, precisarão guardar alguns segredos. Você tem o direito de saber se uma empresa cumpre suas obrigações; se ela produz de modo sustentável; se é boa empregadora, como recicla seus descartes etc. Mas, se você invadir e divulgar arquivos com dados financeiros, de vendas, pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, você estará roubando informações estratégicas que, mais que aos cidadãos, interessam aos concorrentes, muitas vezes estrangeiros. Tal ato, de novo, não será transparência, mas espionagem e sabotagem, e pode até mesmo levar aquela empresa à falência.
Você pode lamentar que sua privacidade não seja completa; deve até lutar para defendê-la com unhas e dentes, o máximo que puder. Mas, na vida em sociedade, não existe a possibilidade de uma pessoa não ter limites em sua privacidade, pelo simples motivo de que parte do que você faz interferirá na vida de outros. Ou seja, você jamais poderá guardar todos os seus segredos. Isso vale até para um namoro ou casamento, mas o que pega mesmo é que boa parte das atividades criminosas, ao vivo ou pela internet, estaria protegida do alcance da lei se não houvesse limites para a privacidade (e o anonimato) dos indivíduos.
É óbvio que deve haver transparência e controles para as práticas dos governos e das empresas. É óbvio, também, que nossa privacidade enquanto cidadãos precisa ser protegida, especialmente contra governos e empresas excessivamente xeretas e bisbilhoteiros. Mas não dá pra liberar geral as informações dos governos e das empresas nem para garantir sob qualquer condição a privacidade das pessoas. Encontrar o equilíbrio certo entre divulgação e segredo é um dos eternos desafios das democracias, que ficou ainda mais relevante (e complicado) nos atuais dias digitais. O resto, o Assange que me desculpe, é frase de efeito.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br