Dona Onete: Os sonhos não têm idade, são para viver

por Denise Meira do Amaral

Sindicalista e professora por uma vida, a cantora tinha 73 anos quando lançou seu primeiro disco. Ela precisou desbravar um universo predominantemente masculino para se tornar a rainha do carimbó

“Quem é essa mulher? Me diga, garçom / Que aparece e desaparece / Nas noites de luar / Seduz e vai embora / Deixando no ar o seu perfume / Aquela boca vermelha, melancia era o batom”, cantarola Dona Onete, 83, após sacar um batom vermelho de sua bolsa e contornar a boca, amparada por um espelhinho redondo de mão, antes de começar a entrevista para a TPM, em um hotel na região da Paulista, em São Paulo.

De unhas igualmente vermelhas, coberta de anéis nos dedos, vestido azul de estampa africana e uma tiara de pérolas na cabeça, uma verdadeira “pavoa”, como ela mesmo diz, Dona Onete é a grande responsável por não só difundir a cultura e a música paraense mundo afora, como por contrariar toda a ordem hegemônica.

A rainha do carimbó chamegado desbravou um universo até então predominantemente masculino com suas canções de empoderamento feminino, resgatou heranças negras e indígenas da cultura brasileira, como o boto cor de rosa e a lua Jaci, em um percurso decolonial, e ainda lançou seu primeiro disco aos 73 anos, em uma sociedade que nega diariamente às mulheres o direito de envelhecer. Dona Onete resiste e promete não parar tão cedo.

“O tempo só termina dentro da catacumba. Os sonhos são para viver, não têm idade”, exaltou a paraense de sorriso farto que começou cantar ainda criança para os botos em noites de cheias de rio, em sua breve passagem por São Paulo, para a inauguração da Ocupação Dona Onete, no Itaú Cultural. A exposição traz uma retrospectiva da representante dos encantos e sincretismo paraenses com fotos de família, vídeos, manuscritos com letras originais e inéditas e até uma simulação de um palco de carimbó de chão vibratório.

Com o auxílio de uma cadeira de rodas por conta de dificuldades de locomoção por um problema no quadril gerado pela idade, Dona Onete falou ainda sobre o período em que ficou entre a vida e a morte, em uma Unidade de Terapia Intensiva, após contrair uma pneumonia, no final do ano passado: “Não foi tão grave porque já fiz de tudo: já cantei e já divulguei o nome do Pará. Claro que ainda tenho muita história para contar, mas outras pessoas virão e contarão”, acredita. Sindicalista e professora de história por uma vida, a cantora nascida em Cachoeira do Arari, na Ilha de Marajó, no Pará, considera seu primeiro palco a sala de aula e aprendeu desde cedo a arte da oratória, nos palanques de militância. Integrante do Partido dos Trabalhadores (PT), Dona Onete foi ainda uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará e da Central Única dos Trabalhadores.

Na entrevista, Dona Onete responde o que quer e conta as histórias que deseja. Nos dois shows que integraram a abertura da Ocupação, nos dias 16 e 17 de março, ela causou um tremor tamanho, que foi subindo, foi subindo, foi subindo, e fez a plateia inteira abandonar suas cadeiras numeradas para chacoalhar o corpo. “A boca fica muito louca! Com o tremor do jambú”, entoava o coro dançante, que emocionou Dona Onete: “Que coisa boa ver vocês dançando e cantando... uma mulher de quase 84 anos! Estou firme e forte e quero que vocês continuem assim, firmes e fortes”. Confira abaixo a entrevista.

Tpm. Quais são as memórias de sua infância?

Dona Onete. Eu morava com a minha vó. Digo que era meu palácio na Pedreira [bairro em Belém]. Era uma casa de pau a pique e lembro da gente alisando o barro na parede. O chão era batido e quando tinha muita poeira, precisava dar uma molhadinha para poder bater. Essa minha avó era mãe do meu padrasto, do Maranhão, descendente de escravos. Morava lá com minhas primas, que já tinham perdido as mães, e uma tia com mais quatro filhos. Essa tia que mantinha a casa, porque minha avó não tinha aposentadoria. Tinha uma vida feliz. Meu guarda-roupa eu mesma fazia e forrava tudo para poder botar minhas anáguas e rendas.

Você já era vaidosa? Muito. Eu já era uma pavoa. Usava muito batom. Um vermelho ciclame, uma cor que diziam que era de mulher da vida. Ele durava 24 horas e vinha de fora, dos Estados Unidos, ou França, não sei. Quando eu tinha uns 15 anos gastava todo o dinheiro que meu pai me dava com revistas, sapatos e vestidos. Minha avó detestava que eu usasse aquele batom. Eu falava para ela: “Vovó, deixa eu usar, não sei se eu vou morrer logo”. Ela dizia: “Minha filha, tem tempo pra tudo. Meu Deus, estou apavorada, a Nete é diferente de todo mundo”. Porque minhas primas não eram assim. Essa unha que estou hoje é pequena perto das que eu usava.

A senhora morou em quantos lugares? Eu morei na Pedreira [em Belém] dos quatro aos dez anos, até minha mãe morrer. Depois fui morar com a mãe do meu pai, em Igarapé-Miri [no Baixo Tocantins], com minha avó andarilha. Ela tinha muitos filhos espalhados. É por isso que conheço muitos lugares geograficamente.

E seu pai? Meu pai morreu quando eu tinha uns oito meses. Dizem que ele foi pescar com febre, o anzol engatou no fundo e ele caiu na água. Quando voltou de lá ficou mal. Depois minha mãe foi pra Belém trabalhar e arrumou esse meu padrasto, que eu chamo de pai, e eu fui morar com a minha avó. Minha felicidade toda estava lá. Perguntei esses dias em uma entrevista se alguém já teve um lençol coberto de lua em casa. Eu tinha. O teto da minha casa era forrado por uma palha. Quando chovia, a gente tinha que se encostar nas paredes para poder dormir. Só depois que passava a chuva, minha tia enxugava toda a água que estava empoçada, a gente deitava e dormia de novo. Quando a lua estava no céu, eu podia ouvir São Pedro. Até hoje a lua é predominante na minha vida. Eu falo muito dela, eu canto ela em versos e prosas. Ela faz parte da minha infância, seguiu toda a minha vida. Assim como tenho a Nossa Senhora de Nazaré como a minha mãe. Minha mãe, dois dias antes de morrer, me mostrou a santa e falou: “Minha filha, se um dia eu não estiver mais aqui, sua mãe do céu é essa”. Ela já estava doente. Ela foi trabalhar em fábrica de castanha do Pará e tinha aquela poeira... Acabou morrendo de pneumonia. Deveria ter uns 39 anos. Dizem que ela era muito parecida com essa minha filha, a Silvana, que está me acompanhando nesse show.

O que a senhora se parece com sua mãe? Lembro que ela era uma mulher morena e tinha um cabelo enorme, como depois eu usei muito solteira. Eu tinha 1,20m de cabelo cacheado. Tinha um ciúme desse meu cabelo! Precisava fazer aquelas tranças e toucas, pra bicho não subir.

Como a música entrou na sua vida? Eu ouvia muito na Pedreira. Tinha um bar que se chamava Suburbana e vinham cantores como Nelson Gonçalves, Ângela, Emilinha Borba e Cauby Peixoto cantar para o povo que pagava ingresso. Mas a gente, criança, ficava vendo do lado de fora, porque não podia pagar. Eu comprava muita revistinha do rádio também. Quando fui morar com minha outra tia, a Dadá, depois de sair da casa da minha avó, ela era uma das poucas pessoas que tinham rádio. E eu acompanhava tudo.

Você cantava para os botos de verdade? Eu cantava e minha voz era muito alta. Quando cantava no Rio das Flores, todo mundo saía de casa para ver, porque a água dá uma tonalidade ainda mais alta para a voz. Em lugar de maré cheia, você canta e a voz parece que explode. O pessoal que morava nas margens dos rios já sabia: “É a Nete cantando! Meu Deus, hoje é dia que vai acontecer pajelança na casa de dona Lucinda”. Quando cantava de noite, a minha tia mandava chamar a benzedeira porque tem a lenda que o boto saltava e engravidava. Eu era criança, tinha o quê? Dez anos? Ela ficava preocupada e passava um monte de alho em mim. Mas eu continuava cantando para os botos. Eu dizia que quando crescesse, iria namorar eles. Falava um bocado de besteira. Era um local que não tinha o que fazer.

E você foi namoradeira? Engraçado. Tenho amigos que depois que deixei meu marido falaram: “Eu não casei contigo porque pensava que você ia me colocar muito chifre”. Porque eles diziam que eu era muito doida. Eu era dama da festa, dançava muito, era aquela mulher antenada. Mas eu não era a bonita da festa, nunca fui. Era a inteligente, sabia de tudo o que acontecia, entendia de futebol, lia livros de bolso, esses de faroeste, e discutia com os homens. Eu namorei muito, mas não durava porque sempre queria outra coisa. Depois escolhi casar e fui para o interior, com 19 pra 20 anos. Foi pouca a solteirice, mas aproveitei.

Em que momento a senhora se interessou por educação? Quando me casei tinha feito até a quinta série primária num colégio muito forte, em Belém. Mas tinha parado. Depois de casada voltei a estudar. E isso deu muita briga, porque meu marido achava que eu tinha de ser dona de casa e cuidar dos nossos filhos. Mas quando meu marido começou a ser um pintor famoso, de pintar apartamentos, casas e tudo, e começou a entrar mais dinheiro, ele começou a querer aproveitar a vida dele. Hoje entendo que eu queria sair, dançar, mas não acompanhava porque não largava meus filhos. Ele dizia “Nete, vamos em tal festa”, mas eu preferia cuidar dos meus filhos. Comecei dando aula numa escola de quinta série num grupo escolar primário [em Igarapé-Miri]. Depois veio a oportunidade de eu dar aula no ginásio. Era professora normalista, mas assumi uma vaga de quem tinha faculdade. Dava aula de história, de quinta até a oitava série.

E por que a senhora quis ser a professora Ionete? Eu queria ter para quem falar. Não tem comunicador melhor do que um professor, tem? A gente fala pra um palco de 45 alunos, tem o seu público certo. Às 7h tinha a primeira aula e só saía da escola às 22h. Brincava que qualquer dia levaria minha rede para dormir lá.

A educação é uma ferramenta potente de transformação social? Ela é o seu primeiro palco. Ali você dá o seu show. A educação foi o meu primeiro palco.

A educação pode transformar? Transforma. Além da educação transformar, ela surpreende. Tem aluno que tem um talento de nascença, mas o pai ou a mãe não o encorajam. Nunca diga que seu aluno não pode chegar lá. Um dia tu chega. Eu sou uma delas. Um dia cheguei.

A senhora imaginava estar onde está hoje? Nunca. Principalmente na idade que estou. Vou fazer 84 anos em junho, no dia 18. Mas eu sempre me interessei por tudo. Já fiz tanto show fora do Brasil...

É diferente fazer um show fora do país? Eu ficava preocupada pensando: “Meu Deus, será que eles vão me aceitar?” Eles não sabem nem dizer meu nome, mas dançam!

Em quantos países já se apresentou? A minha produção sabe, mas acho que uns 20. Eu não sei falar inglês, mas com o meu jeito, o meu sorriso, eu vou passando. Quando vou fazer show, eles já ficam naquela euforia. Eu falo: “É disso que o gringo gosta!”. Dou os meus gritinhos e o povo adora. É esse ritmo que eu levo que acende as pessoas. Não é hit. Acho que o Brasil se encheu de hit que depois de cinco semanas já passou. Gosto de músicas que duram. Ontem dois DJs estavam falando pra mim: “Dona Onete, quando eu toco as suas músicas na minha festa, vira um grande auê”.

Como a senhora define sua música? Eu não sabia que ela era pop. Mas fui parar no Rock in Rio [em 2019] porque eu era pop. Nem sei dizer o que é pop. Eu não conheço uma nota musical. Porque eu dou a letra, mas quem procura o som são meus músicos.

O que a senhora carrega do Pará na sua música? Muita coisa. Principalmente esse um urubu e uma garça que eu nunca pensei na minha vida que fossem fazer tanto sucesso. Eu misturo muita literatura, história, o empoderamento da mulher. A Daniela Mercury esteve lá na minha casa, em Belém, quando eu estava doente. Ela foi cantar num show por lá e estava falando da minha música sobre a comunidade LGBTQIA+: Eu não matei / Eu não roubei / Falso ao testemunho eu não jurei. Dane-se o preconceito/ A burra discriminação / Eu luto pelos meus direitos / Doa a quem doer. Eu não pedi pra nascer. Com a minha música, vou dando o meu recado.

O mundo precisa conhecer ainda mais a música do Pará? Tem muita música do Pará indo pro mundo. Mas eu digo para as cantoras jovens: “Vocês têm de seguir”. O carimbó já tem professores fora do Brasil. Em Londres tem um grupo de carimbó em minha homenagem.

A senhora ficou internada no final do ano passado em uma UTI. O que houve? Estava fazendo shows e eram dias muito quentes. Nessas de entrar em carro e ônibus com ar-condicionado muito gelado, peguei uma pneumonia. Fiquei internada quase um mês e por pouco não fui entubada. Cheguei a ficar inconsciente.

Como é a experiência de ver o mundo passar pela janela de um hospital? Não foi tão assim grave porque eu pensava que há tinha feito tudo: já cantei e já divulguei o nome do Pará. Claro que ainda tenho muita história para contar, mas outras pessoas virão e contarão. Só que o meu povo lá no Pará dizia que eu ainda tinha muita coisa para fazer. Eu já recebi quase todos os prêmios que existem. E agora fui escolhida em uma feira do livro [Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes] sem escrever um livro! Quem escreveu foi minha neta [Josivana de Castro] a partir de umas historinhas que eu conto e acabei sendo homenageada. Agora estou terminando meu próximo CD [Bagaceira] e não vou abandonar a garça namoradeira e o malandro urubu, porque são os amores das nossas crianças. Vou fazer uma música que ela vem fit, elegante, light, diet; ela é society. Eu não quero largar minhas crianças. Antes as elas queriam festinha só de princesas, agora as meninas se vestem de garças, e os meninos, de urubus.

Quando a senhora estava no hospital, sentiu medo de morrer? Tive um pouco de receio, mas nem sabia se era disso. Uma hora que a minha pressão foi para quatro, estava assistindo televisão, ouvia o som, mas eu não via o que estava passando. Acho que eu já não estava mais. Minha filha contou depois que o doutor disse a ela: “Tem uma capelinha aqui, vai rezar que a tua mãe está ruim”. Já era hora quase hora de me entubar. Mas não tive medo. Eu estava sempre ouvindo a garça namoradeira e o moço que fazia o cateter cantava: “No meio do Pitiú”. Não tinha medo, mas não desisti, meu amor. Tanto que prometi para eles que eu ia cantar seresta para eles. Se entrou a coisa do medo de morrer, eu pensei: “Já fiz tudo, meus filhos têm onde morar”. Tenho dois filhos, cinco netos e cinco bisnetos. Minha bisneta vai fazer 15 agora. já fiz muita coisa, já cantei, já lecionei, já fiz cinco filmes, já fiz o que tinha que fazer. 

A senhora começou a cantar profissionalmente depois dos 60 anos e lançou seu primeiro disco solo, “Feitiço Caboclo” (2013), aos 73 anos. É uma inspiração para muitas mulheres? Eu quis primeiro garantir o meu sustento, para depois ir para a música. Se desse certo, tudo bem, se não, já tinha minha aposentadoria. Quem me deu essa coisa do palco foi o movimento da CUT, do sindicalismo aqui no ABC Paulista. A noite sempre terminava no bar Brahma. Eu subia nas mesas e cantava. E no dia seguinte ia pra luta.

No interior de São Paulo, estudantes ridicularizaram uma colega por estar na faculdade com mais de 40 anos. O que você tem a dizer a elas? Todo tempo é tempo, meu amor. O tempo só termina na hora que entra numa catacumba. Enquanto tiver vida, não tenha medo do ridículo. Hoje se alguém diz alguma coisa, é porque tem vontade e não tem coragem. E beleza não é só um corpo bonito nem um rosto bonito. 

O etarismo ainda é muito presente na sociedade. Ocupar espaços sendo mais velha é quase um ato subversivo? A gente já passou por tudo. A escada que você vai subir, eu já subi. No palco que você vai cantar, eu já cantei. Os aplausos já foram pra mim. E hoje está esperando você. Tu está entendendo? Os sonhos são para viver, não têm idade.

Por que o que uma mulher mais velha faz ou deixa de fazer incomoda tanto? Claro que incomoda. Se você não tem coragem para fazer e a outra tem, incomoda. A nossa felicidade incomoda. A mulher andar e não tropeçar incomoda. O empoderamento é você saber se expressar, é você saber dizer: “O meu lugar é este”. E cada um procura o teu.

Créditos

Imagem principal: André Setti / Itaú Cultural

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