Na história contínua de Milly Lacombe, Otávio e Marina se veem obrigados a dividir o mesmo teto. Acompanhe os capítulos em Tpm
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Quarentena, dia 3
Marina abriu os olhos mais tarde do que gostaria. Estava dormindo mal, acordava suando no meio da noite, com palpitação e só pegava mesmo no sono quando via o dia amanhecendo. Desbloqueou o celular e viu uma mensagem de Otávio enviada às seis e meia: “Indo até a cozinha comer alguma coisa”. E uma outra enviada às sete: “Pode sair. Já comi e voltei pro quarto”. Aquele 'pro' deixou ela levemente irritada. Não existia essa palavra 'pro'. O que custava a ele escrever 'para o'? O que ele estava pensando em fazer com o tempo que economizava comendo as letras? Colocou o roupão e foi fazer um café.
A cozinha estava estranhamente limpa e arrumada, o que era bastante incomum porque Otávio tinha a mania de não lavar copos, pratos e xícaras dizendo que ia deixar ali de ladinho para usar uma segunda vez. Ele comia de duas em duas horas, picado feito um passarinho e, pensando nisso, ela imaginou que ele devia estar faminto comendo três vezes por dia apenas. Foda-se, pensou. Que se dane. É um preço até pequeno por não me amar mais. Fez uma torrada, passou um pouco de manteiga e comeu sem fome outra vez.
Com a xícara de café na mão voltou ao quarto para tomar banho pensando que, como ela imaginava, Otávio não tinha tomado banho no dia anterior. Aliás, ele mal tinha saído do quarto no segundo dia de quarentena e isso parecia estranho. A verdade é que Otávio nunca foi apegado aos banhos e agora ela já não sabia como aturou essa falta de cuidado com a higiene por tanto tempo. Lembrou com algum estranhamento que no começo do relacionamento, quando eles faziam amor e ele suava, o corpo dele tinha um cheiro peculiar que alguns chamariam de fedor, mas que ela adorava. Era o cheiro da pele dele misturada ao que saía dela. Gostava tanto do cheiro que enrolava para deixar ele sair da cama mesmo que estivessem nela há muitas horas. “Não levanta! Fica aqui colado em mim com esse seu cheiro que eu amo”, ela dizia. E ele ria. “Marina, eu tô fedendo. Nem eu tô aguentando meu cheiro”. E se ele ameaçava levantar, ela puxava ele de volta.
Parecia estar lembrando de um filme que assistiu há muitos anos com personagens que ela não sabia mais quem eram. Saiu do banho e viu uma mensagem de Otávio: “Queria tomar banho. Posso?”. Pronto, ia começar aquela parte do espetáculo que ele amava: a que ele interpretava o papel da vítima. Perguntar se “podia tomar banho” fazia parte da dimensão do coitadismo que ele tanto amava. Ela respondeu teclando forte a tela do celular: “Estou saindo no banho. Quando for para a sala aviso e você entra”.
Marina estava na sala de costas para o quarto quando Otávio passou. Ela não o viu, apenas escutou a porta batendo e o aquecedor que ficava na área de serviço começando a funcionar. Fazia um calor medonho e ela não conseguia entender como ele podia tomar banho quente. Balançou a cabeça e disse a si mesma que Otávio não a irritaria mais. Passando a pandemia ele sairia dali de uma vez por todas e ela não precisaria mais aturar as manias dele nem suportar um banheiro todo quente e embaçado. Era questão de semanas. Levantou para usar o banheiro da sala e depois voltar à mesa para trabalhar, mas ao entrar no lavabo teve vontade de gritar. Foi para a sala sem fazer xixi, pegou o celular e teclou:
“A partir de hoje você faz xixi sentado. Ou isso ou lava o banheiro toda vez que usar. Não vou mais pisar descalça na porra do seu xixi”
A resposta chegou dois segundos depois. “Não vou mijar sentado! Tomo cuidado para não respingar, é o que posso fazer por você”
“Otávio, você vai sentar essa sua bunda branca, mole e peluda na privada, sim. E quando fizer isso lembra que não tá fazendo por mim, tá fazendo por você, que não quer ser despejado no meio do lockdown. E vai fazer mais: de dois em dois dias vai lavar o banheiro inteiro. Se não souber como lava banheiro manda mensagem para a Lia que ela te explica como faz. Se eu voltar a pisar no seu xixi eu não respondo por mim”
“Quem responde por você então? Me manda o nome que eu falo com essa pessoa com prazer e explico que não tenho culpa de ter um pau tão grande que produz um jato tão forte”
Marina estava encarando o celular com ódio vendo Otávio “digitando” e quando a mensagem chegou ela respondeu sem piscar:
“Seu humor é nível jardim da infância e, se fazer xixi para fora fosse culpa do tamanho do pau, a gente nem estaria tendo essa discussão porque você poderia fazer xixi pendurado no teto e nada escaparia. Mas voltando ao tema do teu excremento: xixi sentado e lavar o banheiro de dois em dois dias. Já que tá acordando cedo, faz isso bem cedo e antes de eu sair do quarto. Segunda, quarta e sexta tem limpeza de banheiro. E se contenta porque o resto do apartamento quem vai limpar sou eu até a Lia voltar”
Otávio se imaginou em pé em cima da tampa da privada fazendo xixi rodando o pau elipticamente pelo banheiro, mas respirou fundo e tentou se acalmar. Não achava que Marina seria capaz de colocar ele para fora do apartamento até a pandemia passar, mas não estava a fim de testá-la, nem de ter que limpar mais coisas do que o banheiro da sala, e essa seria a próxima tarefa que ela daria a ele se seguisse tentando desafiá-la. Respondeu apenas “ok” e voltou ao seu quarto pisando leve.
Eram quase seis da tarde quando ela escutou o som que vinha do violão dele. Por que ele estava tocando aquela música se ele sabia que ela detestava? Exatamente por isso, concluiu sem esforço e em segundos. Pegou o celular e digitou:
“A música tá me atrapalhando. Favor parar”
“Sim, senhora. Grato pelo alerta”, veio como resposta.
Ela pegou o celular e escreveu “VTC”, mas não mandou porque sabia que ele responderia alguma coisa tipo “com sorte vou mesmo”. Ele adorava pagar de macho desconstruído sempre que podia. Fazer xixi sentado e lavar o banheiro era demais, mas estimular a próstata era OK para o macho desconstruído. Lavar banheiro e sentar para fazer xixi era cruzar uma fronteira que não deveria jamais ser cruzada por homem algum. Ela apagou o “VTC” e respondeu apenas: “E quando for tocar violão faça a gentileza de lembrar que eu detesto Drão. Fuça aí a discografia do Gil que eu tenho certeza que você vai achar muita coisa boa para além de Drão”.
Ele nunca entendeu porque Drão a deixava tão transtornada e a verdade é que não insistia para saber porque temia que a resposta revelaria uma paixão antiga. Otávio nutria por Marina o que ele mesmo chamava de ciúme retroativo. Na primeira vez que ele disse a ela que sentia ciúme retroativo ela tinha rido. Eles estavam na Pousada da Alcobaça, em Petrópolis, em frente à lareira e ela perguntava a ele sobre ex-namoradas. Estavam juntos há seis meses e o tema deixava Marina excitada. Ele podia contar qualquer coisa sobre qualquer mulher que já tivesse passado por sua vida. Marina adorava saber dos detalhes mais sórdidos, ria e não demorava muito para deitar sobre ele e pedir que ele a comesse daquele jeito então.
Já quando era com ele as histórias de casos e namoros passados de Marina o deixavam perturbado e a uma certa altura ele dizia: “Chega, não quero mais saber! Não me conta mais nada!”, e ela ria notando que ele tinha perdido o controle. Claro que ela ria com ele! Ela já tinha rido muito com ele, como ela podia não se lembrar disso? Quando Marina tinha deixado de rir e por que ele não percebeu que ela deixou de rir?
Talvez agora, que ele achava que não a amava mais, ele pudesse tentar entender o mistério de ela não gostar de uma canção tão linda como Drão ou fazer as perguntas que sempre quis e nunca teve coragem: quem te fez gozar mais forte? Qual foi o melhor orgasmo da sua vida? Para qual ex você daria de novo hoje? Faria isso assim que pudesse sair de sua prisão domiciliar, pensou. Pegou o violão e começou a tocar baixinho Nelson Cavaquinho. Na sala, Marina escutou e parou de olhar a planilha que estava vendo. Devagar, abaixou a tela do computador e decidiu que fingiria não estar prestando atenção na voz de Otávio cantando baixinho:
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma à sua
O sol não pode viver perto da lua
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma à sua
O sol não pode viver perto da lua
É no espelho que eu vejo a minha mágoa
A minha dor e os meus olhos rasos d'água
Eu na sua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em seu amor
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz