Novo filme a caminho e um convite para o júri do Oscar. A cinesta Anna Muylaert está com a agenda cheia, mas voltou para a noite paulistana para rever tudo que sabia sobre sexualidade e família
A cineasta Anna Muylaert tem saído mais a noite nos últimos anos, conhecido mais pessoas e revisto muita coisa que sempre acreditou. Da vida noturna, captou especialmente uma nova maneira de enxergar a sexualidade. “Comecei a avaliar que a questão de gênero não se resume a uma lógica binária”, diz. As conclusões das madrugadas ajudaram na elaboração de Mãe Só Há Uma, novo filme que a diretora assume após o sucesso de Que Horas Ela Volta?.
Neste novo enredo, o protagonista Pierre (Naomi Mero) inicia uma jornada para conhecer a família biológica e compreender sua identidade de gênero após a descoberta de que fora sequestrado pela mãe ainda quando bebê. A inspiração veio do famoso "Caso Pedrinho", com uma pitada das noites de Muylaert. “Decidi atualizar a história do Pedrinho com uma nova realidade”, explica. [Osvaldo Borges Júnior foi sequestrado, quando bebê, em 1986, em um hospital de Brasília. A mãe de criação, Vilma Martins Costa, o batizou como Pedro. Vilma foi encontrada e condenada como a sequestradora de Pedro que, quando foi encontrado pelos pais biológicos, em 2002, tinha 16 anos] .
Oscar
No fim de junho, Muylaert foi convidada para compor o júri do Oscar após a premiação receber severas críticas por manter um corpo de jurados formado por maioria de homens brancos. Uma campanha de boicote à premiação, capitaneada pela hashtag #OscarsSoWhite, pediu mais diversidade na premiação. Não à toa, nenhum ator, atriz ou diretor negros foram indicados na edição de 2016; mulheres diretoras também ficaram fora do páreo. “Soa como um grande pedido desculpa, ao mesmo tempo que é um grande passo para melhorar a representatividade”, pontua Muylaert. No ano passado, o longa de maior projeção da diretora, Que Horas Ela Volta?, a escolha brasileira para concorrer a uma vaga entre os indicados do Oscar, ficou de fora na categoria ‘Melhor Filme Estrangeiro’. Não que importasse tanto, assim. “Minha expectativa era que o filme virasse objeto de debate no meu país”, diz. Por telefone, a diretora conversou com a Tpm sobre tudo isso. E mais um pouco.
TPM. Nestes dois últimos filmes você aborda um relacionamento com uma ‘mãe que não é exatamente a mãe’. Por que dessa característica comum nos dois filmes? Anna Muylaert. Foi uma coisa que não percebi que estava acontecendo. De toda maneira, eles têm essa semelhança e suas diferenças. Que Horas Ela Volta? era um filme mais social, e este novo é sobre identidade. Trabalhei com dois temas diferentes e só depois percebi que tinham essa conectividade materna.
Na nova produção, Mãe Só Há Uma, existe a descoberta da transexualidade do protagonista. O que te motivou a retratar esse tema? Não chamaria de transexualidade, mas de um processo de transgeneridade.
Por quê? Porque não sei se o protagonista é uma pessoa transexual, já que o filme encerra a jornada um pouco antes desta definição. Fui atrás desse tópico sobre sexualidade após voltar frequentar as noites de São Paulo. Descobri um traço muito forte na nova geração: o direito a transitar por gêneros. É algo diferente daquela antiga ideia de que existe a/o transexual, e só. Hoje um cara pode usar vestido em um dia e calça no outro, ou namorar uma menina em uma ocasião e se relacionar com um menino logo após. É possível ser até transgênero e hétero, ao mesmo tempo. Assim que começamos esta nova produção, mais voltada para jovens, decidi atualizar a história do [Caso] Pedrinho com uma nova realidade.
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E o que há de peculiar nessa história do Pedrinho? Essa história sempre me fascinou. Eu me questionava: é uma trama muito específica, mas o que existe de universal nessa narrativa? Sempre entendi que, para a criança, a mãe é um ser messiânico, que aceita tudo e ama incondicionalmente. Normalmente, ela cresce e começa a mostrar aos pais aspectos inesperados durante a adolescência. A partir daí, é comum que a mãe se torne uma figura mais censora, castradora, que já não aceita mais o filho incondicionalmente. De certa forma, os filhos nunca são o que os pais esperam que sejam.
E como foi sua adolescência? Normal, como a de todo mundo. Acontece que, por volta dos 16 anos, você começa a decepcionar as expectativas dos pais. Não só a mãe, mas a figura paterna também. É aquilo: você entra em um processo de individuação, quebra a cabeça e começa a brigar, ascendendo à vida adulta. Passei por isso e acho uma fase comum.
Como mãe de adolescentes você já sentiu esse confronto? Sou muito preocupada com esse tipo de conflito, por isso leio bastante sobre psicologia para não pressionar meus dois filhos a serem algo que eu quero. Como na minha casa não existe pressão, às vezes acho que eles até sentem falta de uma contraposição. Quando os pais são chatos, o filho ganha uma força para querer sair para o mundo.
Por que você voltou a frequentar a noite? Fiquei quase 20 anos em casa, trabalhando e cuidando deles. Agora, que eles têm 20 e 16 anos de idade, me permiti a retornar para estes espaços noturnos.
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E você tem revisto, e até arriscado, em relação a sua própria sexualidade? Olha, na verdade, não. Já estou bem definida. Apenas comecei a avaliar que a questão de gênero não se resume a uma lógica binária, como sempre acreditei. Até mesmo em relação a orientações sexuais: quando eu era jovem resumia-se a hétero, gay, lésbica e só. Hoje existe uma gama maior. Não que eu tenha mudado, mas comecei a perceber que as pessoas não são apenas homens e mulheres, mas que existe um degradê masculino e feminino em cada indivíduo que é bastante único. Não alterei meu modo de ser, mas mudei minha forma de pensar como se é estar no mundo.
A última premiação do Oscar foi criticada pela ausência de atores e atrizes negras e diretoras mulheres entre os indicados. Foi feita uma reformulação do júri, que até então formado por uma maioria de homens e brancos. Você está entre os novos jurados. Como essa renovação ajuda a melhorar a inclusão no cinema? Foi uma ação muito bacana, que reviu o antigo regulamento e estendeu o convite a um número maior de mulheres e negros. Soa como um grande pedido desculpa, ao mesmo tempo que é um passo para melhorar a representatividade. A porcentagem ainda pode ser elevada nos próximos anos. Talvez, para a premiação em 2017, seja só um começo dos frutos que vamos colher em cinco anos.
E por que representatividade é importante para o cinema? A representatividade é importante para tudo na sociedade. O homem branco hétero e dominante, especialmente nas redes sociais, agora concorre com vozes de grupos LGBT, negros...
“Comecei a avaliar que a questão de gênero não se resume a uma lógica binária”
Anna Muylaert
Por exemplo, a última premiação [do Oscar] não houve negros indicados. O [rapper] Snoop Dog, então, falou em criar um prêmio apenas para roteiristas, diretores e atores negros. Imagina se cada setor tem que começar a se separar para se sentir representado? A importância da representatividade é captar a diversidade que torna nosso mundo rico.
Você disse, recentemente, que quem manda no Oscar não é arte, mas o poder de uma indústria. Não foi bem isso que quis dizer...
Mas você acredita nisso? Cada premiação possui uma característica. Cannes, por exemplo, é um prêmio de vanguarda, que reconhece novos diretores, filmes e atores de dentro e fora da Europa. O Oscar é uma premiação da indústria norte-americana. O que movimenta esse setor é o poderio econômico. É evidente que a arte por vezes dialogue com o dinheiro mas, eventualmente, não. É isso que o Oscar é: uma homenagem a uma indústria, uma característica que o prêmio nunca fez questão de esconder.
Ganhar o Oscar era importante? [O filme Que Horas Ela Volta? ficou de fora da categoria Melhor Oscar Estrangeiro] Concorrer importava para minha carreira e para a visibilidade do filme. Claro, uma vez cogitado a ser um dos indicados é necessário ir atrás e fazer o trabalho de divulgação. É importante, mas minha expectativa era de que o filme [Que Horas Ela Volta?] virasse objeto de debate no meu país. O Oscar importava, mas tinha consciência de que era uma premiação específica da indústria norte-americana - não um prêmio brasileiro ou Europeu.
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Créditos
Imagem principal: Ludovic Careme
Ludovic Careme
