Entrevista com Fast Eddie, líder dos Black Trunks e figura ativa no localismo havaiano
Fundador dos black trunks havaianos - clube campeão de tretas com australianos, brasileiros e estrangeiros em geral -, Eddie Rothman é considerado o patriarca do localismo no surf. Exemplo máximo de intolerância no esporte ou de defesa do território dos locais? Aos 62 anos, e sem planos de baixar a guarda, Fast Eddie dá sua versão.
Na varanda de sua casa, Edward Rothman olha para o mar azul-turquesa de V-Land, North Shore da ilha havaiana de Oahu, e reflete sobre sua história com a religião: “Eu tentei ser um cristão. Cheguei até mesmo a me corresponder com a madre Teresa de Calcutá, abriguei duas ou três freiras da ordem dela aqui. Mas religião é uma estupidez. Mais pessoas morreram em nome do cristianismo do que por qualquer outro motivo”.
Pela fama que Eddie carrega, é um espanto ouvir palavras tão sensatas saindo de sua boca. Mas logo uma série de “fuck you”, “what the fuck” e “fucking kooks” com voz de trovão enferrujado vem restabelecer a ordem das coisas. Conhecido pela alcunha de Fast Eddie, Rothman é apontado no North Shore como patriarca do localismo – algo que ocorre em todo esporte, em qualquer canto do mundo, mas que se manifesta de forma particularmente agressiva no surf havaiano. Por ironia do destino, Eddie é um haole. Nasceu na Filadélfia e cresceu no sul da Califórnia até ser expulso de casa. Mudou-se para o Havaí aos 13 anos e foi criado por uma família local.
Em 1976, ao lado dos amigos Bryan Amona, Terry Ahui e Clyde Aikau, Fast Eddie fundou o Hui O He’e Nalu, algo como Clube dos Deslizadores de Ondas em português. Mais tarde, o grupo ficou conhecido apenas como Da Hui, ou “black trunks”, pelas bermudas pretas que vestiam quase como um uniforme oficial. O mesmo nome da marca de moda esportiva que, algumas décadas depois, se tornaria um lucrativo negócio sob o comando de Eddie.
“O Da Hui foi criado porque os surfistas de fora estavam desrespeitando os havaianos, gritando com as pessoas na hora de pegar ondas, jogando lixo em qualquer lugar. Fuck you! Os locais saíam do trabalho, iam dar uma surfada e tinham que ficar brigando pelas ondas com uns estrangeiros arrogantes. Eles riam dos locais, a gente dava porrada, e eles paravam de rir, viam que a coisa era séria. Primeiro foram os prós, depois os pregos.”
Rothman já foi processado por tráfico de cocaína, extorsão e, nas palavras da acusação, por “manter o North Shore num estado feudal”
Quando fala dos prós, Eddie se refere à primeira geração de haoles que bateu de frente com o localismo havaiano: os australianos Mark Richards, Ian Cairns, Wayne “Rabbit” Bartholomew e Peter Townend e os primos sul-africanos Shaun e Michael Tomson. Eles chegaram a Oahu em 1974, chamaram a atenção da imprensa com seu estilo agressivo nas ondas e despertaram a fúria de locais como Eddie. Depois de constantes ameaças de morte e confrontos físicos (Rabbit perdeu um dente e quase foi afogado depois de declarar que os australianos eram os melhores surfistas no Havaí), eles seriam banidos da ilha em 1976. Foi necessário que o herói local Eddie Aikau negociasse um acordo de paz para que os haoles pudessem voltar – uma trajetória resgatada pelo documentário Bustin’ Down the Door (2009), que compara a invasão estrangeira no North Shore ao desbravamento do velho oeste americano.
TRETA COM PICURUTA
Os brasileiros também não tiveram moleza com os Da Hui. No fim dos anos 80, Almir Salazar surfava uma onda em Rocky Point e, ao desviar de um black trunk que voltava ao outside, deu uma lavada nele. Em pouco tempo, o grupo se juntou na praia para pegar Almir, seu irmão Picuruta e qualquer brasileiro que pintasse pela frente. Rolou até o boato de que Fast Eddie teria oferecido US$100 por brasileiro esmurrado. Para sair da ilha, os irmãos tiveram que recorrer ao consulado dos Estados Unidos no Brasil, porque nem a polícia havaiana estava disposta a ajudá-los. Picuruta ficou quatro anos sem colocar os pés no Havaí. Anos mais tarde, ele seria patrocinado pela marca Da Hui.
“Salazar é um bom amigo meu”, diz Eddie, referindo-se a Picuruta. “Todo mundo vem me falar desse incidente, mas a verdade é que eu não me lembro. Deve ter acontecido com outra pessoa. Eu recordo de uma outra briga com brasileiros, eram quatro de nós contra 20 deles, eles chamaram para a porrada e nós não fugimos.”
Não seria o último incidente entre brasileiros e black trunks. No Rip Curl Pipe Master de 2005, Makua Rothman, filho de Eddie, deu um tapão em Paulo Moura depois de uma briga na água. Dois anos depois, de novo em Pipeline, foi a vez de Neco Padaratz ser atacado na água e perseguido na areia por Sunny Garcia, porque o havaiano achou que o brasileiro interferiu em sua onda.
“Você chama isso de briga? Um soco, um tapa? What the fuck! Isso não é nada. É só o hype da mídia. Se você quer ver uma briga, vá a um bar havaiano para ver as porradas entre os locais. Até as garotas havaianas brigam mais pesado que os surfistas de fora”, desdenha Eddie.
Quando diz que um tapa ou um soco são peixe pequeno, Rothman pode estar falando com conhecimento de causa. Em 1987, foi processado por tráfico de cocaína, por extorsão de promotores de eventos de surf e, nas palavras da acusação, por “manter o North Shore num estado feudal durante anos”. Em 1999, foi preso depois de uma queixa por roubo, sequestro e extorsão. Ele e dois amigos foram acusados de ameaçar de morte os moradores de uma casa de Sunset Beach para que eles lhes entregassem um caminhão. Quatro pessoas teriam sido espancadas. Rothman foi inocentado por falta de provas; os acusadores não encontraram testemunhas, e as vítimas abandonaram o Havaí. São assuntos que Eddie não gosta de abordar em entrevistas.
“Você tem algum arrependimento quando olha para trás?”, eu pergunto. “Eu não olho para trás. É como em Pipeline: se você olhar para trás a onda te pega. Eu parei na cadeia algumas vezes, então teria agido de forma diferente em algumas ocasiões. Mas acho que nunca fiz nada de errado. Algum arrependimento? Eu deveria ter trazido o jiu-jítsu para o Havaí nos anos 70, e não nos 80.” Apreciador e praticante da arte marcial, como boa parte dos black trunks, Eddie patrocina, através da Da Hui, vários lutadores, incluindo o campeão brasileiro Anderson Silva.
Quando eu questiono se ele continua com o mesmo poder sobre o North Shore que tinha nos anos 70 e 80, Eddie mais uma vez mede as palavras. “Eu tenho poder sobre a minha casa. Não posso falar que mando em ninguém, posso ser preso pelas coisas que disser na entrevista. Hoje tudo é regulado pelos sindicatos de fora ou pelos moradores brancos, que roubaram os empregos e as casas dos havaianos no North Shore. Querem controlar tudo, mas no mar é diferente. Na água eles não podem mandar.”
Aos 62 anos, Eddie continua surfando sempre que dá onda no North Shore, seja no stand-up paddle ou até com sua pranchinha 6’6. “Ontem mesmo eu estava no paddle em V-Land e um francês empurrou minha prancha para pegar uma onda. Só que ele não pegou! Fuck you! E agora está cheio de mulheres na água. Poucas sabem surfar. Meu problema é com os pregos que não sabem se comportar no mar, que tentam pegar ondas que não estão preparados para surfar. Fucking kooks! Eles têm que ir para outro lugar.”
Kala Alexander ganhou papéis em filmes como "A Onda dos Sonhos". Mas também pode ser visto em um vídeo na internet espancando um surfista
Hoje, Eddie atua apenas como conselheiro dos black trunks, um clube com mais de 400 membros que virou um marco da cultura pop (homenageado pela banda punk Offspring em “Da Hui”: “I won’t fuck with Da Hui/ Because Da Hui will fuck with me”) e também um belo negócio. Presente em 19 Estados americanos e 12 países, a Da Hui é uma marca pequena comparada a gigantes como Billabong ou Quiksilver, mas é muito bem-sucedida no quesito “vender um estilo de vida”; nesse caso, um lifestyle casca-grossa.
DISCÍPULO FIEL
Os fundadores do Da Hui já estão na terceira idade, os novos integrantes estão preocupados em manter seus patrocínios, e a fama de agressividade do clube se atenuou. Mas há sempre um discípulo mais jovem disposto a manter a chama viva. Nenhum deles parece mais dedicado do que Kala Alexander – um dos grandes surfistas de onda grande de Oahu e também o criador do Wolf Pak, grupo que pretende continuar a tradição localista dos Da Hui. Com tatuagens polinésias espalhadas pelo corpo, Kala chamou a atenção dos produtores de Hollywood e ganhou papéis em filmes como A Onda dos Sonhos (2002) e Ressaca de Amor (2008). Ele também pode ser visto em vídeos na internet em papéis não apropriados para menores; num deles, espanca um surfista louro com alguns amigos.
Protetor e vizinho de Kala, Fast Eddie diz que a violência faz parte da natureza humana. “É uma questão de sobrevivência das espécies. Um peixe come o outro, um gorila briga com um macaco, árabes e judeus se matam sem saber o motivo.” Por um momento, como quando falou das cartas de Madre Teresa, Rothman parece abandonar o personagem que construiu ao longo de cinco décadas de Havaí. “As pessoas vêm aqui me perguntar o que eu acho das brigas com os australianos, com os brasileiros. Isso não tem a mínima importância. Veja o que está acontecendo no Japão... Por que inventaram as usinas nucleares se nós temos a energia do sol, dos ventos? O mundo está acabando e nós estamos preocupados com o pequeno mundo do surf. As ondas continuam aqui e um dia vão acabar engolindo a terra. O oceano sabe cuidar de si mesmo.”