A tragédia da vida privada

Em nome da sua segurança, cada passo seu é monitorado

Em nome da sua segurança, cada passo seu, cada movimento, cada atividade passaram a ser monitorados por câmeras, radares e scanners espalhados pelo mundo inteiro. Não se engane: as mentiras não acabarão nunca, mas o segredo já era

Mentira haverá sempre; segredos, nunca mais. Por um lado, superada a casa dos 7 bilhões de humanos na Terra, nosso planeta virou uma grande casa de cômodos, com todo mundo se amontoando uns sobre os outros. Metáfora? Vá a lugares tão diferentes entre si quanto Tóquio, Praia Grande ou Complexo do Alemão e tire suas próprias conclusões. Mas pior do que a aglomeração são as tecnologias digitais que existem para filmar, fotografar, registrar e rastrear. Na internet, tudo o que você faz é facilmente monitorado e, pior, cada coisinha que você postar vai ficar lá para sempre. Os bancos centrais acompanham todas as suas movimentações financeiras e as câmeras, os radares e os scanners vão segui-lo o tempo todo, por todos os lugares. Sim, gênio, acorde para a realidade: a privacidade, que é a mãe do segredo, morreu.

O que muita gente não sabe é que a privacidade é uma ideia relativamente nova. Embora o conceito já existisse antes (a palavra vem do latim), ela, como a conhecemos hoje, é uma conquista das revoluções burguesas do século 18, fazendo parte de um conjunto de medidas que pretendiam proteger os indivíduos contra a vontade de xeretar a vida alheia de governos, empresas e vizinhos. Mas desde o início ela sofreu ataques, porque, é óbvio, governos, empresas e vizinhos gostam de preservar os próprios segredos, mas não os alheios.

No século 20, a privacidade quase foi destruída pelos movimentos políticos de extrema direita e esquerda, sempre em nome do “bem comum”. No nosso século 21, porém, os mesmos governos que travaram as guerras em nome (também) da preservação das liberdades individuais passaram a dizer que as coisas não eram bem assim. É pela sua segurança, eles alegaram. E, em nome da sua segurança, cada passo seu, cada movimento, cada atividade passaram a ser monitorados. E serão cada vez mais, com tecnologias mais invasivas e bancos de dados mais inteligentes.

Os radares nas estradas logo terão marcadores de percurso, de forma que eles saberão se você ultrapassou o limite de velocidade em qualquer dos trechos, e não apenas onde o radar está. É questão de tempo e seu documento de identidade estará inserido no seu corpo, contendo dados sobre hábitos de consumo, saúde, situação tributária, e, é claro, GPS. Sim, o seu convênio médico saberá (em tempo real) onde e quando você anda abusando da cerveja e da batatinha frita. E, não, isso não é ficção científica.

EGITO E WIKILEAKS

Existem, é claro, os otimistas. São os que veem na internet um potencial libertador para a humanidade e se entusiasmaram com as novas tecnologias ajudando as pessoas nos protestos do Irã, da Tunísia e do Egito. Na mesma linha, acham que o WikiLeaks nos vingou, fazendo o dia da caça na questão da privacidade. Eu mesmo já pensei assim, mas mudei de ideia. É claro que toda arma pode ser usada contra quem a criou etc. Mas os governos autoritários têm infinitas artimanhas para se defender e se reinventar, e o fato de o WikiLeaks ter exposto alguns segredos do governo norte-americano apenas mostrou o quanto a privacidade é coisa do passado. Se eles, que são eles, foram expostos, imagine quais são as nossas chances, pessoas comuns, de nos proteger. E o pior é que podemos berrar, estrebuchar, achar ruim, mas não vai ter jeito, as coisas só vão piorar. Claro, você estará mais seguro e nem precisará ver a polícia, ali na esquina, porque ela estará vendo você, o tempo todo, pronta para vir em seu auxílio em caso de necessidade. Mas ela também verá quando você tirar meleca do nariz ou coçar o saco. Enfim, não se engane: as mentiras não acabarão nunca, mas o segredo já era.

 

 

 

 

fechar