Os desencontros de um amanhecer alaranjado são narrados por Milly Lacombe no quinto dia da história de desamor na quarentena de Otávio e Marina. Acompanhe na Tpm
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Quarentena, dia 5
Marina acordou de madrugada suando e com taquicardia. Olhou o celular para ver as horas. Três e vinte. Alguma coisa não estava legal em seu corpo e ela não sabia dizer o que era. Pensou que podia ser a menopausa, mas concluiu que 41 anos era um pouco cedo demais para uma menopausa. Ou não era? Decidiu perguntar para sua mãe, mas ao pegar o celular acabou entrando no Twitter para saber se o mundo tinha acabado e ali se perdeu.
Começou a ler matérias que falavam de morte, de falta de estrutura hospitalar, de corpos sendo enterrados em covas coletivas. As sensações físicas pioraram e ela achou que estava com falta de ar. Estaria doente? Sentou na cama, apoiou as costas na parede e respirou fundo. Encheu os pulmões e segurou o ar. Tinha lido em algum lugar que se fizesse isso e sentisse vontade de tossir era mal sinal. Não sentiu vontade de tossir e isso a acalmou um pouco.
Foi até a cozinha e, ao passar pelo quarto de hóspedes, notou que a luz estava apagada. Estranhou. Imaginou que Otávio, que gostava de virar noites lendo e compondo, estivesse alerta e preocupado como ela. Foi até a porta e encostou o ouvido. O mais brutal dos silêncios a invadiu. Como Otávio podia dormir com o mundo desmoronando? Pegou um copo d’água e voltou ao Twitter. Já era manhã na Europa e as notícias que vinham de lá eram devastadoras. Imagens de caixões empilhados, de hospitais lotados, de pessoas chorando a morte daqueles que amavam e nem poderiam enterrar.
Seu coração voltou a disparar. Sentiu vontade de vomitar. O que estaria acontecendo com ela? O hipocondríaco era Otávio; ela nunca ligou para doenças, nunca teve medo de morrer, nunca achou de verdade que iria morrer, nunca perdeu tempo falando sobre o assunto, ao contrário de Otávio, que tinha tara por falar de morte – e de cocô. Ela nunca tinha conhecido alguém que gostasse tanto de falar sobre os próprios excrementos.
No começo do relacionamento ela estranhou, mas depois deixou rolar e chegava a se divertir quando Otávio saía do banheiro com expressão de um menino de 10 anos falando coisas do tipo: “Hoje meu cocô estava lindíssimo, era uma obra de arte!”. Ele dizia que falar sobre descartes e finitude devia ser incentivado, e não recalcado. Talvez ele estivesse certo porque agora que a possibilidade de morte batia à porta ela não estava sabendo lidar.
Resolveu se ocupar de alguma forma para ver se a cabeça dava um tempo e foi checar as condições do banheiro da sala. Não havia xixi em volta da privada, e ela celebrou a boa notícia. Decidiu então que limparia a cozinha e ainda estava passando pano no chão quando viu o dia nascer. Foi até a janela da sala e notou que o sol estava mais laranja do que nunca. Em silêncio pôde escutar passarinhos cantando completamente alheios ao fim do mundo. Otávio e os passarinhos tinham alguma coisa em comum, pensou: a música e a alienação. Entrou no chuveiro, tomou um banho morno e foi tentar dormir um pouco. Eram seis e dez da manhã.
Otávio acordou sem despertador. Seis e quinze, mostrava o celular. Estranhou acordar na hora em que normalmente ia deitar, e mais ainda estar sóbrio e alerta. Durante anos sua vida foi esperar o sol se pôr, colocar um uísque no copo, um pouco de água e de gelo, pegar o violão ou um livro e deixar a noite seguir seu destino. Marina ia para cama cedo porque tinha que estar na agência antes das nove e gostava de fazer as coisas com calma: café, jornal, banho. Mas ele nunca teve hora para levantar e sempre adorou a sensação de trabalhar durante a madrugada enquanto todos dormiam.
Seu dia começava lá pelas onze horas, com uma xícara de café e uma torrada seguidas de um passeio pela praia já com o sol alto. O que as pessoas que acordavam tão cedo e não precisavam sair correndo para entrar num transporte público lotado faziam com suas manhãs? Foi até a janela e viu o sol alaranjado e as ruas completamente vazias. Que dia lindo seria aquele, que imagem cheia de poesia a da rua sem carros, sem pedestres, sem vida aparente.
Mandou uma mensagem a Marina avisando que ia usar o banheiro e tomar um café e viu que ela tinha acabado de checar o WhatsApp. Será que ela estava acordada? Passou pelo quarto dela e colocou um ouvido na porta. Silêncio absoluto. Estranho porque ela sempre gostou de acordar cedo. Antes das sete ele já estava de volta ao quarto. Notou que o colchão de ioga que Marina não usava há anos estava no armário. Pegou o laptop e buscou uma aula de ioga online. Encontrou um grupo de pessoas reunidas no Zoom prestes a começar uma sessão. Juntou-se ao grupo e elevou os braços para fazer a primeira saudação ao sol da sua vida.
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz