por Kátia Lessa
Trip #252

Durante 15 anos, Vitor Marçal foi responsável por poupar centenas de vidas na baía de Waimea, posto já ocupado pelo salva-vidas mais lendário do Havaí, Eddie Aikau

No dia 14 de janeiro, dois helicópteros americanos colidiram sobre a baía de Waimea, no Havaí, deixando 12 militares perdidos em um mar com ondas de 30 pés — cerca de 10 metros. Entrevistado pouco antes para esta reportagem, Vitor Marçal mandou mensagens avisando que estava no comando de uma das maiores e mais perigosas operações da carreira. “Temos quatro salva-vidas e dois jet skis trabalhando sem parar em busca de sobreviventes, corpos e destroços da aeronave”, escreveu o brasileiro de 51 anos, que é capitão de segurança marítima no North Shore, na ilha de Oahu. Nem a polícia, nem os bombeiros, nem os militares tinham a capacidade de assumir a bronca com o oceano nessas condições. Infelizmente, nenhum dos militares envolvidos no acidente de janeiro sobreviveu.

Um dos salva-vidas mais respeitados do estado americano, Vitor, hoje, dificilmente trabalha molhado — sua função é gerenciar todas as equipes que atuam em uma faixa de aproximadamente 80 quilômetros de litoral, distância igual à que separa o Guarujá de Juqueí, no litoral paulista —, mas ele passou por muitos anos de labuta com os pés na areia. Seu primeiro salvamento, em 1995, não teve ondas gigantes, correnteza, acidentes ou surfistas ousados: foi em Waikiki, uma praia de marolas ridículas e o ponto mais turístico de Honolulu. “Tive que ressuscitar um senhor que estava rolando na areia que nem criança, bem no raso”, lembra Vitor. “Por um momento achei que fosse brincadeira, mas quando me aproximei ele já estava azulado, espumando pela boca.” Algum tempo depois um casal foi até a torre de controle da praia. A mulher o abraçou e, quando o homem se identificou como o resgatado, Vitor mandou: “O senhor está melhor agora do que da última vez em que o vi”, ri. “Foi quando percebi que, mesmo distante do que via nos filmes, meu trabalho fazia diferença”, afirma.

E muita: Vitor foi o responsável durante 15 anos por salvar centenas de vidas na baía de Waimea, posto já ocupado pelo salva-vidas mais lendário do Havaí, Eddie Aikau, que desapareceu no mar em 1978 e até hoje é sinônimo de coragem. Nas ondas famosas, a rotina pesada incluía pelo menos três salvamentos por dia, de crianças a surfistas profissionais, antes da promoção para chefe de todo o North Shore, em dezembro de 2013.

DE WAIKIKI A WAIMEA
Natural de Curitiba, no Paraná, Vitor nunca havia sonhado em ser salva-vidas, muito menos imaginou ocupar o posto de capitão no North Shore, destino dos sonhos de qualquer surfista — região que abriga, além de Waimea, outras praias famosas, como Pipeline e Sunset. Filho de pais separados, aos 16 anos ele já morava sozinho. Formouse em educação física e, por alguns anos, também cursou economia e processamento de dados. “Eu trabalhava em dois colégios e corria entre as faculdades”, diz. “A inflação era terrível e o dinheiro só dava para pagar as contas. Eu queria uma qualidade de vida melhor, queria surfar todos os dias.”

Aos 23 anos, após uma operação no joelho, Vitor decidiu trocar os fins de semana na Ilha do Mel pelo surf constante do Havaí. Primeiro, passou cinco meses em Nova York para estudar inglês e recuperar o menisco, mas de cara teve certeza de que as ondas pequenas de cidade grande não faziam seu tipo. No dia 31 de dezembro de 1989, partiu em busca das ondas grandes de cidade pequena. “Naquele dia fui para um hotel descansar antes de sair para comemorar a virada do ano, mas o fuso era tão forte que só acordei no dia 1º de janeiro. Perdi o réveillon, mas ganhei uma vida nova”, afirma.

O começo, entretanto, veio com dificuldades. “O primeiro brasileiro que conheci no Havaí foi o fotógrafo Bruno Lemos. Ele dormia no carro e disse que tinha dificuldade de arrumar trabalho. Pensei: ferrou, preciso me agilizar”, lembra. “Eu morava num hostel e todo dia pedia emprego para o dono. Uma manhã ele me escutou e passei a trabalhar com jardinagem”, ele conta. “Mas era pesado e no final da tarde eu estava tão cansado que não conseguia surfar. Então resolvi fazer um curso para dar aulas de mergulho.”

O North Shore não era exatamente um lugar fácil naquele início de anos 90. Segundo Vitor, o localismo era forte e as brigas, frequentes. “Não tinha mulher nem emprego. A testosterona estava sempre a mil”, diz. “Era um lugar cheio de machos brigando para ser o alpha.” Vitor notou rápido que deveria se comportar na água, caso contrário poderia se meter em encrenca. “Eu tentava evitar os horários dos ‘homens maus’. Tive um bate-boca com um black trunk [clube de locais que costumam brigar com estrangeiros], mas logo estendi a mão, ele desarmou e fui pra casa. Sou faixa preta no jiu-jítsu, mas brigar não é a minha”, lembra.

Bruno Lemos, que também mora no Havaí até hoje, conta que Vitor “sempre foi um cara na dele”. “Ele é muito respeitado porque tem uma responsabilidade grande nas costas que muita gente nem tem coragem de assumir”, diz. “Além disso, ele tem uma alma pioneira. Foi um dos primeiros caras que eu vi fazendo stand-up e foilboard por aqui.”

ESCRITÓRIO NA PRAIA 

Foi um acaso que mostrou o caminho que transformaria Vitor em um dos brasileiros mais respeitados do North Shore: ele estava no mar e ajudou no salvamento de um surfista machucado em Waimea. “Foi aí que um salva-vidas achou que eu tinha o perfil para o trabalho e me avisou que ia acontecer um curso para quem queria seguir carreira. Nunca foi um sonho, mas achei que trabalhar na praia poderia ser agradável”, diz. Ele fez o curso e passou de primeira, credenciando-se em técnicas como ressuscitamento cardiopulmonar e primeiros socorros, além de um teste físico. “Não é uma coisa impossível, por isso você tem que ficar entre os melhores tempos para ser chamado para a entrevista.”

Depois da graduação, passou alguns anos salvando senhores empanados em Waikiki, antes de ganhar postos de trabalho cada vez melhores. “Existe um status legal dentro da comunidade, mas muita gente ainda acha que deveríamos ganhar mais”, afirma Vitor. “Só na Califórnia que salvavidas ganha bem, embora no Brasil e na Austrália os profissionais também sejam muito bons.” Mas reconhecimento e respeito não faltam. O surfista de ondas grandes Danilo Couto diz que sempre gosta de trocar experiência com Vitor: “Eu o escuto e levo tópicos que trocamos para os cursos de gerenciamento de risco em ondas grandes que ministro”, diz. Até os chamados bad boys, que ele antes evitava, hoje são parceiros. “Eles respeitam os salva-vidas porque sabem que na hora em que a batata assar estaremos lá para eles. Quem é local sabe que nosso trabalho é duro, e por isso eles oferecem apoio sempre”, conta.

Entre os resgates mais dramáticos, ele lembra de um salvamento em Sunset Beach: “O mar estava grande e fechamos a praia com fitas. Era final de tarde e um cara entrou pelo canto, foi puxado e sumiu. Eu rezava para encontrá-lo. Algumas vezes enfiava a mão na água e sentia a cabeça dele, mas depois ela sumia. Consegui alcançá-lo e o levei de volta pelo canto, nadando sobre a prancha que ele usava”, lembra, com os olhos arregalados. “Fiquei muito afastado da praia e pensava se alguém estava me vendo lá de fora, caso eu precisasse de ajuda também. Pensei: não quero morrer aqui hoje. O alívio só veio quando avistei o carro dos bombeiros. O surfista estava tão envergonhado do trabalho que deu que saiu sem se despedir. Depois me disseram que ele me procurou na torre com uns sanduíches do Subway, mas eu não estava.”

Casado e pai de duas meninas, é nelas que ele pensa primeiro quando o mar começa a mudar. Embora o brasileiro conte que nunca achou que de fato ia morrer e que sempre tenha tido a certeza de que poderia entrar nos mares que encarou, confessa que às vezes não consegue visualizar a saída e fica ainda mais alerta. “Uma vez em Waimea senti isso e pensei: poxa, por 20 dólares [preço da hora na época] vou arriscar minha vida para salvar aquele prego lá!”, brinca.

Vitor não é religioso, mas não abre mão das estátuas de São Jorge e de Nossa Senhora Aparecida em casa, para garantir ajuda. Também, para relaxar, pinta telas com imagens de tartarugas e gorilas, pratica canoagem, corrida de remada e de montanhas. O garoto que largou o Brasil para poder surfar quando quisesse agora é pago para surfar uma hora todos os dias como parte das obrigações do posto. No final da entrevista, pensativo, ele afirma: “Quando era garoto sempre tive vontade de ser médico, mas não passei no vestibular. Eram 4 mil candidatos para 40 vagas. Hoje, percebo que arrumei uma outra forma de colocar isso em prática. Não sou médico, mas também salvo vidas todos os dias”.

Créditos

Ligia Costa

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