A hora e a vez de Alaíde Costa

por Adriana Terra

Dona de uma voz profunda e intérprete de sentimentos intensos, a compositora carioca vive, aos 87 anos, o reconhecimento pelo que sempre buscou em sua carreira: a liberdade e a autenticidade artística

Era início da década de 1950 em Água Santa, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, quando uma adolescente colava os ouvidos no aparelho de rádio, atenta, esperando a voz de Silvio Caldas entoar “Noturno em Tempo de Samba”. Ao ouvir os primeiros versos, parava para anotar a letra e memorizar a melodia. Quando aprendeu a canção, decidiu: iria ao programa de calouros de Ary Barroso, na Rádio Tupi, para apresentá-la. 

Não era a primeira vez de Alaíde Costa em um palco. Aos 11, seu irmão mais velho (Adilson, que se tornou jogador de futebol) a havia convencido a se apresentar em uma sessão para cantores amadores no circo montado no bairro, dizendo à garota tímida que, caso não fosse, a polícia iria buscá-la. 

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Dali em diante, a menina que gostava de cantarolar — mas achava que seria professora — passou a ser inscrita pelos vizinhos em toda oportunidade que aparecia, já que ganhava os prêmios. Aos 16, apaixonada pela canção cheia de climas interpretada por Caldas, resolveu ir se apresentar por conta própria. A escolha da música, a audição cuidadosa em casa e a interpretação lhe renderam nota máxima. “Aí tomei gostinho”, conta. 

Aos 87 anos, uma das maiores vozes da música brasileira é também uma artista que sempre se guiou pelo que quis fazer e pelo que acreditava fazer melhor, o que não foi fácil. “Ah, mas você é negra, tem que cantar uma coisa mais animadinha, sabe? Um sambinha”, ouvia. “Me recusei a entrar nessa porque não daria certo”, afirma, categórica. Seu primeiro álbum foi lançado dois anos antes de “Chega de Saudade” (1958), música que marca o início da bossa nova, mas só recentemente ela passou a ser reconhecida entre os grandes nomes do gênero — assim como Johnny Alf, precursor do estilo e, não por acaso, também negro. 

Em um show que homenageou João Gilberto em abril em São Paulo, falou: “Vou fazer 88 anos, tenho 70 de carreira, e olha que loucura: as pessoas me descobriram agora!”. Apesar de nunca ter parado de cantar, Alaíde viveu períodos sem gravar ou se apresentar em shows maiores. Nos últimos anos, parcerias deram novo vigor a uma carreira cheia de coerência artística. Em 2022, lançou “O que meus calos dizem sobre mim”, produzido por Emicida, Pupillo (Nação Zumbi) e Marcus Preto, álbum que terá segundo volume em 2024 — eleito o melhor lançamento fonográfico de MPB no 30º Prêmio da Música Brasileira nesta quarta (31) no Rio, com a cantora aplaudida de pé por todo o Theatro Municipal. No mesmo ano, participou do show “Atlântico Negro”, da cantora Ilessi, no Sesc Jazz. 

Quando conversou com a Tpm, por telefone de sua casa em São Paulo, havia acabado de voltar de duas apresentações em Portugal e se preparava para um show na Casa de Vidro, em um evento da grife italiana Bottega Veneta que homenageou Lina Bo Bardi. São sete décadas em um movimento firme e delicado. “Tive muita dificuldade, mas cheguei aqui, né?”

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Tpm. Alaíde, há uma semana a senhora estava em Portugal se apresentando com a Orquestra de Jazz do Algarve. Como foi essa experiência?

Alaíde Costa. Foi uma experiência maravilhosa, a primeira vez que eu me apresentei em Portugal. E não sou conhecida assim lá, mas as pessoas têm aquela curiosidade, então foi um público surpreendente. Voltei muito feliz. 

Nos últimos anos, seu trabalho conta com artistas diversos, em termos de geração e de estilos musicais. O que tem sido mais interessante nesse processo? Lá no Algarve, a maior parte da orquestra era jovem e foi muito bom. E aqui também eu tenho trabalhado mais com gente jovem, e fico surpresa ao saber que admiram o meu trabalho. Não sei definir o que eu sinto no momento em que eu subo no palco com eles, é uma emoção muito grande.

No dia 26 de maio você lançou uma nova música, “Moço”, de autoria de Marisa Monte e Carlinhos Brown. Pode falar um pouco sobre essa canção? Ela foi feita pra mim, então é muito gratificante. Foi gravada uns meses atrás e foi tranquilo, porque graças a Deus eu tenho muita facilidade em aprender, sabe? Melodia e letra, tenho bastante facilidade. Agora, nas apresentações, geralmente levo a pasta, porque muitas músicas ao mesmo tempo fica difícil, então dou uma olhadinha e lá vamos nós, né?

Recentemente a senhora também participou de show em homenagem a João Gilberto, celebrando o álbum “Relicário”. Como foi revisitar essas canções? O João foi a pessoa que me levou para a bossa nova, e foi através dela que comecei a ter mais chances de trabalho, então a homenagem a ele foi muito linda. Porque quando eu comecei eram aquelas músicas mais dramáticas, era uma coisa que não me atraía muito. A bossa nova me deu uma chance de trilhar um caminho diferente do que acontecia.

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O que lhe inspirava a cantar quando menina e o que lhe inspira hoje? Na realidade, eu nem queria ser cantora. Eu tinha uns 11, 12 anos, tinham montado um circo em Água Santa e ali promoveram um programa de calouros — era criança com adulto, tudo misturado. Como eu vivia cantando em casa, meu irmão mais moço que me inscreveu. Eu falei pra ele: "Adilson, eu não vou". "Tem que ir", ele dizia. "Eu não vou", eu falava. Até hoje sou uma pessoa tímida, mas na época eu era muito mais. Então ele falou: "É, se você não for, a polícia vem te prender". E daí eu fui e ganhei o prêmio, e todo programa que tinha alguma vizinha me inscrevia, porque eu mesma não fazia isso. 

E assim foi, até que aos 16 anos eu mesma resolvi ir no programa do Ary Barroso. Porque o que eu ouvia no rádio eu não gostava muito, sabe? Até que ouvi o Sylvio Caldas cantando uma música chamada "Noturno em Tempo de Samba", de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, e cada vez que ele cantava eu ia escrevendo a letra e memorizando a música. E não era sempre que tocava essa música no rádio, então demorou. Aí quando eu aprendi me inscrevi no Ary Barroso, onde ganhei a nota máxima. Aí eu tomei gostinho.

Como sua família e os vizinhos receberam a boa notícia? Minha família sempre achou que eu devia mesmo cantar. Eu que não queria muito, eu queria fazer outra coisa, ser professora... E aí as pessoas me apoiavam, mas não apoiavam minha escolha musical. Eu tinha que cantar aquelas coisas que cantavam na época. "É, você procura coisa difícil". Mas não existe música difícil, tudo é questão de boa vontade, eu acho. Com as gravadoras também tive muita dificuldade, mas cheguei aqui, né?

Por falar em dificuldade, houve uma mudança para São Paulo no início dos anos 1960. Como foi se mudar, e como a cidade lhe impactou como artista? Quando cheguei em São Paulo, eu estava sem gravar há muito tempo e cantava em barzinho, sabe? Para sobrevivência. Demorou até eu ter uma chance melhor, que surgiu quando eu cantei em um festival do Teatro Paramount uma música do Oscar Castro Neves, "Onde está Você", em primeiríssima audição. Porque ele [Oscar] falou assim: "No próximo show, gostaria que você cantasse essa música". Cantou a música pra mim, eu falei: "não vai ser no próximo, não, vai ser depois de amanhã". Então ele correu para fazer o arranjo e eu aprendi a música em dois dias para apresentar neste festival, que era grande, tinha Zimbo Trio, Paulinho Nogueira, Claudette Soares. Eu entrei pra cantar e, no meio da música, inédita, a plateia ficou de pé. Esse foi um momento muito marcante na minha vida, e dali as chances começaram a surgir. No dia seguinte a música já estava nas rádios, foi muito bonito.

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A senhora veio pra São Paulo, mas voltou algumas vezes pro Rio, né? Várias vezes eu voltei. Eu sou carioca, mas estou mais paulistana agora. Sério mesmo. Eu chego lá, fico um pouco, já dá aquela vontade de voltar.

Em 1974 a senhora cantou um enredo do Salgueiro, de Zé Di, escola onde já desfilou algumas vezes. Qual sua relação com a agremiação? Eu sou salgueirense, né? Fui pra lá através de uma amiga que era presidente da ala dos compositores. Ela falou: "Ah, vamos lá pro Salgueiro conhecer!". E nessa época eu morava em São Paulo, mas aí eu fui e fiquei, desfilei, fui pra ala dos compositores, fiz samba de quadra, fiquei por lá um tempo.

A gente já falou do João Gilberto, mas há mais parcerias de estrada. Lembro outras duas: José Miguel Wisnik, com quem lançou “O Anel” em 2020, e Milton Nascimento, com quem gravou “Me Deixa em Paz”, em 1972, e cujas canções regravou em “Amor Amigo”, em 2008. O que eles representam na sua carreira? O Milton foi responsável pela minha volta ao disco, né? Como eu disse, fiquei muito tempo sem gravar, e aí quando ele foi fazer "Clube da Esquina" me convidou pra participar, e logo depois a Odeon me contratou. Já o Zé Miguel Wisnik conheci quando eu tinha uns 19, 20 anos, não sei exatamente, era muito jovem. Foi no Festival Universitário na TV Tupi. E ele me procurou para defender uma música dele, "Outra Viagem", que está nesse disco ("O Anel"). E essa música ficou em quinto lugar, mas ela é linda demais, e daí... Bom, deixa eu contar a história do anel. Quando deram o resultado, ele me convidou para ir numa danceteria em que a prima dele trabalhava, e aí fui junto em um grupo. E eu estava com um anel e, de repente, não sei por que, tirei e pus na mão dele. E agora resultou nessa canção. A hora que ele cantou a música pra mim eu comecei a chorar, fiquei muito emocionada.

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Vou lembrar aqui também de outra amizade de uma vida, Johnny Alf, quem inclusive homenageou em uma live durante a pandemia… Eu conheci o Johnny quando ainda cantava em programa de calouros. Uma cantora chamada Mary Gonçalves fez um LP de dez polegadas e de um lado gravou só o Johnny, e a doida aqui começou a aprender as músicas. Sabe aquela que a Gal Costa gravou, "É só amar"? Eu aprendi e fui cantar em programa de calouros. As pessoas não entendiam muito o que eu falava, mas me davam a nota máxima, era muito engraçado… O Johnny foi uma pessoa muito especial na minha vida. Nós fizemos vários trabalhos juntos, fizemos uma excursão para várias cidades da Alemanha, foi muito, mas muito bom, e ele me deu uma letra pra musicar. Ficamos muito próximos, sabe? Amigos mesmo. E ele, pra mim, é o primeiro lá da Bossa Nova. Antes mesmo do Tom Jobim aparecer, ele já era o Johnny Alf, sabe? É uma pena que não houve um reconhecimento. 

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A senhora acha que, além de artistas e gravadoras, a imprensa também teve papel nessa falta de reconhecimento? Eu acho que ele não foi reconhecido em todas as áreas, sabe? Os próprios intérpretes, pouca gente gravou Johnny Alf. Eu não o gravei mais por falta de oportunidade.

A gente vem falando mais sobre racismo na música, apagamento de artistas negros… Olha, eu ouvi muito: "Ah, você é negra, tem que cantar uma coisa mais animadinha, sabe? Um sambinha". Não tenho nada contra samba, mas não é o que eu quero pra mim. Eu canto samba, sim, mas tem sambas e sambas. Me recusei a entrar nessa porque não ia dar certo.

Que outros artistas da sua geração você sente que poderiam ter mais reconhecimento? Da minha geração, eu tenho uma parceira que continua atuando, lançamos música juntas, mas acho que ela merecia mais oportunidades do que tem tido, que é a Claudette Soares. Outra cantora que acho que merece uma atenção melhor é a Áurea Martins.

A senhora tem mencionado o bom momento da carreira, embora desde 1957 nunca tenha parado de produzir. O que mudou hoje para que esse bom momento ocorresse? O que aconteceu foi que o Marcus Preto, produtor, me ligou dizendo que gostaria de fazer um trabalho comigo, e falou que o Emicida queria fazer letras para as canções. Eu não falei nada, né, mas pensei assim: "Nossa, Emicida? Uma linha tão diferente do que eu faço, como vai ser esse negócio?". Fiquei meio em dúvida e, ao mesmo tempo, surpresa. Aí eu pensei: "Não, mas ele é um moço muito inteligente e, se está propondo isso, é porque me conhece, né, não vai fazer eu passar vexame". E se fosse coisa que não condizia com o que eu faço, eu também não ia aceitar. 

Graças a Deus, muitas pessoas mandaram música (o resultado é o disco “O que Meus Calos Dizem sobre Mim”, de 2022), e a gente ainda vai fazer o segundo álbum, já tem algumas canções gravadas. Tem música minha que Emicida ainda vai colocar letra – a primeira parte eu já fiz, é uma música que requer uma resposta, e ele vai responder. Tem música do Francis Hime, João Donato… Ai, tem muita gente ainda!

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Créditos

Imagem principal: Murilo Avesso / Divulgação

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