Xamã que eu vou

por Arthur Veríssimo
Trip #172

Arthur viaja até a Groenlândia para conhecer um curandeiro que induz ao transe sem drogas

A luminosidade insiste pelas frestas da cortina. O mundo lá fora é solar e polar. Acostumado com os ciclos de dia e noite do nosso Brasil, encaro a vida em Kulusuk, no leste da Groenlândia, como um laboratório bioexperimental para o corpo e a mente. Olho para os ponteiros do relógio, que indicam meia-noite. O sono se dispersa, e saio para respirar o ar puro do Ártico. Os raios do Sol rasgam a minha retina e automaticamente coloco os óculos escuros. A temperatura é de -2°C. Estamos no fim do verão no círculo polar ártico. O período de seis meses de luz solar está prestes a terminar.

Caminho pela única rua do vilarejo de Kulusuk, que está encravado na borda de uma montanha, com dezenas de casinhas coloridas. Icebergs de todos os tamanhos dominam o cenário. Por volta das nove da manhã, saio para tentar conversar com alguns inuits, os ancestrais habitantes da região, que também são chamados de esquimós. No último censo, foram detectados 356 habitantes locais e quatro estrangeiros. Existem mais cachorros do que humanos e veículos no vilarejo. São os famosos cães da raça malamute, que fazem corridas de trenós e atravessam a Groenlândia em longas jornadas.

No comitê central do vilarejo, um senhor de rosto grande, sorriso largo e capa branca chama a atenção. É o xamã da região. A descolada capa branca que ele veste é o famoso anorak. Esse casaquinho bacanudo, que desfila por ruas e praias do Brasil nos dias chuvosos e em passeios de catamarã, foi criado pelas incansáveis mulheres esquimós com a pele e a gordura das focas. Cheio de gingado, o curandeiro aproxima-se. Conta algumas histórias tocando o tradicional tambor arredondado dos xamãs locais. Começa dançando e fazendo caretas. Uma pessoa traduz simultaneamente para o inglês as parábolas e os mitos ancestrais que o xamã canta com palavras e uivos. O tambor acelera a performance, e o incrível curandeiro comunica-se com os espíritos. Fico imerso naquela encenação, e minha alma conecta-se com a essência do xamã. Uma forte curiosidade me faz perguntar ao Angakkoq (xamã) se existiam outros curandeiros na região. Ele responde que um grande xamã do norte da Groen­lândia irá entrar em contato comigo (entendi que o local chamava-se Kalaalit Nunaat; estava correto). Ao fim ele me dá uma escultura de osso de caribu. Uma carranca grotesca, dentuça e de braços compridos. Esses talismãs são chamados de tupilak e fazem parte do mundo místico e espiritual dos inuits. A música “Esotérico” com os Doces Bárbaros (Caetano, Gil, Gal e Bethânia) salta de uma gaveta da minha memória: “Mistérios sempre há de pintar por aí... Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais”.

O XAMÃ CANTA MITOS ANCESTRAIS COM PALAVRAS E UIVOS. O TAMBOR ACELERA A PERFORMANCE, E O CURANDEIRO COMUNICA-SE COM OS ESPÍRITOS. FICO IMERSO NAQUELA ENCENAÇÃO, E MINHA ALMA CONECTA-SE COM A ESSÊNCIA DO XAMÃ

Calejado de encontros notáveis com místicos, bruxos, iogues, lamas, saddhus, mães-de-santo e pais-de-santo, percebi que estava prestes a ter uma revelação. Ao chegar ao hotel, conecto meu laptop e deparo com uma mensagem iluminada. O título: “Derretendo o gelo no coração do homem”. Referia-se a uma série de atividades que seria ministrada por Angaangaq, mais conhecido como Uncle, em São Paulo. Estava feita a conexão, apenas não esperava tamanha rapidez.

Quando chego a São Paulo, marco um horário com os organizadores para conhecer as virtudes xamânicas de Uncle. Pesquiso algumas informações e concluo que a tradição do povo do senhor Angaangaq continua vivíssima. Por milhares de anos, a arte dos contadores de histórias não foi perdida, e Uncle é um dos seus oráculos.

Segundo uma profecia do povo esquimó, quando os glaciares – que sempre foram pedras gigantescas e resistentes – se tornassem macios a ponto de ser possível deixar pegadas marcadas neles, a mãe natureza avisaria que a Terra se encontra em um profundo turbilhão. Uncle me disse que nunca imaginou viver para ver essa profecia se concretizar.

Em um recente encontro com líderes espirituais em Nova York, ele dividiu uma história alarmante: “Cresci em uma pequena vila na Groenlândia. Quinze anos atrás, uma pessoa do meu vilarejo voltou para a comunidade relatando um estranho fenômeno. Havia uma goteira de água pingando a partir da imensa capa de gelo. Hoje aquela goteira é um rio. O oceano está ameaçando engolir não apenas o meu povo, mas todos os povos do mundo. Então eu digo a vocês para se lembrarem: o gelo está derretendo... Eu venho de longe para contar às pessoas dos países industrializados que acordem para os danos que estão causando. Quando irão mudar? Quando o mar cobrir o primeiro andar de seus arranha-céus, o segundo ou até o quinto? Esse gelo é fácil de derreter, ainda mais se comparado ao gelo do coração humano”. Este é o Uncle, a personalidade que estava prestes a encontrar.

UNCLE E SUA ASSISTENTE GIRAM AO REDOR DE MIM CRIANDO UMA BARREIRA ENERGÉTICA. UM RITUAL SEM USO DE PSICOATIVOS, APENAS ENERGIA, MÚSICA E SOPROS

Bate forte o tambor
Na sala de espera de uma casa no bairro da Ana Rosa, em São Paulo, a previsão feita pelo xamã em Kulusuk está prestes a se concretizar. Às 7h30, Uncle desce a escadaria e nos convida para subir. Descalços, entramos na sala e nos sentamos em círculo: Olívia (minha esposa), eu, Uncle e uma senhora americana falando português da Ilha da Madeira, que fazia as vezes de auxiliar de ritual e intérprete. Uncle pergunta nossos nomes e nossa história e olha a barriga de Olívia com seus oito meses de gravidez. Ela relata o que aconteceu na sessão: “Pedro, nosso filho, estava dormindo desde cedinho e ainda não dera nenhum sinal de vida. Bastou o Uncle encostar na minha barriga para sentir seus primeiros sinais. Ajoelhado, Uncle fechou suas mãos em concha amplificando sua voz, dando início a um canto ritualístico em homenagem a Pedro. Em poucos segundos, meu útero transformou-se em uma montanha-russa de última geração, dando loopings incessantes. Nosso filho parecia aprovar o xamã do Ártico”.

Depois Uncle me pede para abrir minhas palmas das mãos e tenho minhas linhas estudadas, escaneadas e escancaradas. Ele explica que a mão direita carrega informações de todo o nosso potencial, enquanto na esquerda mostramos como nos utilizamos dele. A leitura indica que eu não aproveito nem metade das graças que me foram concebidas nesta vida, o que acontece com a maioria das pessoas. Uncle aponta problemas relacionados a fatores externos, como inveja, ciúmes e rancor de outros, mas o foco é dirigido a minhas mediocridades. O que nós precisávamos fazer era limpar meu sistema desses padrões que me seguravam. Com firmeza e muita energia, inicia-se o ritual. Tiro meus óculos e, a partir do momento em que Uncle começa a cantar com sua voz grave e profunda, entro em transe. É Olívia novamente quem descreve o momento: “Com um instrumento feito de couro de barriga de foca, Uncle iniciou seus cânticos, acompanhado de seu ‘pandeiro’ gigante de som abafado, que ecoava próximo ao rosto do Arthur. A divina melodia preenchia todos os cantos do quarto. Uncle e sua assistente giravam ao redor criando uma barreira energética. Um ritual lindo, sem uso de psicoativo e plantas de poder. Apenas energia, música e sopros”.

Na despedida somos convidados a participar de uma grande cerimônia que ocorrerá em sua cidade natal, Kalaallit Nunaat, na Groenlândia, em agosto de 2009. Estaremos nessa.

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