Do Tablado a Cannes
Uma das protagonistas de A Vida Invisível, Julia Stockler defende a liberdade de expressão e conta como foi atuar com Fernanda Montenegro
Sexta-feira, 18 de outubro, 10h50, hotel Renaissance, São Paulo. Julia Stockler desce as escadas rolantes acompanhada de Karim Aïnouz, seu diretor no longa A Vida Invisível. O filme, com estreia prevista para 21/11, foi vencedor do prêmio Um Certo Olhar, em Cannes, este ano, e o indicado pela Academia Brasileira de Cinema para concorrer ao Oscar 2020.
Vinda do Rio na noite anterior, a atriz carioca tinha um longo dia à sua frente. Antes da coletiva de imprensa, Julia conversou com a Tpm. “A minha sorte é que isso tudo está acontecendo nos meus 31 anos e não nos meus 18. Hoje eu sei como me colocar”, diz, respirando fundo, com a postura encaixada, benefícios do yoga. Na noite daquela sexta-feira, ela ainda iria à sessão de gala, parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que marcaria a pré-estreia do filme.
A projeção de A Vida Invisível lhe rendeu um convite para atuar em Éramos Seis, novela das 18h exibida pela Globo desde setembro. E em outubro, o longa não só recebeu o prêmio Espiga de Prata na Semana Internacional de Cinema (Semince), em Valladolid, na Espanha, como Julia dividiu com Carol Duarte, que vive sua irmã no filme, a estatueta de melhor atriz.
Há menos de dois anos, quando seu talento ainda era circunscrito aos palcos do Tablado, tradicional escola carioca – que formou Gregório Duvivier, que interpreta seu cunhado em A Vida Invisível –, Julia não podia imaginar que em tão pouco tempo teria cenas com Suzana Vieira e Glória Pires (com quem contracena na novela) e Fernanda Montenegro (que faz uma participação especial no filme de Karim) no currículo. Como seria de se esperar, ela revela ter ficado estremecida ao filmar com a colega de elenco.
“Fiquei muito nervosa. Quando a gente estava para fazer a cena sentadas à mesa, o Karim perguntou para nós duas: ‘Tudo bem, entenderam?’. Eu, na minha ingenuidade, respondi: ‘Entendi tudo perfeitamente’. Na mesma hora Fernanda falou: ‘Eu ainda não entendi muito bem, desculpa, mas eu vou tentar fazer o meu melhor’. Quando ouvi a maior atriz do Brasil, aos 90 anos, dizer isso com essa humildade, percebi o quanto eu ainda tenho para aprender.” Para Julia, a ficha da possível indicação ao Oscar ainda não caiu totalmente. “Ah”, suspira. “A gente não sabia nem que ia para Cannes, e ganhamos. Não consigo nem pensar no Oscar.”
A entrevista é interrompida com a chegada de Rodrigo Teixeira, atual midas do cinema brasileiro, produtor de A Vida Invisível e do premiado Me Chame pelo seu Nome (2017) e do blockbuster Ad Astra (2019), com Brad Pitt. Eles se cumprimentam com cumplicidade.
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Julia cresceu no Leblon, onde hoje mora em um apartamento com seus três cachorros, e costuma frequentar os botecos de Botafogo. “Sou cervejeira.” Seu interesse pelas artes já começou em casa, com o pai, professor e diretor de teatro, e a mãe, filósofa. Formou-se em cinema na PUC-RJ, onde também fez pós-graduação em arte e filosofia, e em teatro na Universidade, instituição de ensino carioca. Há dez anos dá aula no Tablado.
Julia ficou sabendo da abertura de um teste no novo filme de Karim, de O Céu de Suely (2006) e Praia do Futuro (2011), no começo de 2018. Por pouco não se candidatou. “Você tinha que mandar um vídeo olhando para a câmera durante dois minutos em silêncio. E depois tinha que fazer outro vídeo com um texto decorado enquanto descascava uma batata. Falei: ‘Não vou fazer. Todo mundo quer trabalhar com o Karim e eu sou só uma atriz desconhecida do Tablado. Não vão me querer e estou com preguiça’.”
Ela ainda não imaginava que chamaria a atenção do cineasta justamente por não seguir as instruções para o teste. “Depois de um mês, eu estava voltando de uma festa totalmente alvoroçada e falei: ‘Quer saber?, vou mandar isso agora’. Aí lá fui eu de pijama, com a maquiagem borrada, abrir a geladeira, mas não tinha cebola para cortar, não tinha batata, não tinha nada. Aí eu pensei, ‘vou fazer o que eu estou a fim de fazer’, que era fumar um cigarro. Falei o texto toda destruída fumando um cigarro e mandei para o teste. Meses depois, o Karim me falou: ‘Vi uma faísca da personagem, que é desvirtuar. Você me ganhou aí’.”
Karim chamou Julia para dar a boa notícia de que ela tinha passado no teste em 15 de março de 2018, dia do sepultamento de Marielle Franco. A atriz diz ter agradecido pela sua primeira oportunidade de atuar em um longa e partido para a manifestação contra a execução da vereadora.
RESISTÊNCIA
“Se existe alguma arma para as pessoas que querem lutar, que querem resistir, essa arma é a arte. Isso nos une.”
Julia Stockler
Adaptação do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha, o filme conta a comovente história de duas irmãs a partir do início dos anos 50. Elas se separam pela primeira vez na vida quando a jovem Guida se apaixona por um marinheiro grego e resolve embarcar com ele rumo ao Mediterrâneo. Meses depois, ela reaparece grávida e desiludida no Rio de Janeiro, e seu pai, Manuel (António Fonseca), um imigrante português, não a aceita de volta em casa. Mais do que isso, sabendo da forte ligação entre as duas filhas e com medo de a mais velha influenciar a mais nova, ele mente que Eurídice (Carol Duarte) foi para Viena estudar piano.
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Orgulhosa e ressentida, Guida batalha para criar um filho sozinha trabalhando em uma fábrica, enquanto procura desesperadamente contatar a irmã, que também não sabe que ela está no Brasil, por meio de cartas. Eurídice persegue o sonho de se tornar concertista de piano, à revelia do marido abusivo e tóxico interpretado por Duvivier. O longa expõe uma sofisticada e contundente crítica ao patriarcado ao narrar a história de duas mulheres que tiveram seus destinos definidos por homens
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“As mulheres eram presas em sua condição de mulher. O filme expõe o quão dura é essa nossa estrutura social”, avalia Julia. “É um filme de época, mas fala sobre hoje. O ponto em que toca em especial é que as mulheres de 1950 para cá passaram por muitas mudanças, se impuseram muito, buscaram esse lugar de igualdade. E os homens não mudaram nada, não houve nenhuma evolução no sujeito masculino. Isso é muito assustador", diz. "Quando você vê o personagem do Gregório, aqueles casamentos de antigamente, pensa: ‘Esse tipo de coisa acontece agora’. Poderia ser o meu namorado, por exemplo. A Guida abre esse lugar de mãe solteira, de sair da família tradicional brasileira, ela é uma revolucionária."
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querem mesmo o controle das próprias narrativas
Assim como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, também premiado em Cannes, A Vida Invisível vem acompanhado de um discurso de resistência, que se opõe aos cortes nos fomentos à cultura do governo Bolsonaro. “O Oscar seria um tapa na cara do governo”, disse Teixeira, antes da pré-estreia no Municipal.
Julia se mostra disposta à luta. “Temos um governo que coloca a Fernanda Montenegro de bruxa”, diz, em referência aos ataques à atriz publicados nas redes sociais pelo diretor do centro de artes cênicas da Funarte, Roberto Alvim, em setembro. “A liberdade de expressão voltou a ser um valor negociável, quando deveria ser inegociável. No Rio, a gente está vivendo essa loucura de peças censuradas, como Caranguejo Overdrive, do Pedro Kosovski”, denuncia. “Se existe alguma arma para as pessoas que querem lutar, que querem resistir, essa arma é a arte. Isso nos une.”
Créditos
Imagem principal: Sérgio Baia/Divulgação