O escritor e jornalista fala sobre sexo, mulheres, futebol e de amizade com PC Farias
Devoto de padre Cícero, existencialista fã de Sartre, repórter investigativo, cronista de futebol, comentarista de mesa-redonda, conselheiro sentimental, celebridade da internet, figura da televisão, boêmio inveterado, apaixonado pelas mulheres. Francisco Reginaldo de Sá Menezes, o Xico Sá, não nega que a folha corrida é intensa, mas diz que é um “macho convencional brasileiro”
O jornalista e escritor Xico Sá tem 51 anos. Mas o dia em que ele nasceu é um mistério. “Eu sei, claro: ou foi dia 3 ou dia 6 (de outubro)”, ele diz. A confusão é só uma das muitas lendas que permeiam a vida do cronista que virou referência de dois assuntos fundamentais para o país: futebol e amor. Xico, um boêmio nascido no Crato, no Ceará, vive a vida intensamente e escreve semanalmente sobre o esporte na Folha de S.Paulo, onde tem coluna e blog. Também fala de futebol no Sport TV e de relacionamento no programa Amor e Sexo, da TV Globo.
Figura “mal diagramada”, como ele se define, é amado pelas mulheres por escrever declarações de amor para moças dos mais variados estilos (“a boterinha”, “a prozaquinha”), dar broncas nos homens e criar personagens como “o homem do predinho antigo” (o sujeito que mora em um apartamento todo bonitinho, em um prédio de design) ou o “homem ervas finas” (o cara que planta sua própria horta e gosta de um bom vinho). As crônicas, ele explica, são escritas em forma de manifesto. “Eu sou exagerado, então, vou lá e faço um panfleto, seja pela boceta sem depilação ou pelo Ronaldinho ter o direito de sair com travesti.”
Ser conselheiro sentimental é a atividade que pratica há mais tempo. Ele diz que herdou a habilidade da mãe, até hoje conselheira da vizinhança em Juazeiro do Norte. Xico virou algo parecido, não só por razões profissionais: ele “atende” várias amigas por SMS, chat do Facebook ou WhatsApp. A jornalista que escreve este texto, amiga de Xico há 24 anos, já foi uma dessas pacientes e sabe: Xico tem mesmo muito saco para ouvir coisas como “ele não ligou, ele é um canalha” e seus conselhos são excelentes. Está em dúvida em relação a começar um relacionamento? “Segura na mão de Deus e vai.” Tomou um pé na bunda? “Perder no amor é ganhar.” Foi alvo de um cafajeste? “Mas o homem não existe!” Nesta entrevista concedida em São Paulo, logo depois da sessão de fotos em que posou com dez garotas nuas (e quase morreu de vergonha), ele solta algumas pérolas como “o homem é um ser ‘agropastoril’”, que serve para cortar lenha, cuidar do pasto, mas que é limitado.
"Aceito tudo que é trabalho porque a sombra da pobreza está sempre atrás de mim. Fui pobre, não sei como as coisas vão ficar depois"
O que Xico fala em tom de panfleto talvez seja explicado pelo que ele chama de “tendência ao fanatismo”. O menino religioso que fazia promessas sérias para o Padre Cícero na infância, com direito a chapéu do “padinho”, virou depois um comunista ferrenho. Hoje ama futebol apaixonadamente, a ponto de ir a qualquer jogo, mesmo sem ser do Santos, seu time, só por gostar demais de um estádio. Há um ano morando no Rio de Janeiro, vai inclusive “àqueles fodidos, que ninguém vai”. Também já foi fanático por política. E um dos repórteres investigativos mais importantes do Brasil. Foi ele que descobriu, por exemplo, o paradeiro de PC Farias (tesoureiro da campanha de Fernando Collor de Mello quando eleito presidente da república, em 1989, e depois foragido). Ao mesmo tempo em que trazia os furos no “Collorgate”, trabalhando de terno e gravata, hospedava em casa amigos de adolescência – entre eles a turma das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre S.A. Chegou a fazer música com Fred Zero Quatro, que conheceu na faculdade de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, para onde se mudou aos 16 anos para ganhar a vida, “como todo mundo fazia”.
Na cidade grande, o menino criado na zona rural, em uma casa sem luz elétrica, foi ajudante de trânsito e “homem de crediário” da Mesbla, onde aprovava financiamentos sem checar muito bem – já era comunista. Prestes a lançar um novo livro (O livro das mulheres extraordinárias, pela editora 3 estrelas), Francisco Reginaldo de Sá Menezes é bem-sucedido e famoso, mas diz não esquecer a sombra da pobreza. “Aceito tudo que é trabalho porque a sombra da pobreza está sempre atrás de mim. Não sei dizer não, fui pobre, não sei como as coisas vão ficar depois.”
Você é considerado um homem que entende muito de mulher. Inclusive, escreve sobre e para elas e dá conselhos sentimentais na TV. De onde você acha que veio isso? Aprendi isso com a minha mãe. Quem tá com alguma dificuldade vai lá em casa. Minha mãe dá conselho para todo mundo. Só que ela é mais firme do que eu. Ela fala mesmo. Eu ainda fico meio assim... Ela é radical: “Você tem que largar esse cabra safado!” Era isso todo dia no café da tarde. Acho que aprendi ali. Então, sempre tive mais amiga que amigo, as meninas me achavam o cara delicado, aí iam falar comigo. E eu já era de entender as mulheres. Eu já conversava com as mulheres sobre coisas que os homens em geral não conversam.
E na vida real, com suas amigas, você faz o mesmo que faz na televisão. Já fazia isso na rádio Cariri. E faço até hoje. Conselheiro sentimental é a minha profissão mais definida. Fora isso, tem o atendimento informal. Atendo muitas amigas pelo chat do Facebook. Todo dia tem uma. E é foda, porque às vezes acho que a mulher está a fim de mim e é só um pretexto [risos]. As pessoas se sentem muito à vontade para falar comigo. Sei lá, acho que é porque eu gosto de ouvir narrativa. E isso me alimenta as crônicas. Eu acompanho a vida de muita gente, uns big brothers.
Você costuma dizer que “o homem não existe”. O que você quer dizer com isso? Nós, homens, somos pobres. Não temos grandes sofisticações de pensamento. Fomos feitos para ir para a guerra, pegar lenha. O homem é um ser meio agropastoril [risos]. Tem que ser do campo. Profissões de homem: pastor de ovelha, pequena agricultura, motorista de caminhão [risos]. Mulher é mais interessante, mais complexa. Homem é só: “Tomei um pé na bunda, o Corinthians vai inaugurar o Itaquerão”.
Você acha o brasileiro machista? Nós somos muito machistas. Muito mesmo. Pega o caso da bandeirinha de futebol que foi bandeirar e o cartola do time disse: “Ela tem que ir para a Playboy, aqui não é lugar de mulher”. Ela estava condenada naquela arena de macho. A gente ainda não admite certas coisas. A gente tem um machismo infernal. Mas acredito nas novas gerações. A geração pós-Los Hermanos. No mundo desses meninos de barba do Rio de Janeiro, acho que existe uma quebra. Mas da minha geração, vixe! Querem mulher para desfilar na churrascaria. Esse é o clássico. Mas eles se fodem mais porque não está mais tão fácil encontrar mulher assim. Quando encontram uma mulher inteligente, que tenha poder de decisão, que não dependa psicologicamente deles, se fodem. O que eu vejo de homem chorando por aí...
Mas você é admirado por homens também. É pelo que eu escrevo mesmo, é muito sincero. Eu gosto de ser até panfletário mesmo, em alguns momentos. Escrevo: Carta aberta aos homens, estão falando mal da gente... Eu ouvi muitas histórias ao mesmo tempo, de fraqueza masculina, de fuga, de coisa errada. Escrevo querendo melhorar os homens, tento dizer pra eles. Mas tem muito choque; os caras me escrevem: “Tá louco, pô? Tem que ser assim agora? Não exagera”. É coisa bem jesuíta, mesmo, eu acho que só exagerando você é ouvido. Só sabem que eu escrevi sobre boceta cabeluda em defesa da Nanda Costa porque eu falo com muita ênfase. É um discurso, um panfleto radical, eu quero comunicar aquilo. E eu dou dura nos homens, porque acho que é o lado ainda mais absurdo de comportamento... A própria ausência masculina... Por que que todos esses programas governamentais dão as chaves das casas pra mulher? Repara a foto da entrega dessas casas... Os homens não estão nas fotos oficiais. Ou vazaram já.
Você acha que os homens estão ferrados? Acho até que deviam estar mais, pra aprender. A história muda a força. A gente não está mudando só porque a gente é bonzinho. Estamos mudando porque, se não, nos fodemos. Às vezes a gente fica achando que esse é um debate da classe média, mas não, quando eu vou lá nas minhas primas na zona leste, tá minha prima botando o cara pra tentar pelo menos diminuir o machismo dele. E o cara muda, porque ele tem medo de ser abandonado, traído. Programas como o Bolsa Família deram uma independência para a mulher, ela não vai mais ficar lavando cueca de homem. Ela aguentava pelo poderio econômico. Tinha que segurar a onda. Eu vejo pelas minhas tias. Hoje, se um marido trata mal a filha, elas já dizem: “Está sendo bruto, então larga”.
Você vem de uma família pobre do sertão. O que mudou por lá nos últimos anos? Eu nasci no Crato e fui criado no Cariri e em Juazeiro. O que aconteceu ali foi a invenção do capitalismo. O Bolsa Família foi a invenção do capitalismo! Por exemplo, meu tio tem uma venda. Ele está vendendo mais. Então, tem que comprar mais do cara que cria bode. O que aconteceu foi uma política de pós-guerra. E o Nordeste estava mesmo em guerra. Tudo mudou. Se você não vai lá, não sabe. Os liberais falam em comunismo, mas na verdade é capitalismo. Muitos primos meus têm mercado, bar. A vida deles mudou.
Como foi a sua infância? Minha origem é rural, sítio, nasci em lugar sem energia elétrica. Esse negócio de luz, não tinha isso não. Meu pai era um pequeno agricultor, tinha uma venda. Minha mãe com 12 anos tava na roça, tem uma história mais fodida ainda. A guerra, a resistência, é ela. Qualquer lamúria nossa, ela começa a contar a história dela e a gente desiste, vai beber água... E faz isso até hoje. Falo com ela toda semana, tem o vício do domingo, que é dia de falar com a mãe. E vou pra lá toda hora, agora cada vez com mais constância. O mundo mudou, saio daqui e tem voo direto pra Juazeiro! A primeira vez que eu vim pra São Paulo foi de ônibus. E várias vezes. Hoje tá muito perto. Eu saio daqui às 5 da manhã e vou tomar café com ela.
Em que os seus pais trabalhavam? Meu pai herdou uma terrinha do avô. Minha mãe nem isso tinha, mas sempre foi muito forte em comércio, era ela quem tocava as coisas. Ela é quem governa e manda. Até hoje, é voz de comando o tempo inteiro. E é uma mulher muito forte, sempre tida como muito forte, de opinião. Se eu acreditasse em horóscopo, diria que é porque ela é virginiana.
E essa história de que você nasceu em dois dias diferentes? Você sabe que dia você nasceu? Fui registrado em dias diferentes. Eu sei quando nasci. Ou foi 3 ou foi 6 [risos]. É porque cada apuração que eu faço dá num dia. Eu acho que foi dia 3 [de outubro] pelos sinais da minha mãe, porque teve eleição ali perto e não sei quê. Minha mãe disse que foi dia 6... Fica isso o tempo inteiro. Você registrava precisamente aos 6 anos, pra estudar. Então não tem horário. Eu lá sabia que ia encontrar Barbara Abramo 30 anos depois? [Risos.]
Você foi embora da casa dos seus pais muito cedo, para Recife. Como foi isso? Fui cedo, sim. Com 16 anos. Isso pode parecer triste e dramático, mas era a rota que todo mundo fazia. O filho, em geral o mais velho, ia para a capital estudar e trabalhar. Fui morar em uma pensão, onde estavam já primos e amigos de Juazeiro. Meus pais me deram algum dinheiro, mas tinha que trabalhar. Trabalhava e estudava. Como era um exímio datilógrafo, fui trabalhar na Mesbla, na seção de crediário. Eu tinha que ligar no SPC para aprovar os crediários. Imagina eu aprovando os crediários. Imagina se ficou alguém sem crediário [risos]. E brincava com os amigos: imagina se eu ia deixar aquela família sem comprar, estou destruindo o capital. Porque éramos comunistas mesmo. Antes disso, fui assistente de trânsito. Ficava na rua falando: o trânsito não está bom para lá, melhor para o outro lado. Tipo um assistente da CET [risos].
"Eu era um beatozinho, usava aquele chapéu de romeiro do Padre Cícero. Minha mãe não estava nem aí, eu era o mais religioso da família!"
Por que você virou comunista? Foi com a chegada em Recife. Antes era um menino que pagava promessa para o Padre Cícero. Qualquer situação ruim que acontecia, eu pegava meus irmãos, coitados, e inventava uma promessa. Obrigava todo mundo a pagar a promessa que eu tinha feito. A mais radical foi subir o Santuário de Juazeiro, que é uma escadaria gigantesca, de joelhos. Os meninos chegaram lá, coitados, sangrando. Eu era beatozinho mesmo, era igrejeiro. Eu usava muito aquele chapéu de romeiro do Padre Cícero. E minha mãe não estava nem aí, eu era o mais religioso da família [risos]. Aí, quando mudei para o comunismo, virei fanático também.
Na infância você já levava jeito para escritor? Eu gostava muito de ler, sempre. Era bom em redação, bom aluno. Talvez por isso eu tenha sido escolhido para estudar fora. Quando cheguei em Recife, descobri tudo. Em Juazeiro, li todos os cronistas, os romances. Em Recife, comecei a ler filosofia, Marx, meus amigos eram punks. Era uma misturada de coisa.
Você já escreveu que o filósofo Jean Paul Sartre acabou com a sua juventude. Eu amava. Eu lia Sartre e Camus, com minha primeira namorada, a Isa. A gente lia A náusea, O muro. Coisas chatérrimas! Eu odiava Carnaval, não ia à praia. A plataforma era de punk com literatura. O Jean Paul Sartre me tirou da putaria de acampamento! Quando eu fui para acampamento, todo mundo já tinha comido todo mundo. E eu lá, lendo Jean Paul Sartre. Mas eu acreditava naquilo mesmo. Eu troquei uma religião por outra. Troquei a batina de Padre Cícero pela barba de Marx e o enfezamento de Sartre [risos].
Você pegava muita mulher na faculdade? Não, era tímido. E imagina timidez na roça! Quando cheguei na faculdade era tudo diferente. Fiz amigos por causa dos livros e teve uma coisa que foi importante. Quando o professor de filosofia deu Umberto Eco, eu virei o maior especialista em Umberto Eco do bairro da Várzea [risos]. Acho que eu tenho mesmo essa tendência para o fanatismo. Virei fanático por Umberto Eco, aí começaram a gostar de mim. Mudou tudo, foi fundamental.
Como foram suas primeiras experiências sexuais? Minha geração tinha iniciação sexual em puteiro. Fui com amigo mais velho, com tio. Era sempre assim. Mas, quando cheguei no Recife, praticamente não sabia o que era mulher. Aí, claro, conheci a putaria das faculdades. Tinha os Enecons [encontros de estudantes de comunicação]. Teve o Enecon em Fortaleza. Aí comi minha primeira Brizolista lá.
Depois de se formar você trabalhou como repórter de política em Brasília, foi um dos repórteres mais importantes do Collorgate, na Folha de S.Paulo. Você que descobriu o paradeiro do PC Farias! Aquilo foi uma fase. Era um choque para meus amigos. Lembro de uma vez que encontrei o Chico Science [amigo de adolescência] no aeroporto e eu estava atrás do PC, do Collor, sei lá, de terno. Parou o Chico e toda a Nação Zumbi na minha frente e eles ficaram tipo assim: “Xico, mas o que é isso?”. Aí eu vi a careca do PC e saí correndo e eles me pararam. E o Chico: “Que é isso, cara, vai casar?”. Para eles, eu era um maluco. Uma pessoa que não tinha a menor capacidade de fazer aquilo. Eu era um poeta, fazia performance.
Você sente saudade do tempo de repórter de política? Em alguns momentos, sinto. Mas acho que não é mais possível fazer o jornalismo que eu fazia. Os repórteres decidiam muito. A gente acabava de almoçar, saía cada um com uma missão e a gente falava: “Somos a cavalaria russa” [risos]. O repórter derrubava matéria, quase mandava mais que o chefe. Era totalmente diferente e todo mundo era cheio de ideal. A gente era muito amador, não existia uma escola de investigação.
Como você ficou próximo do PC? Por não ser um jornalista sério. Minhas fontes eram os porteiros, os garçons, quem ficava com essa parte de entrevistar ministros, por exemplo, eram os jornalistas sérios. Eu ia atrás do terceiro escalão. Fiquei muito colado com o mordomo do PC, cozinheira, o Coquetel Drinks, o puteiro onde eles conheciam todo mundo do governo Collor. Eu peguei mais furo no Coquetel Drinks do que em outro qualquer lugar da minha vida. O advogado do PC era minha fonte, comecei a ficar parado na casa dele. Um dia, eu e PC tomamos um porre de uísque juntos. Ficamos bebendo a noite toda. Uma coisa que qualquer manual de redação vai falar que está errado [risos]. A gente falou de cabaré, de boate, do tipo de mulher que ele gostava. O PC nunca pegava a mulher que era convencionalmente a mais bonita do lugar. Ele pegava a mais estranha [risos]. Não me considero repórter investigativo, com aquele casaco Humphrey Bogart. Eu ia para o bordel. O Coquetel Drinks era mais importante para o Collorgate do que o Tribunal de Contas da União.
"Um dia, eu e PC (Farias) tomamos um porre de uísque juntos. Coisa que qualquer manual de redação vai falar que está errado"
Mas como você descobriu o PC? Eu tava em Maceió num bar, numa barraca de praia onde iam muito as pessoas que trabalhavam com ele. E ouvi um papo atrás de mim: “Ah, o PC está em Londres, os filhos não estão”. Aí confirmei com a família e fiquei tentando falar com ele. A Globo também estava atrás dele, com um batalhão de repórteres. Todo mundo perguntava para mim onde tava o PC . Eu chegava no trabalho e os boys: “Porra, Xico, cadê o PC?”. Ligava para a minha mãe e ela: “Meu filho, mas cadê PC?”. Se eu não achasse ia ser muito ridículo. Aí vim para São Paulo, consegui falar com ele e fui encontrá-lo na Tailândia.
Nessa época você já era boêmio? Era uma época muito boêmia. Ao mesmo tempo que fazia isso, estava virando noite na Love Story, na Torre do Dr. Zero. Acho que foi a época que eu fui mais boêmio na minha vida. Era a mesma época em que o Chico Science e o Mundo Livre começaram a fazer sucesso. Ficava a banda inteira na minha casa, tipo dez pessoas, em um apartamento de um quarto na rua Frei Caneca. Eu deixava a chave com eles.
Você já sabia que seus amigos eram muito importantes para a música? Eu não sabia o que estava acontecendo com eles, nem eles comigo. Porque eu olhava e falava: “Ah, é o Fred, ah, é só o Chico”. Pra mim, ah, eram só os meus amigos. Eu abri show do Mundo Livre em Recife lendo poemas, vários deles.
Onde você conheceu os garotos do Manguebeat? Conheci o Fred [Zero Quatro] na faculdade. Eu morava na casa do estudante. A gente fazia um jornal chamado O Príncipe. O Chico, eu conheci na noite. Eu não via que eles eram especiais, não. Mas o Chico, ele falava com muita determinação: “Porque eu vou fazer a nova música do mundo, a base vai ser em Chicago!”. Ele sabia a roupa que ia usar, tudo. Ele tinha total consciência de que estava fazendo uma coisa importante. E o Fred tinha a consciência política, de que ia mudar o mundo. O Otto, a gente também não levava a sério. Hoje é um dos caras mais importantes da música brasileira. Agrega todas as turmas, tem um puta pensamento político, o Otto é foda. Mas demora um tempo para você descobrir isso quando o cara é um dos seus melhores amigos e tá cantando na sua casa.
E como foi deixar de ser um repórter sério? O jornalismo mudou, o repórter já não tinha tanta importância. Normal, as coisas mudam. Aí, fomos sendo vazados. Acabei voltando mais para a poesia, que é o que eu já fazia antes. Foi doloroso, sempre é. Quando eu saí da cavalaria russa e fui trabalhar em casa, eu acordava e tinha que botar sapato de couro, camisa. Às vezes tinha que botar até gravata! Não conseguia escrever de chinelo [risos]. Aí comecei a fazer o Carapuceiro [blog que fez com sua ex-mulher, Adriana Vaz] e voltei para a minha zona de conforto, para o Manguetown. Comecei a escrever para tudo que é lugar. Fiz crônica para o Posto Graal. Era ótimo! Eles diziam: “Você escreve para a Folha, não vamos ter dinheiro para te pagar”. E, quando eu via, era muito mais do que eu ganhava na Folha. Fiz revista Cães e Gatos, todas as revistas do universo.
Você consegue falar não para trabalho? Não. A sombra da pobreza fica na cabeça. Fui formado na hiperinflação, você sempre acha que vai foder tudo. Faz muito tempo que não fode nada. Mas, mesmo assim, se faço uma temporada de Amor e sexo e ganho uma grana legal, que não estou acostumado – porque, claro, ainda estou acostumado com o pouco dinheiro de Gutemberg – eu acho que aquele dinheiro pode virar pó. Eu pego esse dinheiro e tento diminuir um pouco os trabalhos chatos. Ano passado, peguei tanta palestra para fazer que enlouqueci. Não ficava mais em casa. Quando via, tinha duas palestras no mesmo dia, uma em cada lugar do Brasil. Porque se me ligavam eu sempre falava: sim! Ainda é muito difícil falar não para trabalho. É a pobreza na alma.
Quantas vezes você já casou? Já morei cinco vezes junto. São namoradas importantes que, mesmo tendo morado por pouco tempo, considero que morei junto. Esses casamentos acabaram acontecendo meio por contingência: se rolar, não me furto. Mas também não é uma coisa que eu persiga. Adoro curtir sozinho a minha ressaca! Esse direito é sagrado. Que nenhuma mulher me tire isso. Como amo a minha ressaca! Atualmente eu namoro, namoro firme.
Você tem fama de pegar muita mulher, e mulher bonita. Eu tive com mulheres diversas de todo tipo, de idade, de tudo. Tenho uma amiga que dizia: “Porra, você é corajoso! Pegou essa mulher?”. Até tenho algumas mulheres bonitas na minha história, mas meu gosto é múltiplo. Tem de todo jeito, de qualquer região, orientais, negras, brancas, pretas, amarelas, mais esquelética... É de verdade, na prática.
Tem uma história sua de botequim de que você, com 20 anos, teve um caso com uma sexagenária. Sim! E foi legal! E desmente um pouco essa coisa, é como a música de Martinho da Vila, “já tive mulheres de todas as cores”... Eu acho assim: tem uma hora lá, você bebe, dança. O olho sendo safado, pode ter a idade que tiver, ser do jeito que for, eu acredito muito na safadeza como o grande atrativo da mulher. Vai passando uma mulher de 70 anos, que me encontra e diz uma safadeza no meu ouvido... É claro que eu vou com essa mulher! Dito de uma forma tão sacana, tão interessante e gostoso pra caralho, quando aquela pessoa teve um tesão em você, não tem como eu me furtar. E nessa situação que eu tive a de 60 e tantos, que eu namorei mulheres de todos os jeitos possíveis.
"O olho sendo safado, pode ter a idade que tiver. Uma mulher de 70 anos que me encontra e diz uma safadeza no meu ouvido... É claro que eu vou!"
Existe esse clichê de que homem prefere mulher mais jovem. Você não? Uma época tive um problema: as mulheres da minha geração não acreditavam em mim como um bom namorado. Por conta dessa caricatura do boêmio radical, de uma vida errante. Se pegar a fase mais produtiva da minha vida, na Folha, era a fase em que eu era mais louco; digamos que juntava o jornalista mais sério com o cara mais esculhambado na noite, mais errado do mundo. É muito caricatura. Quando eu tô nessa solidão minha é que eu vejo como é exagerado isso. Mas não tem como você desmentir mais uma coisa que também foi verdadeira. Eu tive trabalhos gigantes em começos de histórias de namoro pra desmistificar... Até provar, tinha que levar pra um passeio lá no mato, só eu e ela, tinha que comer umas coisas que eu não gosto, fazer trilha mostrando que eu era um pouco “saúde” também. Eu quase morrendo lá no Rio, só avistava o garçom lá no Baixo Gávea [risos].
Mas algumas mulheres se atraem pelo lado boêmio. Dessas mulheres com quem casei ou fiquei ou namorei, tem as que gostam por eu ser assim doido, ou tido como doido, na caricatura, e tem as com quem só seria possível ter algo se eu mudasse um pouco. Então eu mudei muito, pelo menos uma semana, não custa nada [risos]. Fiz uma trilha! Vê se eu sou homem de trilha! Teve um tempo que eu ia namorar uma menina que chegou e disse: “É verdade que você namora uma puta na [rua] Augusta?”. Eu tinha uma história com uma menina lá, porque eu morava perto. Aí eu desmenti, mas ela queria exatamente aquele tipo de escritor, clichê Bukowski. Eu não sou isso, sou um homem sério, trabalhador [risos].
"Não é só essa coisa passional. Eu sou um cara que toma chá toda noite para dormir. Em certos sentidos, sou um macho convencional brasileiro"
Mas o quanto essa caricatura é verdadeira? Quando eu morava na Augusta, eu vivia lá dentro. Eu não tô negando, não, eu gosto mesmo... Puta, beber muito, tudo isso são coisas que eu aprecio de verdade. Noitada... Nada é mentiroso. Eu tenho amigos intensos, parecidos comigo Quando eu me junto com Junio Barreto [compositor], Otto, Claudio Assis [cineasta], Lírio [Ferreira, cineasta]... fodeu. A temperatura é elevadíssima. Chega a ser assustador pra quem não é desse mundo.
Alcoolismo já foi um problema? O álcool faz mal, tão mal quanto estar vivo, mas quem danifica o homem mesmo é o trabalho mecânico ou brutalmente ganancioso. E tem outra coisa: nunca bebi o quanto imaginam, acho que nem bebo mais. Amo mais a dramaturgia da queda do que a bebida. Sou um ator da boemia.
Você já escreveu que era dos “Passionais MC’s”. Continua sendo? Passionais MC’s totalmente! O que muda é a frequência, você cansa mais rápido. Ou tem umas épocas que o próprio mundo noturno não tá tão interessante. Aí você namora, dá uma recuada... Mas, se eu encontro os meninos, é igual, parece que a gente tem 20 anos e repete aquilo da mesma forma. É um encontro sempre passional e intenso, não tem como negar. Mas não é só essa coisa. Quando vê, algumas meninas ficam decepcionadas, porque eu sou um cara que toma chá toda noite pra dormir. Não sei do que que é o chá, mas tomo. Em certos sentidos, sou um macho convencional brasileiro.
Tão convencional que faz mesa-redonda na TV. Quando recebi o convite para fazer o Cartão verde [na TV Cultura] fiquei histérico. E era com o Sócrates! Não perguntei nem quanto era... Eu ia de graça, se fosse com Sócrates. Eu comecei a minha história na TV ali e foi do caralho, foi sensacional. A melhor coisa. E faço até hoje futebol e amo. O Sócrates era um dos meus grandes amigos, um dos caras de quem eu ouvi as coisas mais interessantes da minha vida, um dos caras com quem eu passei a conhecer como funcionava uma das coisas que mais gosto na vida, que é o futebol. O Sócrates ajudou muito no conhecimento técnico, na leitura de um jogo.
Mas você já entendia de futebol? Eu era fanático, pitaqueiro de boteco. O que o Sócrates alertou é como se pode se decidir um jogo, às vezes, por um fator psicológico. Ele levava muito em conta o humano dentro da dramaturgia do jogo. Ele entendia o jogo como um drama humano. O goleiro que tá mal, deprimido por alguma coisa. Ele entendia tudo isso, falava muita coisa interessante nesse sentido. Embora ele não gostasse: ele achava um saco comentar futebol. Ele gostava mais de comentar a vida, boemia, mulher, política o tempo inteiro, tudo para ele era política. Mas foi um cara com quem aprendi muito, em tudo. Era tão maluco, tão parecido comigo. A gente tava no bar de madrugada, chegavam uns moleques de 16 anos dizendo: “Doutor, tá rolando uma festinha lá em casa”, e a gente ia. Ficou uma amizade. Foi difícil deixar de ser fã, só mudou depois que ele começou a dormir em qualquer canto comigo, cair pelos cantos igual a mim... Aí virou irmão [risos].
Por que você é santista? Porque é o time da minha geração, o primeiro time que eu vi jogar no campo. Quando eu chego no Recife, eu já tinha visto o Santos jogar. No interior, a ligação era torcer por um time do Rio ou de São Paulo. Eu gostava um pouco do Sport, que depois, morando no Recife, eu adotei como meu time de lá. Sou da geração Pelé. Nasci em 1962, pra quem que eu ia torcer?
"Eu viro um grande homem nas ressacas. Nada mais pode jogar um homem no conservadorismo total do que uma ressaca gigante"
Você é daqueles que vão sozinhos a um jogo do Santos? De qualquer time! Agora eu moro no Rio, em Copacabana. Estou em casa, pego o metrô e em 20 minutos tô no Maracanã! Vou ver qualquer coisa. Gosto daquela adrenalina, daquela confusão. Vou naqueles estádios do Rio que ninguém vai mais, Moça Bonita, Italo del Cima, fui em todos. Porque era a minha memória, de ouvir no rádio. Claro, como eu trabalho com futebol, rende muita coisa, mas eu já ia antes. A coisa que me dá mais prazer é escrever a crônica de futebol da Folha de sábado. Eu paro tudo, fico pensando o tema, fico vendo jogo que não tem nada a ver. Talvez a única solenidade que eu tenho com o jornalismo seja na crônica esportiva, que eu faço com muito tesão! Como comentarista também, depois do Cartão verde. Mas escrever eu gosto mais do que qualquer outra coisa.
Futebol é a coisa que você mais gosta na vida? Tá entre mulher e futebol. Outro clássico [risos]. Não no sentido de comer uma mulher, ficar com uma mulher, não é nesse sentido, só. Talvez tenha um donjuanismo maluco, um vício pela sedução, por tentar conquistar de alguma forma, não obrigatoriamente para ir pra cama, mas pra ela passar a gostar de mim, ter uma história... Sei lá, se tô muito triste, aí vou conhecer uma nova mulher, por internet ou na rua ou na esquina ou na televisão, e vou tomar um drinque no final da tarde na sexta-feira. Esse momento... Eu tenho uma paixão muito grande que me acende pra vida, esse encontro com uma mulher. Se eu tiver meio caído, meio triste, achando que tô escrevendo meio mal, tem esse milagre do encontro com a mulher. E me tira de uma depressão de imediato.
Você tem vontade de ter filho? Eu nunca acordei com essa vontade, nunca pensei nisso. Eu tenho muito afilhado, uns 20, tenho um bocado de sobrinho. Nas ressacas eu penso em ter uma família toda certinha. Eu viro um grande homem nas ressacas, penso em Deus, penso na família, penso na propriedade. Viro praticamente um membro da TFP! Nada mais pode jogar um homem no conservadorismo total do que uma ressaca gigante.